OS MUTUÁRIOS DOS ANOS 80, A PRIMEIRA REAÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL , E O PAPEL DO JORNALISMO ECONÔMICO

Recebo de Igor Vitorino o recorte abaixo. É historiador e está levantando a história do movimento dos mutuários do Banco Nacional da Habitação nos anos 80, o primeiro movimento civil de reação à ditadura.

Meu envolvimento com os mutuários começou em 1982. Desde 1979 trabalhava no Jornal da Tarde, como pauteiro e chefe de reportagem de Economia. Ao mesmo tempo, mantinha uma coluna semanal no Shopping News, um semanário distribuído gratuitamente nos condomínios de São Paulo, e dirigido por Aloysio Biondi, amigo e mestre do jornalista econômico.

A inflação disparava e se previa uma enorme variação da ORTN (Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional) para julho. Ao mesmo tempo, pelos cálculos em cima da lei salarial, haveria um sub-reajuste dos salários.

Naqueles tempos de ditadura e de inflação selvagem tudo era regulado. Havia dois reajustes por ano nos salários, obedecendo a uma tabela que reduzia os reajustes dos salários mais altos. E um reajuste anual das prestações do Sistema Financeiro da Habitação no mês de julho. Todos os contratos eram reajustados de uma só vez. Com o descasamento de índices, foi possível prever o maior festival de inadimplência da história do país.

Através da minha coluna no Shopping News passei a provocar os economistas para que estudassem alternativas ao reajuste. Em vão. Eles se preocupavam apenas com o câmbio e outros indicadores macroeconômicos de interesse das corporações..

Decidi eu mesmo estudar o problema. Em 1979, pouco antes de sair da Veja, fiz um curso de matemática financeira e comprei minha primeira calculadora. Em 1982, adquiri o primeiro computador pessoal fabricado no Brasil, um D-8000 da Dismac. Naqueles tempos não havia aplicativos, nem planilhas, nem nada. Cada qual tinha que desenvolver seu próprio programa em Basic. 

Tinha a vantagem de ter me especializado em matemática financeira, através das inesquecíveis HP-38C e, depois, HP12C. Era só questão de transpor o conhecimento financeiro da calculadora para o programa.

Fiz um curso na Computique, a primeira loja de informática de São Paulo, que pertencia ao Ernesto Camelo, pai do futuro músico e compositor Marcelo Camelo. E toca a montar um programa para simular os financiamentos do BNH.

Levei um mês levantando todas as regras de financiamentos, os sistemas de amortização, as faixas de juros. E, principalmente, montando simulações sobre os reajustes de salários e prestações em julho. Um técnico do Secovi, Fernando Borneo, me informou sobre os componentes da prestação, os seguros e o Coeficiente de Equiparação Salarial (CES). Como as prestações eram reajustuadas anualmente e o saldo devedor sofria reajuste trimestral (pela correção monetária acumulada do trimestre), sempre que a inflação subia havia uma defasagem que deixava um saldo devedor. O CES consistia em um aumento no valor inicial da prestação, visando compensar a inflação futura.

Para montar meu programinha foi uma doideira matemática. Convidei o matemático José Dutra Vieira Sobrinho – com quem tive as primeiras aulas de matemática financeira, em 1978 – e transformamos minha casa em hospício. Eu simulava os financiamentos na tela de cromo verde do computador e o Dutra conferia na sua HP-45C. Varamos a Semana Santa nesse trabalho, a ponto da patroa sair de casa indignada, certa de que só havia loucos por lá.

Para minha surpresa, percebi tempos depois que nem os técnicos do BNH, que dependiam de mainframes da IBM, tinham sistemas de simulação de financiamentos.

Dominando o tema, dei-me conta de que apenas minha coluna no Shopping News, e alguns artigos no Jornal da Tarde, não seriam suficientes para enfrentar o tsunami que vinha a caminho.

