No planeta bolsonarista, policiais e militares devem ser, digamos, “livres” para pregar golpe de Estado — afinal, dizem esses amantes do espírito indômito, a Constituição consagra a “liberdade de expressão”. Mas, ora vejam!, estes mesmos patriotas não aceitam que entidades empresariais façam um manifesto em favor do cumprimento da Carta. Aí eles veem agressão. Algumas considerações antes de voltar a este ponto.
AS CONSIDERAÇÕES
Sabem por que o presidente Jair Bolsonaro exercita seu golpismo com desassombro e sai por aí a dizer que só a morte, a cadeia ou a vitória o contemplam, na certeza de que as duas primeiras hipóteses estão descartadas, restando apenas o triunfo?
1: Porque tem a certeza de que é enviado de Deus — no caso o Deus cristão. A hipótese é autodesmentida porque, por óbvio, esse “messianismo” não teria sobrevivido, se assim fosse, por incompetência do… Messias.
2: Porque está convicto de que a elite brasileira é formada por um bando de frouxos, que ou se encantam com uma voz autoritária — ou então a temem. Quando empresários caem na gargalhada ao vê-lo transformar até uma viola num fuzil, como aconteceu em Goiânia, no sábado, isso lhe dá a certeza, como bom fatalista trágico, de que ninguém resiste ao charme da truculência — assim como Luís Bonaparte tinha a certeza de que soldados não resistiam a champanhe e salsichas com alho. É uma piadinha de fundo histórico para quem leu “O 18 Brumário de Luís Bonaparte”, de Marx. Variante: “O 18 DE Brumário”… Sou fiel à versão da minha infância política.
DE VOLTA AO PONTO
Por que isso tudo? Entidades empresariais divulgariam nesta terça um manifesto — PRESTEM ATENÇÃO! — em favor do equilíbrio entre os Poderes. Levadas as palavras ao pé da letra, já estamos diante de uma aberração para tempos normais. Afinal, o texto, então, nada mais faria do que referendar o que está na Constituição.
Ocorre que não vivemos tempos normais. O texto foi pensado originalmente pela Fiesp. Bolsonaro está provocando tal reboliço nos mercados — na verdade, na economia como um todo — com a sua pregação golpista que o capital, o produtivo e o financeiro, resolveu manifestar a sua preocupação na esperança de algum freio de arrumação.
Notem que a ideia original partiu de um núcleo bolsonarizado: a Fiesp. Paulo Skaf alimentou até outro dia a esperança de que poderia ser abençoado pelo “Mito” numa disputa para o governo de São Paulo. Não só Bolsonaro tem outros planos — a absurda candidatura do carioca Tarcísio de Freitas — como seu apoio passou a ser indesejado. Até porque, caros, se um milhão de bolsonaristas lotassem a Paulista e largas imediações, ainda assim se teria pouco mais de 3% do eleitorado do Estado… A propósito, Tarcísio, diga já: onde ficam Sapopemba, Grajaú e Dois Córregos?
DEMOCRACIA? NEM PENSAR!
Não se conhecem os termos exatos do manifesto até agora, mas se dá como certo que se tratava apenas um chamamento à paz. Ocorre que só a guerra interessa a Bolsonaro. E, por isso, o tal texto foi visto como provocação, enfrentamento, confronto. E começou uma pressão imensa em favor do adiamento. E assim será feito. Mesmo com a adesão de mais de 200 entidades empresariais, Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara, conseguiu adiar a sua divulgação para depois do dia 7 de Setembro.
Em síntese: O Planalto não queria que um texto em favor do entendimento turvasse (!!!) os protestos em favor do golpismo. E aqueles que iriam apenas se manifestar em defesa da Constituição e da democracia resolvem adiar divulgação do dito-cujo. Lira chama a isso de “entendimento”. Vivemos de tal sorte um momento excepcional que o entendimento, então, não se estabelece mais entre democratas com visões distintas sobre as questões “A” ou “B”. Agora é preciso negociar com golpistas.
