- Um de meus melhores amigos na turbulenta Lisboa dos anos 1970, marcada pela Revolução dos Cravos, era um pernambucano de Recife, o querido Duda Guennes (1937 – 2011), correspondente do semanário carioca O Pasquim e colunista do diário A Bola – jornal de maior circulação até hoje na Metrópole. Apaixonado por Lisboa, viveu no Bairro Alto, à Rua da Mãe d’Água, e em Alfama, e costumava repetir, carregando o seu inconfundível accent pernambucano, que “Recife é principal”, ou seja, era um lugar no mundo.
- E, de fato, Recife é principal. Permanece nela até os nossos dias o espírito cosmopolita que demarcou a fronteira, no Novo Mundo, no século XVII, entre Portugal e a Holanda. Dividindo, sobretudo, católicos, entrincheirados na lusitana e barroca Olinda, antiga capital de Pernambuco, e os protestantes calvinistas holandeses, com seus aliados portugueses judeus, sobre os esplêndidos palácios, canais, pontes, jardins e sinagogas erguidos no Recife nassaviano.
- Onde, aliás, conforme o anedotário pernambucano, as águas dos rios Capibaribe e Beberibe se encontram, formando, assim, o Oceano Atlântico. Amo imensamente Recife e suas raízes culturais. Um dos bons exemplos é o orange, em memória dos neerlandeses, a cor oficial da cidade.
- O outro está à mesa dos restaurantes. A começar pelo tradicional Leite – o mais antigo do Brasil, em atividade, fundado em 1882, na Praça Joaquim Nabuco, propriedade desde 1952 do beirão Arménio Ferreira, 90 anos, que dá nome e inspira outras casas de ótima cozinha em Recife. Como a rede Tio Arménio, onde é servido, diariamente, um delicioso bacalhau à portuguesa, em Boa Viagem, ordenado pelo maitre dos maitres, o paraibano Erivaldo Alves, de 45 anos. E ainda a Tasquinha do Tio, o Ferreiro Café e o italiano Zio.
- Foto de Arménio Ferreira, natural de Viseu, ilustra a coluna. Recife foi o lugar no mundo no qual nasceu a minha amada mãe, Nelly Roustan-Rabay (1929 – 2008), filha do húngaro-libanês Aziz Rabay (1888 – 1938) e da franco-egípcia Marie Roustan (1910 – 1968), bisneta do legendário Mamelouk Roustan (1782 – 1845), chefe da guarda pessoal de Napoleão Bonaparte (1769 – 1821).
- Mas lá morou por pouquíssimos anos e, muito criança, foi levada pelos pais para o Líbano – e só voltaria adulta ao Brasil. Residiu na libanesa Zahlè, cidade no Vale da Bekaa onde estão estabelecidos parte dos Rabay, e no Cairo – no qual moram, nos bairros de Heliópolis e Garden City, membros da família Roustan. Aziz e Marie deixaram o Brasil com a eclosão, em 1930, do levante armado comandado pelo gaúcho Getúlio Vargas (1882 – 1954), após o assassinato de seu candidato à Vice-Presidência, o paraibano João Pessoa, aos 52 anos, à Rua Nova, na esquina da Rua da Palma, no coração de Recife.
- O crime foi passional e aconteceu a poucos metros do Leite. Justamente na Confeitaria Glória, de propriedade de meu avô Aziz – dono ainda do Hotel Glória, no mesmo endereço, e das lojas Reunidas Glória. Vivem em Recife dois amigos caríssimos – o magistrado Elio Braz e a advogada Goretti Soares, autora de um precioso livro sobre o Leite.
- O casal é contemporâneo de minha esposa, Andrea Wolffenbüttel, que em Olinda residiu e estudou. O meu pai, Don Albino Castro, nascido na espanholíssima Galícia, numa localidade próximo a Vigo, na Província de Pontevedra, se casaria em 1948, em Salvador, com a minha mãe.
- E, na mágica capital baiana, meus irmãos e eu crescemos num universo em que conviviam a ‘mala leche’, isto é, o temperamento intempestivodos espanhóis, a generosidade e perspicácia dos libaneses, o refinamento afrancesado dos cairotas Roustan e o rico imaginário luso-neerlandês de Recife. Mundos tão contrastantes resumidos numa só casa – habitada por uma família de sobrenomes Castro, Freaza, Rabay e Roustan.
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ALBINO CASTRO ” PORTUGAL EM FOCO” ( BRASIL / PORTUGAL)
Albino Castro é jornalista e historiador