Foi atrás, então, do presidente da Ordem dos Advogados de São Paulo, José Eduardo Loureiro. Expliquei a catástrofe que vinha pela frente e sugeri montarmos um seminário nacional, convocando todas as OABs nacionais para entupirmos o Judiciário com ações coletivas contra os reajustes.

Loureiro topou na hora e convocou o então presidente da Comissão de Ética da OAB-SP, Rubens Approbato Machado, para redigir a minuta de ação que seria disponibilizada para as OABs estaduais.

Foi uma noite épica. Ali começava a primeira reação civil contra atos da ditadura ainda em vigor, um período em que as pessoas se intimidavam de dar sua opinião até em reunião de condomínio. Advogados de todo o país saíram do encontro com a sugestão de minuta, preparada pelo Rubens, e com os cálculos, necessários para justificar o pedido de liminar. Em pouco tempo, explodiram comitês de mutuários por todo o país, propondo ações coletivas.

Seguiu-se uma luta curiosa com o BNH, em torno da matemática financeira do sistema. Para minha surpresa, nem o BNH, nem a Abecip (Associação Brasileira de Instituições de Poupança e Empréstimo) tinham simuladores.

Ficou claro para mim em um encontro promovido pela OAB-SP, para o qual fui convidado a debater com o pernambucano Nelson da Matta, que na época presidia a Abecip. Nelson tirou da pasta vários quilos de formulários. Perguntei o que era. E ele:

– Todos os financiamentos habitacionais até hoje.

Abri minha pasta e puxei meus formulários. Ele perguntou o que era. E, eu, de peito estufado:

– Simulações de financiamento habitacional de qualquer data passada para qualquer data futura.

Na noite anterior coloquei meu computadorzinho para imprimir todas as simulações possíveis, usando o comando For-Next do Basic. Nelson nem ficou para o debate. Semanas depois soube que os técnicos do BNH tinham comprado um computador pessoal e estavam fazendo curso de Basic.

O BNH apresentou uma sugestão para amenizar a vida dos mutuários. Àquela altura, tinha saído do JT e aceitado um convite para a Folha. No período em que fiquei por lá, criei a seção Seu Dinheiro, o Jornal do Carro – que, em pouco tempo, tornou-se o maior sucesso comercial da história do jornal. Mas não tinha espaço para crescer. Qualquer projeto que desenvolvia, o diretor Fernando Mitre incumbia um jornalista mais antigo de ser o titular. Depois do sucesso dos dois primeiros cadernos, apresentei propostas para um caderno de acompanhamento dos preços de supermercados – amarrado com simuladores de inflação -, e um caderno de informática.

Vendo as resistências internas, telefonei para o Caio Túlio, da Folha, e fui a uma reunião com ele. Da reunião participou o próprio Octávio Frias de Oliveira. Quando comecei a falar do projeto de informática, me pediu que não falasse mais nada, pois a Folha já estava desenvolvendo um projeto similar e não queria ser acusado de copiar ideias de terceiros. De fato, a Folha descobriu o caminho dos cadernos, inaugurado pelo JT, mas que não levou adiante.

Meses depois, fui convidado para ser repórter especial da Folha e aceitei. Fiquei um período, ao lado de um time que tinha Ricardo Kotscho, Carlos Brickman, entre outros. Tentei convencer o jornal a montar uma seção similar ao Seu Dinheiro, mas não consegui de início.

Até que ocorreu o episódio José Lopes de Oliveira. Pressionado pela campanha dos mutuários, o então Ministro da Fazenda Delfim Netto ordenou a Lopes de Oliveira, presidente do BNH, que encontrasse uma solução alternativa. Os técnicos do banco bolaram uma saída. Ela foi divulgada em uma 5a feira, se não me engano. 

Através da Folha, mostrei matematicamente que era pior, pois dava alívio temporário em troca de um acréscimo futuro substancial. Na verdade, para manter a neutralidade dos reajustes, não havia outra saída do que jogar uma conta mais salgada para o futuro.

