No fim das contas, a “Síndrome do Traído” de alguns senadores da CPI — e estou me referindo aqui a gente que fez um bom trabalho; ignoro parlamentares da espécie daquele senhor cujo assessor foi preso por narcotráfico: como é mesmo o nome dele? — quase dá a chance a Jair Bolsonaro de assumir o lugar da vítima. Claro, claro! Também contou para criar o climão uma outra síndrome: a do “Isentão Amostrado com Ar Abobalhado”, que caracteriza alguns analistas que decidiram provar sabe-se lá a quem que, entre Jair Bolsonaro e mais de 600 mil mortos, preferem se identificar com os advérbios. É um padrão moral e ético. Obviamente, não é o meu.
Nesta terça à noite, num jantar na casa de Tasso Jereissati (PSDB-CE), senador licenciado, os protagonistas da CPI chegaram a um consenso. Pronto! Não há mais crise. Os isentões e isentonas abobalhados e aquele parlamentar cujo assessor foi preso por narcotráfico não precisam mais dizer que Renan Calheiros “ficou isolado” porque, ora vejam, alguns de seus colegas discordaram de duas imputações que fez a Bolsonaro — agora restaram dez… — e de uma outra a Flávio Bolsonaro. A isso se resumia a grande “crise”. Junto com a vergonha, muitos no país perderam também os parâmetros. Não dá para saber o que foi para o ralo primeiro.
Então a coisa ficou assim para a Bolsonaro. O relatório de Renan deve pedir o indiciamento do presidente da República por estes crimes:
– epidemia com resultado de morte;
– infração a medidas sanitárias preventivas;
– emprego irregular de verba pública;
– incitação ao crime;
– falsificação de documento particular;
– charlatanismo;
– prevaricação;
– crime contra a humanidade;
– crime de responsabilidade.
Como se vê, desapareceu da lista também o “genocídio contra indígenas” — única imputação que eu, pessoalmente, considerava discutível no ambiente do combate à Covid. Entendo que o governo federal, tendo o dever de agir para proteger os índios, se omite todos os dias diante do morticínio de indígenas. A negligência com essa comunidade no caso da Covida-19 não ficou muito distante daquela demonstrada com o conjunto do povo brasileiro. Assim, aquilo que é prática cotidiana não ganha contorno especial no ambiente da CPI.
A QUESTÃO DO HOMICÍDIO
Quando à acusação de homicídio comissivo por omissão, que foi retirada — e isso implicaria pouco dano adicional a Bolsonaro se fosse condenado pelos demais crimes –, querem que eu diga o quê? Parece-me ter havido um apego excessivo à palavra, tanto que a questão ganhou o noticiário mundo afora.
Reitero o que já escrevi aqui. O Artigo 13 do Código Penal explicita o que a qualquer pessoa razoável soa óbvio. Imputa-se o crime a quem lhe deu causa. E a causa pode estar na ação e na omissão. Quando se é autoridade, especifica o Parágrafo 2º, a “omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado”. E “o dever de agir incumbe a quem: tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância“ e a quem “com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado”.
Parece-me que o artigo foi redigido para Jair Bolsonaro. Como costuma dizer o povo, eis aí “escarrado” o presidente do Brasil. O fato de que ele tenha concorrido, de muitos outros modos, para a morte de milhares de pessoas não lhe retira dos ombros também essa responsabilidade. De resto, isso é mais facilmente demonstrável do que algumas outras imputações, que, em mãos espertas, testarão as habilidades de malabaristas da oratória.
Sabem o que é que prova a existência dos homicídios comissivos por omissão? O número de mortos que há hoje no Brasil, depois de a vacinação ter avançado bastante. Aliás, note-se à margem: não fossem a Coronavac, em que investiu João Doria, e a CPI, e ainda estaríamos abrindo covas coletivas. É um caso em que a prova do homicídio se dá também pelo número de vivos.
CAUSAR PANDEMIA
Sim, eu acho que Bolsonaro incidiu no Artigo 267 do Código Penal: crime de epidemia — tendo a morte como resultado. É coisa grave. Já tratei do assunto aqui. Tomou decisões que contribuíram para espalhar os patógenos. Mas é muito provável que a “Escola Lindora de Argumentação” seja bem-sucedida no esforço de cobrar: “Apresentem os nomes das pessoas que morreram em decorrência da contaminação provocada pelo presidente”. E, por óbvio, ninguém os terá em mãos.
O investimento do presidente na pandemia se deu no atacado, mas se vai cobrar em juízo que se apresentam nomes no varejo. Já o homicídio, conforme inicialmente pretendido pelo relatório de Renan, reitero, se prova por tudo o que a ciência sabe sobre o vírus e pelas claras omissões praticadas pelo presidente, que tinha o dever de agir. Os pais que, conscientemente, deixassem de alimentar uma criança, levando-a à morte, responderiam por homicídio. Justamente porque a lei lhes impõe o dever do cuidador.
Mas se houve por bem fazer disso um cavalo de batalha, como se existissem imputações sobrepostas: como se, de resto, um mesmo fato não pudesse implicar mais de um tipo penal.
CONCLUO
Tanto melhor que se tenha chegado à paz e que a vaidade tenha cedido ao bom senso. O relatório de Renan reconstitui o horror. Ali se vê um governo que:
1: preferiu, por um largo período, a imunidade de rebanho à vacinação, contribuindo para o espalhamento de cepas mais letais do vírus;
2: sob a orientação de um gabinete paralelo de Saúde, distribuiu drogas sabidamente ineficazes contra a Covid, apostando numa mistura de tratamentos precoce e preventivo;
3: deixou de comprar tempestivamente vacinas que teriam salvado milhares de vidas, além de sabotar imunizantes produzidos no país;
4: meteu-se em negociações escusas para compra de vacinas que nem mesmo estavam à disposição;
5: espalhou, de forma deliberada, notícias falsas sobre a pandemia e curas milagreiras;
6: associou-se a mercadores da morte para testar suas feitiçarias anticientíficas, usando humanos como cobaias;
7: sabotou as medidas sanitárias de enfrentamento ao coronavírus: do distanciamento social ao simples uso de máscaras.
Isso tudo, consta, deu curso a pelo menos 60 tipos penais.
O homicídio não está mais lá.
E, no entanto, aconteceu. Milhares de vezes.
REINALDO AZEVEDO ” SITE DO UOL” ( BRASIL)