Durante a pandemia, mas não apenas nesse período, Bolsonaro cometeu tantos crimes de responsabilidade que eu os incluiria numa categoria à parte, uma espécie de “juizado especial de pequenas causas”. Há provas também de que os crimes comuns praticados por ele foram vários.
Vamos agora subir uma etapa, mudar de estágio e falar sobre algo que Bolsonaro também praticou: crimes contra a humanidade.
Recentemente, os juristas Miguel Reale Júnior, Helena Regina Lobo da Costa, Alexandre Wunderlich e Sylvia Steiner, esta última ex-juíza do Tribunal Penal Internacional, elaboraram um parecer, peça de valor técnico e histórico inestimável, que aponta detalhadamente os inúmeros crimes praticados pelos representantes do Governo Federal no contexto da pandemia.
Uma parte do parecer é dedicada aos crimes contra a humanidade cometidos por integrantes da Presidência da República e do Ministério da Saúde. Destaca-se a ocorrência de tais delitos em dois contextos distintos: a completa ineficácia na proteção dos povos indígenas e uma série de fatos e condutas praticadas especificamente no estado do Amazonas.
Concluíram os renomados juristas que ficou “demonstrado que a situação caótica da saúde em Manaus agravou-se ao servir de palco para um experimento pseudocientífico levado a cabo pelo Governo Federal, através do presidente da República, o ministro da Saúde Eduardo Pazuello e demais servidores do Ministério da Saúde a eles subordinados servindo a população amazonense como verdadeira cobaia da administração desenfreada de medicamentos sem qualquer comprovação científica de eficácia no tratamento da Covid-19”.
Antes de contextualizar os novos fatos trazidos recentemente à tona pela CPI da Covid, que podem se somar aos que foram relatados no parecer, é essencial uma breve explicação sobre o que significa dizer que alguém cometeu um crime contra a humanidade.
O Estatuto de Roma, legislação que rege o Tribunal Penal Internacional, estabelece em seu art. 7º que a configuração de um crime contra a humanidade pressupõe a existência de um ataque contra a população civil; que esse ataque seja generalizado ou sistemático; e, por fim, que haja uma política de Estado na implementação e realização desse ataque.
Atualmente, para essa reflexão nos interessa, sobretudo, esse último ponto. Um crime contra a humanidade que tenha origem em uma política de Estado que vise atacar a população civil.
Desde os primeiros casos confirmados de contaminação por coronavírus no Brasil, Bolsonaro adotou uma estratégia para combater o que hoje é considerada a maior pandemia de nossa história: a imunidade de rebanho.
Para tanto, boicotou absolutamente todas as recomendações da comunidade médica internacional e adotou protocolos divergentes de praticamente todos os países do mundo: não incentivou o distanciamento social e o uso de máscaras; não investiu em pesquisa e não comprou vacinas antecipadamente; não isolou conhecidos focos da doença, e, por outro lado, patrocinou tratamentos com base no uso de drogas cuja comprovação científica ainda era duvidosa e que posteriormente tiveram sua ineficácia confirmada.
Os fatos revelados pela CPI da Covid, mais especificamente com relação à Prevent Senior, exibiram um cenário ainda mais grave. Até o momento, há indícios bastante sólidos de que a operadora de planos de saúde ocultou mortes de pacientes que participaram de um estudo para testar a eficácia de um tratamento que foi amplamente divulgado e, mais, incentivado pelo presidente da República.
Além disso, o Governo Federal, com dinheiro público, introduziu nacionalmente, por meio de um acordo com a referida operadora medicamentos para o tratamento da Covid-19, o chamado “kit covid”.
Ontem a CPI colheu o depoimento da advogada Bruna Morato. Não há como negar que seu relato, além de ter trazido novos e detalhados fatos, foi bastante incisivo.
Tais acusações, ainda que preliminares, devem ser objeto de aprofundamento não apenas por parte da CPI, mas do Ministério Público e das Polícias (e aqui é necessário que se faça um parêntese para relembrar que sempre, não importa a gravidade das acusações, deve-se respeitar a presunção de inocência). Somadas aos fatos já detalhadamente explicitados no parecer dos juristas, essas acusações podem conjuntamente comprovar que a política de estado do Governo Bolsonaro no combate à pandemia foi sim um crime. Crime imprescritível, sujeito a penas de prisão altíssimas: um crime contra a humanidade.
AUGUSTO DE ARRUDA BOTELHO” SITE DO UOL” ( BRASIL)