O então Ministro Delfim Netto deu prazo de dois dias para o BNH rebater meus cálculos. Não conseguiu, o que resultou na queda do seu presidente José Lopes de Oliveira e na ascensão de Nelson da Matta como presidente do banco, indicado pelo Ministro dos Transportes Mário Andreazza.

Em função da repercussão do episódio, a Folha concordou em lançar a coluna Dinheiro Vivo e Frias encomendou, às pressas, uma campanha publicitária tendo eu e meu computador como personagens principais.

Em todo esse período, o comportamento de Approbato foi irretocável. Na maior ação individual já proposta no país, com centenas de milhares de ações explodindo pelo país, seu escritório não patrocinou uma ação sequer. O que deve ter contribuído enormemente para o prestígio que adquiriu perante a categoria, a ponto de, mais tarde, tornar-se presidente nacional da Ordem.

Os problemas de reajustes permaneceram por mais um bom tempo. Periodicamente, o BNH soltava uma proposta de reajuste alternativo que eu desmontava com minhas contas. Até que entrou o governo Sarney e o responsável pelo BNH, Flávio Peixoto da Silveira, apresentou uma proposta de reajuste com um enorme subsídio implícito.

Foi curiosa a reação das associações de mutuários. Até então, se alimentavam de minhas críticas a cada proposta nova de reajuste das prestações. Quando Peixoto anunciou o sub-reajuste, escrevi uma coluna dizendo que não havia mais o que discutir: nenhuma das saídas jurídicas continha mais vantagens do que o sub-reajuste de Peixoto.

Mas não se ficou nisso. Ao longo dos anos anteriores, mutuários optaram por algumas das propostas do BNH. Assim, a aceitação ou não da nova proposta dependia da situação de seus financiamentos após as vitórias judiciais.

Na época já tinha o programa na Abril Vídeo, transmitido pela TV Gazeta, e a coluna na Folha. O PABX de ambas as empresas lotaram com ligações de todo o país, de mutuários querendo conselhos. 

A saída que encontrei foi conversar com o presidente da Telesp e propor uma parceria. Ele disponibilizaria o serviço de atendimento da empresa. Eu prepararia um manual e daria um curso rápido para as atendentes. Em dois dias, atenderam a 15 mil ligações de todo o país, merecendo reportagem do Jornal Nacional.

No domingo seguinte, saíram anúncios no Jornal do Brasil e na Zero Hora, bancados por associações de mutuários, me acusando de estar a serviço dos bancos. No Rio de Janeiro, o movimento dos mutuários foi tão forte que elegeu um vice-prefeito, Jó Rezende. O ataque provocou um abaixo assinado em solidariedade.

A prova dos 9 se deu em um seminário da Associação dos Engenheiros da Petrobras, dirigida na época pelo futuro presidente da Ford do Brasil, Antonio Maciel. No seminário participaram os técnicos do BNH e o próprio Jó Rezende. Nos debates ficou claro a insuficiência de conhecimento matemático tanto dos técnicos quanto de Jó Rezende.

Por aquele período, minhas simulações mostraram que, com o sub-reajuste de Peixoto, haveria um rombo tal nos saldos devedores que inviabilizariam o BNH.

De fato, o banco foi fechado, mas por uma manobra do então consultor geral da República Saulo Ramos, visando esconder os esqueletos das liquidações extrajudiciais de sociedades de crédito imobiliário – especialmente as da Delfim, do notório empresário Ronald Levinshon. Mas aí é outra história.

Durante esse desmonte, fui procurado pelo presidente do Banco Central, Fernão Bracher. Havia rumores de que o BC poderia assumir o espólio do BNH. Indagava se eu poderia receber um jovem economista, recém chegado dos Estados Unidos, que iria estudar o tema para ver se se encaixaria no BC.

A conversa não chegou a ocorrer. O BNH acabou transferido para a Caixa Econômica Federal.

Pouco tempo depois, estimulei uma segunda onda de ações coletivas, desta vez de aposentados pleiteando a devolução de imposto de renda cobrado a mais em 1979. A sociedade civil começava a acordar.

LUIS NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)

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