Quando o senador Renan Calheiros (MDB-AL) ler, na terça próxima, a síntese de seu relatório, com mais de mil páginas, divididas em cinco volumes, a CPI, instalada no dia 27 de abril, estará a oito dias de completar seis meses. Visto inicialmente como “pressão dos opositores de sempre”, o requerimento para a instalação da comissão, apresentado pelo senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) no dia 7 daquele mês, transformou-se numa voragem. Tragado, o governo tanto mais se incriminava quanto mais procurava se defender.
A petição de Randolfe falava em “apurar ações e omissões do governo federal no enfrentamento da pandemia de Covid-19 no Brasil e, em especial, no agravamento da crise sanitária no Amazonas, com a ausência de oxigênio para os pacientes internados”. Quando o STF, em cumprimento ao que dispõe a Constituição, determinou a instalação da comissão, o governismo se mobilizou para mudar a sua natureza, tentando transformá-la numa investigação da atuação dos governadores.
Mas aí esbarrou nos limites impostos pelo Artigo 146 do Regimento Interno do Senado, que é explicito ao vedar que comissões de inquérito investiguem os Estados. Os senadores bolsonaristas da CPI se dedicaram, então, ao esforço de sabotar os trabalhos. Inútil. As sessões viraram, como se dizia nos tempos da TV a válvula, “líderes de audiência” nas redes sociais.
Não há dúvida de que os graves eventos havidos no Amazonas, com pessoas morrendo sufocadas por falta de oxigênio, causaram um grande impacto no país e evidenciaram os fatos determinados a justificar a abertura de uma investigação. Era o horror em estado bruto. O que se sabe seis meses depois?
O MORTICÍNIO DELIBERADO
Aquilo a que se assistiu no estado estava longe de ser uma ocorrência horripilante decorrente da imperícia ou da desídia em face do colapso a que a Covid-19 empurrava o sistema de Saúde no país — a propósito: desde sempre, os especialistas alertavam para o fato de que o vírus atacava também o organismo de Estado encarregado de enfrentar a doença, daí porque achatar a curva de contaminações era prioridade absoluta.
Não! Não enfrentamos apenas a imperícia e a incompetência culposas, associadas aos males decorrentes da natureza do vírus e da doença. Desde os momentos iniciais, quando se teve notícia de que o patógeno circulava no país, o governo fez escolhas deliberadas, conscientes e determinadas que produziram um resultado. E, sem qualquer licença à metáfora e à hipérbole, tratou-se de um morticínio.
RECONSTITUIÇÃO HISTÓRICA
O que nos é dado saber do relatório de Renan Calheiros aponta para uma reconstituição de caráter que se pode dizer histórico. Eis aqui um momento em que cumpriria empregar a palavra “narrativa” na sua acepção benigna, conforme a registra o Houaiss:
“Exposição de um acontecimento ou de uma série de acontecimentos mais ou menos encadeados”.
Mas, sabemos, o sentido dessa palavra foi esvaziado pela extrema direita nos anos recentes. O citado dicionário, diga-se, observa que os tais “acontecimentos” são “reais ou imaginários”. Isso quer dizer que uma narrativa pode ser, de fato, de cunho histórico ou ficcional.
Na fraseologia neofascista, note-se, “disputar narrativas” implica opor “verdades alternativas” — as “fake news” — aos fatos. Não por acaso, algumas das 63 pessoas candidatas ao indiciamento no relatório de Renan reagiram afirmando que o senador estaria criando uma “narrativa”, como se a palavra fosse sinônimo de “acontecimento imaginário”. E, no entanto, não é.
OS ACONTECIMENTOS
O que revelaram, com sobra de evidências, os depoimentos prestados à CPI, por mais que o governo e seus esbirros tentem, então, investir em “verdades alternativas”? Renan vai demonstrar em seu relatório que se encadearam, em série, acontecimentos que produziram o resultado conhecido:
1: Um gabinete paralelo ao Ministério da Saúde, mas não em oposição à cúpula da pasta — notadamente o então titular, Eduardo Pazuello, e seu secretário Executivo, Élcio Franco — determinou as escolhas feitas pelo governo no enfrentamento à pandemia;
2: o governo escolheu, contra as evidências apontadas pela OMS e pelo consenso científico — exceção feita aos negacionsitas de diploma —, a imunidade de rebanho como a forma mais eficaz de enfrentar o vírus. Segundo essa perspectiva, quanto mais pessoas entrassem em contato com o patógeno, mais rapidamente o ciclo da doença seria vencido entre nós. Essa escolha obviamente criminosa — e de efeitos desastrosos — ignorava, por exemplo, o risco de surgimento das novas cepas;
3: o Ministério da Saúde — sob a orientação explícita do presidente da República e com a concordância da cúpula da pasta e de alguns auxiliares graduados — abraçou o chamado “tratamento precoce”, dito também “preventivo” às vezes — como terapia para tratar os doentes e enfrentar o alastramento da doença. E essa escolha perdurou mesmo depois de todas as evidências científicas apontarem a sua ineficácia;
4: a revelação da correspondência da Pfizer com a cúpula do Ministério da Saúde provou as ações deliberadas tomadas pelo governo que resultaram na demora para a compra de vacinas. Tão grave como essa demora foi a ação de uma verdadeira organização criminosa empenhada em patranhas para a compra de imunizantes que nem sequer estavam à disposição. Ações e declarações do presidente e de seus auxiliares trouxeram à luz um óbvio trabalho de sabotagem contra a Coronavac, por exemplo. O conjunto da obra atrasou a vacinação no país. A queda que se constata hoje no número de contaminados e mortos prova a eficácia dos imunizantes. E isso, por sua vez, explicita que a demora para a compra de vacinas resultou na morte de milhares;
5: estruturou-se uma indústria de “fake news”, em óbvia articulação com a Presidência da República, para espalhar mentiras sobre a suposta efetividade de drogas inúteis no combate ao coronavírus, para pôr em descrédito as vacinas e para sabotar as medidas sanitárias de prevenção. E o próprio presidente se encarregou de ser seu porta-voz. Afinal, para essa turma, o mundo se resume a uma “disputa de narrativas”, ainda que isso implique a morte de milhares de pessoas.
CONCLUO
Renan propõe o indiciamento de Bolsonaro por 11 crimes. O presidente lidera a lista em número de imputações. E todas elas, corroboradas por declarações suas, parecem-me inquestionáveis, seja por dolo direto — quando se pode antever o resultado e, na verdade, se o deseja — seja por dolo eventual, quando o desdobramento não é necessariamente desejado, mas pode ser facilmente antevisto.
A CPI foi instalada, há seis meses, para apurar a cadeia de ações e omissões que resultaram na tragédia de Manaus. O trabalho exemplar dos senadores que não se vergaram ao terrorismo bolsonarista — mereçam o nome de “oposicionistas” ou “independentes” — revelou uma sequência de acontecimentos que resultaram numa verdadeira máquina da morte, acumpliciada à indústria de mentiras. E, como também restou óbvio, criou-se o meio ambiente ideal para os corruptos. E eles também apareceram para ajudar a matar.
Sim, o relatório de Renan é “uma narrativa”. Mas é uma narrativa histórica. Agora resta saber se o Ministério Público, em distintas esferas e instâncias, vai se aliar aos fatos ou será cúmplice da impunidade.
REYNALDO AZEVEDO ” SITE DO UOL” ( BRASIL)