Quando o filho é bonito, todo mundo quer assumir a paternidade. Vejam agora o que aconteceu com o leilão das novas licenças 5G para a telefonia celular. Não há dúvidas de que o tema é de suma importância e o Brasil está chegando tarde em mais um processo de modernização da economia, como está atrasado na integração de sua indústria na cadeia mundial de suprimentos. A implantação da banda 5G será uma ferramenta fundamental no salto tecnológico da indústria e na agilidade das atividades agrícolas, do comércio e do segmento de serviços. Além dos ganhos no processo educacional, vai ajudar a recuperar o terreno perdido, que é colossal na educação, na cultura e nas práticas ambientais. Mas é bom frisar que toda a onda feita pelo governo Bolsonaro, para restringir a presença dos chineses da Huawey, e assim abrir espaço para empresas americanas, suecas e de outros países, não produziu os efeitos esperados.
Nenhum novo grande player internacional das comunicações se sentiu atraído pelo leilão e pelas perspectivas apresentadas pelo mercado brasileiro. A instabilidade política e o derretimento dos fundamentos econômicos fizeram com que apenas as três grandes operadoras que atuam no país desde o leilão de privatização do sistema Telebrás e da Embratel, além de novas licenças em julho de 1998 atuassem com apetite: Vivo (Telefónica de Espanha), Claro (a América Móvel do bilionário mexicano, Carlos Slim, que levou a Embratel e briga hoje com a Vivo pela liderança do mercado brasileiro) e a italiana TIM ficaram com as maiores concessões de âmbito nacional. Seis outras pequenas operadoras regionais entraram no leilão que arrecadou R$ 46,7 bilhões.
O ministro das Comunicações, o deputado licenciado Fábio Faria (PP-RN), chegou a comemorar, na quinta-feira, uma arrecadação superior a R$ 50 bilhões, dizendo que só perdia para os R$ 69,9 bilhões arrecadados em 2019 no leilão de blocos exploratórios na área de cessão onerosa. Também aí houve frustração. Nenhuma grande companhia petrolífera estrangeira disputou o pré-sal. Apenas duas estatais chinesas se associaram à Petrobras, que arrematou apenas dois dos quatros blocos leiloados pela PPSA, a estatal que cuida das reservas da União no pré-sal.
Acontece que o ministro Fábio Faria parece ignorar a inflação e a atualização monetária dos valores arrecadados em 1998, no super leilão de privatização. Na época (julho de 1988) foram arrecadados R$ 20,05 bilhões. Mas vieram ao Brasil nada menos que uma dúzia de grandes operadores estrangeiros e investidores. Com o tempo, muitos (a começar pelos americanos) desistiram do Brasil. Restaram os três grandes, num mercado que reverteu a pulverização de oito áreas da telefonia celular, com uma empresa-espelho para competir na mesma área. Ao fim e ao cabo da primeira década, eram quatro grandes operadoras de celular (telefonia móvel, que viraram três quando a Oi, a única grande operadora nacional, após entrar em recuperação judicial, pressionada pelos altos custos da operação da telefonia fixa em escala nacional, que vem encolhendo em usuários e faturamento, foi fatiada entre a Vivo, a Claro e a TIM.
O dólar valia R$ 1,519 em julho de 1998. Na sexta-feira, 5 de novembro, fechou em R$ 5,519. Atualizando o valor pelo dólar, a arrecadação de 1998 valeria hoje R$ 72,7 bilhões. Bem acima do valor que Faria diz ter sido o segundo maior. E se considerarmos que a inflação está em 10% este ano, parece claro que o valor atualizado do leilão do pré-sal ainda detém o recorde.
O importante é que não se doure a pílula. É melhor cair na real, Ou como dizia Nelson Rodrigues, é melhor cair das nuvens que do décimo andar. Nos recentes leilões de concessões de aeroportos e rodovias nenhum grande investidor estrangeiro marcou presença. Vieram, indiretamente, como investidores secundários, alguns fundos de investimentos ou capitais de brasileiros que se registram como estrangeiros ao sediar off-shores em paraísos fiscais do Caribe e da Europa (como o economista Paulo Guedes fez em 2014, às vésperas da reeleição de Dilma Roussef). O Brasil, no momento, não oferece atrativos e segurança institucional. Um dos motivos é a postura, até aqui equivocada e refratária do governo Bolsonaro à questão ambiental. Que o diga o fracasso do absurdo leilão para prospectar petróleo no entorno de Fernando de Noronha e do Atol de Abrolhos. A recente guinada do Brasil na COP-26, se comprometendo com metas futuras, que a trajetória recente põe sob desconfiança, precisará ser comprovada na prática. Isso exigirá um trabalho penoso de reconquista de confiança.
