O Direito brasileiro perdeu na tarde desta terça-feira (04/01) uma das mulheres que abrilhantaram a advocacia nacional, em especial a criminal: Eny Raimundo Moreira.
Ela faleceu aos 75 anos (nasceu em 05 de abril de 1946) no Instituto do Coração de São Paulo, onde se internou no final de novembro para uma cirurgia do coração. Advogada conhecida e com grandes clientes, recorreu ao hospital público por falta de plano de saúde. Mas foi muito bem tratada ali, recebendo todos os atendimentos necessários.
Lutou muito para sobreviver. Por problemas de saúde, em especial renais, a cirurgia foi adiada só se realizando no dia 17 de dezembro. Após isso, Eny ainda sofreu um infarto, logo controlado, mas o rim permaneceu com dificuldades.
Mineira de Juiz de Fora, ela ingressou na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora em 1964, um mês antes do golpe militar. No segundo ano da faculdade, ao ler uma reportagem sobre o advogado e defensor dos Direitos Humanos Sobral Pinto, Eny decidiu morar no então Estado da Guanabara. Queria trabalhar com ele. Desembarcou na cidade com a cara e a coragem e foi atrás de Sobral, um católico conservador, anticomunista, que defendia comunistas como Luis Carlos Prestes.
É dela o relato sobre a conquista do emprego, narrado no livro “Advogados em Tempos Difíceis – Ditadura Militar 1964-1985”, coordenado por Paulo Spieler e Rafael Mafei Rabelo Queiroz, editado pela Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas, referindo-se à reportagem que mudou sua vida:
Na revista Realidade tinha um detalhe que me chamou atenção: ele era de comunhão diária, era extremamente católico, religioso, e assistia à missa na capela do colégio que ficava na esquina da rua onde ele morava, na Pereira da Silva, em Laranjeiras. Seis horas da manhã começava a missa e ele ajudava. Eu vim para o Rio, dormi em uma pensão em Copacabana, e seis horas da manhã estava entrando na Igreja. Só que o padre era mais pontual que eu e já tinha começado a missa, Sobral estava lá no altar ajudando. Quando terminou, eu fiquei do lado esquerdo, um pouco mais à frente da metade da capela. Todo mundo foi embora e o Doutor Sobral ficou no altar, limpando os cálices, dobrando os panos, as toalhas. Depois ele desceu do altar, ajoelhou-se no primeiro banco e ficou lá, rezando, só tínhamos eu e ele na Igreja. De repente ele levantou, pegou o chapéu, pegou o guarda-chuva e saiu pela nave central. Eu corri pelo lado esquerdo e pulei na frente dele, no umbral da porta. Eu tremia feito vara verde e eu não lembro o que falei, mas em síntese, era: “Doutor Sobral Pinto, eu sou estudante de Direito e eu quero muito ser uma boa advogada e eu quero trabalhar com o senhor. Posso?”Ele botou o olho no meu olho, parecia uma eternidade, me olhou profundamente e disse: “começa amanhã”.
Criou o Comitê da Anistia e o “Brasil Nunca Mais”
Assim, em 1966, pediu transferência para a Faculdade Nacional de Direito. Foi admitida no escritório de Sobral Pinto como estagiária, permanecendo lá por mais quinze anos, após se formar em 1968. Na Faculdade foi colega do então líder estudantil Wladimir Palmeira, que depois abandonou o estudo e ingressou na resistência política, tornando-se um preso político. Na mesma turma estava Técio Lins e Silva, outro que abraçou a defesa de perseguidos da ditadura militar.
Eny permaneceu no escritório de Sobral até 1979, ano da Anistia. Aprendeu com Sobral e seus dois companheiros de escritório, Oswaldo de Mendonça e Bento Rubião, a defender presos políticos. Foi presa duas vezes, em 1969 e 1970. Trabalhou em importantes casos, como os de Paulo Vannuchi, Isis Dias de Oliveira e Theodomiro Romeiro, primeiro processo com condenação de pena de morte.
Foi presidente-fundadora do Comitê Brasileiro da Anistia. Depois, junto com dom Paulo Evaristo Arns, Rabino Henry Sobel e o Pastor presbiteriano Jaime Wright, entre outros, montou o projeto ”Brasil Nunca Mais”, tendo ido à Europa conseguir a verba que financiou as cópias Xerox de todos os processos de presos políticos. Um trabalho realizado, juntamente com outros advogados, clandestinamente, entre 1979 e 1985. Gerou a mais completa documentação sobre a história da repressão política no Brasil. Já nessa época dedicava-se à advocacia voltada para as questões de Direito Autoral. Defendeu, entre outros, autores como Chico Buarque de Holanda.
Entre maio de 2013 e dezembro de 2015, Eny Moreira participou da Comissão da Verdade do Estado do Rio de Janeiro. Ao homenagear a colega, Felipe Santa Cruz, presidente do Conselho Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, escreveu no Twitter:
“Advogada combativa que resistiu ao regime militar defendendo perseguidos com coragem e heroísmo, ela nunca aceitou calar-se diante do autoritarismo”.
MARCELO AULER ” BLOG BRASIL 247″ ( BRASIL)