Os juristas agora poderão discutir se o termo justo para definir a conduta de Bolsonaro durante a pandemia é o de genocida. Mas o que ficou claro é que os crimes cometidos e revelados pela CPI seriam suficientes para o presidente passar muitos anos na prisão
Talvez o momento mais dramático vivido durante os meses de debate e interrogatório da CPI da Pandemia tenha sido o das dolorosas declarações dos parentes das vítimas, que chegaram a fazer chorar alguns dos senadores. Não é fácil ver lágrimas derramadas em uma dessas investigações políticas. E acontece que, desta vez, a CPI abordou uma questão central: que o presidente Jair Bolsonaro permitiu que um crime contra a humanidade fosse cometido no modo como lidou com a pandemia, chegando a transformar os doentes pelo vírus em cobaias, eventos lembram os tristes experimentos do nazismo.
Os juristas poderão, agora, discutir se o termo justo para definir a conduta de Bolsonaro durante a pandemia é o de genocida. Mas o que ficou claro é que os crimes cometidos e revelados pela CPI seriam suficientes para o presidente passar muitos anos na prisão. Ficou claro para a consciência popular e a opinião internacional, como indicam as manchetes das publicações mais importantes do mundo, que o presidente e seu Governo se tornaram indignos de continuar a liderar um país que já perdeu mais de 600.000 pessoas para o vírus, muitas delas em experimentos científicos repugnantes. Sem contar a podridão que veio à tona sobre a corrupção perpetrada com as vacinas e os medicamentos usados na pandemia.
Não acho exagero afirmar que, apesar dos últimos compromissos políticos assumidos nas resoluções finais do documento do Senado sobre a especificidade dos crimes cometidos pelo presidente contra a vida das pessoas, o que ficará para a história é que durante a pandemia a sociedade foi vítima de uma sucessão de crimes. Crimes que, de uma forma ou de outra, não poderão deixar de ser punidos pela justiça e execrados pela consciência social do país.MAIS INFORMAÇÕESRelatório da CPI liga os pontos da política anticiência que devastou o país na pandemia
Bolsonaro, que tanto insiste em sua fé religiosa, deveria se lembrar do ditado popular: de que às vezes Deus escreve certo por linhas tortas. Talvez seja o que aconteceu com a CPI da Pandemia que, sem dúvida, foi a mais difícil e dramática da história do Senado. O que poderia ter terminado em um fracasso a mais da típica política de letras minúsculas revelou à sociedade as entranhas podres do comportamento criminoso do presidente.
Não se tratou apenas de exigir vingança judicial pelos crimes cometidos durante a pandemia para aqueles que deveriam ter se esforçado para salvar vidas, mas, também, de ter revelado à luz do sol o que o Brasil sofreu com seus governantes, em especial o chefe do Estado e seus ministros da Saúde. Sem dúvida, um dos momentos mais trágicos e dolorosos dos últimos tempos.
Há momentos em que um acontecimento pode acabar sendo crucial e providencial para toda a sociedade, às vezes sem que os próprios protagonistas consigam compreender sua importância. Talvez seja o que acabou de acontecer no Brasil com a CPI da Pandemia que poderia ter terminado em nada ou em um simples acordo sem consequências como quase todas as investigações dessas comissões. O documento final sobre os crimes cometidos durante a pandemia, apesar dos últimos retoques, deixa claro para a sociedade que a tragédia e os crimes cometidos pelo poder político foram maiores do que se poderia imaginar. Por isso, mais importante, talvez, do que as sutilezas linguísticas e jurídicas sobre se o caso se tratou de um genocídio no sentido literal da palavra ou de um crime contra a humanidade, o que fica claro é que o Brasil não poderia continuar a ser governado por quem brincou indignamente com aqueles que perderam suas vidas e com a dor de suas famílias.
<A CPI cumpriu seu dever de investigar. As vísceras do horror foram expostas. Agora cabe à sociedade decidir se o crime contra a humanidade cometido por Bolsonaro o torna digno ou não de permanecer no poder. O grito de “Fora Bolsonaro” deveria, a partir de hoje, ressoar com mais força do que nunca nas ruas e praças do país. E sobretudo no coração de quem não renuncia a uma sociedade governada por quem ainda seja capaz de chorar à luz do sol pela dor dos outros.
Depois dos horrores durante a pandemia revelados pela CPI da Pandemia, é possível que o Brasil não seja mais o mesmo em sua responsabilidade na hora de decidir no segredo das urnas quem deve governá-lo. Talvez, diante da podridão revelada pela CPI, o mais justo seja não esperar as urnas para passar a limpo o país, que já sofreu bastante com o comportamento cruel de quem deveria ter velado pela saúde e pelo respeito à população.
JUAN ARIAS ” EL PAÍS” ( ESPANHA / BRASIL)
Juan Arias é jornalista e escritor, com obras traduzidas em mais de 15 idiomas. É autor de livros como ‘Madalena’, ‘Jesus esse Grande Desconhecido’, ‘José Saramago: o Amor Possível’, entre muitos outros. Trabalha no EL PAÍS desde 1976. Foi correspondente deste jornal no Vaticano e na Itália por quase duas décadas e, desde 1999, vive e escreve no Brasil. É colunista do EL PAÍS no Brasil desde 2013, quando a edição brasileira foi lançada, onde escreve semanalmente.