O EPISÓDIO FEBRABAN
A primeira reação ao texto partiu do presidente da Caixa, Pedro Guimarães, o bolsonarista fanático que comanda o banco estatal. Juntou-se a ele Fausto Ribeiro, que preside o Banco do Brasil — que, é bom deixar claro, é uma empresa de economia mista. Nem por isso o homem é menos fiel ao “capitão”. À frente da instituição, Ribeiro passou a exigir trabalho presencial mesmo de funcionários que poderiam executar suas tarefas à distância. Não acreditar no vírus — na hidroxicloroquina, sim — é precondição intelectual para fazer parte da turma. Guimarães é personagem frequente das patéticas lives de Bolsonaro.
Pois bem: com o apoio do ministro da Economia, Paulo Guedes, e, consta, do presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto (para a decepção de muitos, não minha), Guimarães e Ribeiro ameaçam deixar a Febraban se a entidade endossar o manifesto. Direi mais uma vez: trata-se de um texto em defesa do equilíbrio entre os Poderes. Mas, por certo, a Bolsonaro interessa o desequilíbrio.
Aqui e ali vejo alguns tontos a aquiescer com a tese da impropriedade de um banco estatal e outro com capital majoritariamente público integrarem uma entidade que assinasse um manifesto dessa natureza. Afinal, diz-se, o governo é o acionista majoritário de ambos. Errado! O governo não é acionista de coisa nenhuma. A detentora das ações que controlam as instituições é um ente permanente: a União. O governo é só o grupo transitório que chega ao poder por intermédio de eleições — ao menos por enquanto…
CONDUÇÃO POLÍTICA
Assim, se alguém tinha alguma dúvida de que empresas estatais ou mistas estão submetidas a um controle político, bem, então não tem mais. Campos Neto também queima o filme. Pergunta óbvia: temos uma Banco Central que é “independente” (de quem?), mas um presidente da instituição que não é?
Reitere-se, então, a particularíssima noção que essa canalha tem do que vem a ser democracia. A se juízo, ela pode conviver com um coronel da ativa da PM que faz proselitismo político explícito, agredindo chefes de Poderes — menos Bolsonaro, claro! — e o governador de Estado. Pode conviver com um psicopata que grava vídeos dando instruções para supostos “cristãos” atirarem em agentes públicos… Pode conviver com pregações golpistas, inclusive do chefe do Poder Executivo. Mas um banco público não pode ser associado a uma entidade que divulga um manifesto em defesa do equilíbrio entre os Poderes.
A que outros interesses do bolsonarismo Guimarães e Ribeiro subordinam as respetivas instituições públicas que presidem? Se Caixa e Banco do Brasil não podem subscrever —INDIRETAMENTE, PORQUE SEUS RESPECTIVOS NOMES NEM APARECERIAM — um documento em favor da Constituição, a que sortilégios essas gigantescas instituições financeiras estarão submetidas com o intuito de fazer as vontades do ogro de Brasília, que prega abertamente o golpe de Estado?
PRUDÊNCIA
Parece que é o caso de focar melhor as lentes com que tais empresas são analisadas pelo mercado, não é mesmo? Se CEF e Banco do Brasil não podem conviver, sob seus respectivos comandos, com a defesa da democracia, levanta-se a óbvia suspeita de que não teriam dificuldades de se alinhar com procedimentos contrários a ela , o que multiplica muitas vezes a necessidade de busca de transparência sobre suas operações — também as de mercado.
Não! Eu não tenho nenhuma suspeita em particular. Tenho apenas a lógica e o que ensina a psicologia. Pergunta-se: do que serão capazes, no escuro dos corredores do poder, aqueles que, submetidos aos refletores, aceitam ser protagonistas de tal vexame? Se a defesa da democracia é considerada inaceitável, então tudo é permitido por lá.
CONCLUO
Consta que o manifesto virá, ainda que depois da manifestação golpista do dia 7. Vamos ver. Venha ou não, o fato é que ação desestabilizadora de Bolsonaro chegou à economia, junto com a inflação — ainda infensa à elevação dos juros de Campos Neto –, com o baixo crescimento do ano que vem, com a crise hídrica…
E onde está aquele que deveria ter a voz segura de um comandante? Ora, tentando afundar o navio.
REINALDO AZEVEDO ” SITE DO UOL” ( BRASIL)