Há outro fenômeno que desmente a versão otimista, quase rósea, que o ministro da Economia, Paulo Guedes, tentou vender durante a cúpula do G-20, em entrevista ä nova TV Jovem Pan, que entrou no ar como veículo de apoio ä campanha de reeleição de Jair Bolsonaro em 2022. Confesso que achei o máximo da cara de pau Guedes afirmar que o atraso brasileiro na integração das cadeias industriais “até foi benéfico”, pois, como a economia brasileira está sendo mais tracionada pela produção agrícola e pela indústria extrativa mineral (minério de ferro e petróleo e gás, principalmente), ”o Brasil pode sofrer menos com a crise de suprimento de insumos tecnológicos (chips e eletroeletrônicos) produzidos pela China e países da Ásia”.
Trata-se de um elogio ao atraso. Enquanto o Brasil continuar a produzir bens primários (commodities agrícolas, minérios e petróleo, bens de baixo valor tecnológico), irá continuar reduzindo sua posição no ranking mundial dos maiores PIBs, simplesmente porque a relação de troca não nos favorece. E a verdade é que a versão do ministro não se sustenta nem diante das recentes ações empreendidas por sua pasta. A intenção de reduzir as tarifas de importação do Brasil (que não pode estar descolada de uma reforma tributária que dê mais competitividade à indústria brasileira) é parte do reconhecimento. O Brasil também está atrasado nas providências para produzir carros elétricos e híbridos, cujo avanço vai desvalorizar, em futuro próximo, o potencial do pré-sal.
Mas de pouco adianta o país abrir suas fronteiras, com redução das tarifas aduaneiras, se não cuidar de fortalecer o mercado interno. Nos últimos seis a sete anos o PIB brasileiro vem descendo a ladeira. O IBGE, que mede os principais indicadores da economia brasileira indicou recessão de 6,7% em 2015-2016 (governo Dilma e seis meses de Temer, com reflexos ainda da gestão Dilma). Mas os dados de 2019 também foram revistos para baixo: em vez de crescer 1,4%, o PIN avançou apenas 1,2%. Com os 1,3% de 2017 e os 1,8% de 2018, ficou difícil recuperar os níveis anteriores a 2014, quando se. computa a queda de 4,1% no ano passado (e o provável crescimento inferior a 5% este ano – Itaú e Santander esperam 4,8%).
Num indicador mais ligado ä população, que é a renda per capita (a divisão do PIB pela população de 213 milhões de habitantes), a situação do Brasil é dramática. Na América Latina só a Venezuela e a Argentina tiveram desempenho pior. A renda em dólar encolheu quase 40%. O encolhimento da renda, sobretudo da classe média, que é um indicador relevante para as grandes multinacionais avaliarem a escala econômica de um país, ou seja, o potencial do seu mercado consumidor de bens e serviços, financeiros ou de lazer. Um estudo recente da Bloomberg indicou que vários países vão avançar muito mais do que o Brasil no alargamento de suas classes médias até 2030. São eles a Índia, a Indonésia (176 milhões de habitantes), a Rússia (148 milhões), o Vietnam (94 milhões de habitantes), as Filipinas (110 milhões), Bangladesh (147 milhões). O Brasil tende a expandir mais sua classe média apenas à frente do México (23 milhões a 21,5 milhões). Entretanto, considerando-se que o México tem 129 milhões de habitantes, ou 84 milhões a menos que o Brasil, nota-se que o Brasil não vem oferecendo atrativos aos investidores estrangeiros de peso. Ao contrário, grandes empresas estão encerrando atividades no país.
Na campanha da reeleição, turbinada pela aprovação da PEC dos precatórios que amplia os gastos eleitorais dos candidatos em 2022, já com a liberação antecipada de R$ 900 milhões para aliciar votos dos deputados federais com ampliação de verbas para gastos em seus estados, Bolsonaro pode querer iludir os eleitores com falsas promessas. Mas cabe ao eleitor saber discernir o que será o seu futuro, de sua família e de seu país. Um país que não investe em educação não estará à altura das possibilidades de avanços tecnológicos e de modo de vida que a banda 5G vai oferecer. Por enquanto, só uma minoria dos brasileiros está em condições de usufruir deste avanço. A realidade brasileira é que quase 10 milhões de brasileiros ainda estão excluídos dos avanços da telefonia 4G. Números maquiados para dourar a pílula podem ludibriar o eleitor incauto, mas não levam o Brasil adiante.
GILBERTO DE MENEZES CÔRTES ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)