Caras e caros,
escrevo neste espaço o último artigo de 2021. Estarei de volta no dia 24 de janeiro. Desejo a todos um Natal em paz. Na passagem do ano, cumpre ter juízo. A variante ômicron do coranavírus e o H3N2 estão à solta, à espera de um vacilo. A máscara, na maioria das vezes, é a diferença entre a saúde e a doença. Precisamos estar prontos para 2022. Em muitos aspectos, o país terá a eleição mais importante de sua história.
A democracia brasileira, nos seus aspectos formais — e eles são, sim, muito importantes e precisam ser preservados —, sobreviveu. Haverá, contra a vontade de Bolsonaro, eleições livres no ano que vem. Tudo indica que o povo vai defenestrá-lo. Mas convém não contar com o ovo na barriga da galinha, como se diz na minha terra de modo mais desassombrado. O governo federal, e o presidente da República em particular, tem um poder imenso no Brasil. Convém não ignorar essa questão.
Contra as nossas melhores esperanças, vale lembrar que todos os antecessores de Bolsonaro que disputaram a reeleição venceram. Sim, é um dado da realidade. Mas, escritas as coisas desse modo, como já li por aí, gera-se mais desinformação do que informação.
O eleitorado tinha bons motivos para reeleger aqueles presidentes. Em 1998, temia que conquistas importantes do Plano Real fossem ignoradas numa eventual vitória do PT — crítico contumaz do ajuste. O plano enfrentava dificuldades, sim, mas FHC obteve o direito a uma segunda chance. Em 2006, Lula já havia conseguido se desvencilhar do mensalão — auxiliares seus foram punidos mais tarde, mas ele saiu ileso —, a economia crescia, e o desemprego estava em queda. O Bolsa Família era um programa, então, ainda novo. A vida dos pobres estava, com efeito, melhorando. Em 2014, a economia já estava beijando a lona, mais o efeito na pobreza ainda era reduzido. Dados da Confederação Nacional da Indústria de 2013, por exemplo, indicavam que, entre 2001 e 2012, o salário real dos trabalhadores havia subido, em dólar, 169%. O busílis é que a produtividade havia crescido apenas 1%.
REELEGER BOLSONARO POR QUÊ?
Em 2022, reeleger Bolsonaro por quê? Não vou me dedicar aqui a enumerar as desordens no governo na área técnica, administrativa, de gestão. Isso passou a fazer parte da crônica de todos os dias. Vejam lá: o Planalto não conseguiu se entender com o relator do Orçamento nem para prever os recursos que vão sustentar a desoneração da folha de pagamento. Mas houve por bem fazer uma reserva de R$ 1,7 bilhão para reajustar, consta, o salário de policiais federais, o que incendiou as demais categorias. A Receita Federal, por ora, é o órgão mais afetado com a renúncia em massa de servidores a cargos de confiança.
Embora o país esteja entre os líderes mundiais na imunização, Bolsonaro alimenta a sua súcia com discurso negacionista, e os alvos da hora são as crianças. O presidente não é o único a dizer coisas assombrosas. Ainda que a ciência assevere a segurança da vacina em crianças de cinco a 11 anos e que a Anvisa tenha autorizado a imunização, Marcelo Queiroga, ministro da Saúde, prefere anunciar audiências públicas para tratar do assunto e nos diz que o número de infantes mortos está, vamos dizer, num limite tolerável, o que não recomendaria decisões supostamente precipitadas. É assombroso!
GOLPISMO E DEMOCRACIA
Este ano que vai chegando ao fim também foi aquele em que Jair Bolsonaro ousou tirar, explicitamente, o golpe militar para dançar. Nunca considerei que a quartelada fosse possível ou viável, mas é fato que a tensão chegou a seu grau máximo nos atos do dia 7 de Setembro. O presidente apostou numa sublevação que não houve nem haverá e na desordem das Polícias Militares. Quebrou a cara. Entrou em depressão no dia 8 e teve de assinar uma carta de rendição no dia 9. Não houve nem haverá golpe. Mas a democracia perdeu vitalidade e é hoje, se me permitem, “menos democrática”.
Conservamos, reitero, intocadas, na forma, as instituições — e isso é muito importante —, mas a fome voltou a vitimar milhões de brasileiros. Conservamos intocadas as instituições, mas a violência de forças de segurança contra negros e pobres raramente foi tão abusada. Conservamos intocadas as instituições, mas a Amazônia e o Pantanal arderam sob a incúria, a incompetência e a trapaça oficiais. Conservamos intocadas as instituições, mas as terras indígenas foram invadidas, com estímulo oficial, pelo garimpo ilegal, e o resultado são destruição e morte. Conservamos intocadas as nossas instituições, mas o mundo que interessa zomba do governo do Brasil, faz chacota, trata-o por aquilo que é: um aglomerado de lunáticos, sob o comando de um reacionário desprezível.
E isso que vai acima, leitoras e leitores, está a indicar, então, que as instituições brasileiras já foram arranhadas. A democracia também é uma vivência. Ela tem de servir para equacionar conflitos do cotidiano e não pode, sobretudo para os mais fracos e mais humildes, se confundir com uma ditadura qualquer.
Desde a chegada de Bolsonaro ao poder, assistimos a um esforço, que é deliberado, de normalizar e normatizar o absurdo, o inaceitável, o detestável, o execrável, o repugnante. Alguém imaginou, no passado, em algum delírio, que um presidente da República trataria de modo irônico, em uma live, pessoas sufocadas em razão da Covid? E ele o fez num país em que faltavam cilindros de oxigênio e leitos de UTI.
Mesmo nos momentos do pessimismo mais tenebroso, anteviu-se um presidente a provocar aglomerações em meio a uma pandemia, a tirar a máscara do rosto de uma criança, a espalhar mentiras sobre vacinas que seu próprio governo compra? Nos desvãos tormentosos da melancolia, Bolsonaro não eram nem mesmo um fantasma. E, no entanto, ele está aí.
O BRASIL TEM CURA?
Não haverá golpe, ainda que o ogro venha a ser reeleito. O risco não está na quartelada, mas na violação cotidiana da democracia. “O Brasil tem cura, Reinaldo?” Não uso doenças como metáforas. Países são países, não pacientes. Estes podem morrer, o que não acontece com as nações, que só podem piorar — e não há fundo nesse poço — ou melhorar: nesse caso, existem, sim, tetos.
Precisamos, aí sim, esconjurar o caos — cujo resultado já conhecemos — e seus promotores. Um deles, Bolsonaro, vai disputar a reeleição. O outro, Sergio Moro, quer o lugar do ex-chefe, embora tenha sido seu fiel Leporello em agressões a fundamentos da civilização democrática.
Esconjuremos, pois, os destruidores de instituições, de liberdades, do estado de direito e do devido processo legal. São os inimigos principais. O resto se equaciona na luta política.
É meu modo de ser otimista. Até a volta.
REINALDO AZEVEDO ” SITE DO UOL” ( BRASIL)