O surgimento da disciplina denominada “história contemporânea”, na educação média e superior, aconteceu com a reforma do ensino promovida por Victor Duruy na França, em 1867, definindo-a como “o estudo do período transcorrido de 1789 ao Segundo Império”. Paralelamente, com datação semelhante, o líder socialista Georges Sorel, fora da institucionalidade oficial, ensinou “história contemporânea” na Escola Livre de Ciências Políticas desde 1870.
No século e meio transcorrido, sua compreensão e formulação sofreu inúmeras modificações e precisões. A definição da Revolução Francesa (“1789”) como o ato fundador das contemporaneidades teve longe de ser ponto pacífico: o regime fascista italiano, inimigo da tradição revolucionária, jacobino-comunista ou liberal, datou seu início, nos manuais de ensino secundário, na Restauração iniciada em 1815 com o Congresso de Viena.[ii]A questão historiográfica se subordinou à clivagem política: a periodização e os estudos históricos deviam considerar o surgimento de uma nova era da história – cuja natureza já era objeto de conceituações filosóficas e políticas, e de reações literárias e estéticas – com características que se supunham inteiramente novas. O conceito de “novo”já era dominante na ciência e na filosofia desde os inícios da modernidade, associado, como veremos, à ideia de “progresso”.
A noção de “contemporaneidade” pressupõe a divisão da história em períodos, preservando sua unidade e continuidade. A periodização da história é tão velha quanto as primeiras sociedades humanas – sejam elas ou não chamadas de “civilizações”. Ela nunca se referiu apenas a uma cronologia, quando ela existia, mas também à tentativa de dotar à história de um sentido e de uma estrutura, mesmo aparecendo sob um invólucro mítico. A ideia de uma “idade original de ouro” e de uma queda subsequente, na qual se baseou o relato mítico das idades do mundo, pode ser considerada como uma manifestação básica universal dos povos históricos; já se encontrava na Babilônia, no antigo Irã, na China ou em povos ameríndios. Foi com os gregos (Hesíodo, Os Trabalhos e os Dias) que surgiu a tentativa de uma “divisão filosófica dos períodos históricos” (idades de ouro, prata, bronze – ou heroica, nos povos orientais – e de ferro), que foi retomada e desenvolvida pelos romanos. A ideia cíclica, ou de “eterno retorno”, combinou-se com aquela de uma sucessão de períodos histórico-culturais diferenciados – de origem divina ou humana.
A concepção cristã, baseada originalmente, como a do judaísmo, no Antigo Testamento, teve como pivô a reconciliação da humanidade com Deus através do Cristo, que informa até o presente o calendário mundial. Santo Agostinho (A Cidade de Deus) distinguiu, com base nisso, seis eras da história humana: infantia, pueritia, adolescentia, iuventus, senior aectas e senectude (da revelação do Cristo até o Juízo Final). O pensamento humanista-renascentista descartou a ideia de uma “era final” da história e propôs um “sistema tripartite” (Antiguidade – Idade Média – Modernidade), que se impôs e preparou o caminho para a classificação e conceitualização histórica do “tempo presente”: Philippe Melanchton, no final do século XVI, já usou as expressões diferenciadas de “tempo moderno” e “tempo presente”.O esquema tripartite humanista ingressou nos manuais de história no século XVII com Christoph Cellarius, que publicou a tríade Historia Antiqua, Historia Medii Aevi e Historia Nova, no final desse século.
Na expressão mais desenvolvida do Iluminismo, Hegel dividiu os períodos da história com base na sucessão dos grandes Estados, expressão das civilizações, seguindo o modelo dos impérios do mundo: orientais, grego, romano, germânico. Embora inspirado por Hegel, Karl Marx descartou a compreensão (e periodização) da história baseada em critérios “superestruturais” (Estados, religiões ou ideologias) pondo o trabalho e a produção (em primeiro lugar, material) na sua base. Eis um fragmento abundantemente citado: “Em grandes traços, os modos de produção asiático; antigo; feudal e burguês moderno podem ser qualificados como épocas progressivas da formação social econômica. As relações de produção burguesas são a última forma contraditória do processo de produção social, contraditória não no sentido de uma contradição individual, mas de uma contradição que nasce das condições de existência social dos indivíduos; porém, as formas produtivas que se desenvolvem no seio da sociedade burguesa criam, ao mesmo tempo, as condições materiais para resolver esta contradição. Com esta formação social, termina a pré-história da sociedade humana”.
Continuidade e ruptura das formas sociais precedentes, a sociedade burguesa (ou “capitalismo”, seu nome hodierno) era a forma mais desenvolvida da produção social, base comum de todas as sociedades humanas. A sucessão, progressiva ou não, dos modos de produção, com a passagem de um ao outro via revoluções sociais, passou a ser a base da teoria marxista da história, embora a quase totalidade dos historiadores marxistas rejeitasse a ideia de um “modelo universal” de etapas históricas, que não parece ter sido em absoluto a intenção de Marx e Engels.Poderia essa ideia básica se combinar com a periodização existente, que continuou hegemônica nas instituições de ensino?
A concepção de uma “contemporaneidade histórica” se expressou a partir do fechamento mais ou menos vitorioso do ciclo das grandes revoluções democráticas na Europa e na América, que criou tendencialmente um mundo baseado em seu ideário (nação, democracia representativa, reconhecimento parcial ou universal da igualdade, direitos humanos básicos), embora ele se restringisse inicialmente a um pequeno grupo de países. A “era contemporânea” definiu-se inicialmente pela não-contemporaneidade, ou seja, pelas etapas do desenvolvimento humano consideradas historicamente superadas; chegou-se a um consenso em definir a “Idade Contemporânea” como o período cujo início remontaria à Revolução Francesa, marcado ideologicamente pelo Iluminismo, a defesa do primado da razão e o desenvolvimento da ciência como garantia de progresso civilizatório, características de uma nova era que superava as precedentes.
Buscando-se um fundamento para além do acontecer político, jurídico e ideológico (ou da história reduzida à evolução dos Estados e das religiões, como Karl Marx qualificou criticamente a historiografia de seu tempo), chegou-se a uma definição da contemporaneidade pelo desenvolvimento e consolidação do capitalismo e pelas disputas das grandes potências europeias por territórios, matérias-primas e mercados. Tal conceituação abalou o modelo inicial, pois após duas grandes guerras mundiais, o ceticismo abalou a crença de progresso inevitável da civilização: nações “avançadas e instruídas” eram capazes de cometer atrocidades “dignas de bárbaros”.
Um segundo aspecto questionado desse critério foi seu natural posicionamento eurocêntrico, pois o capitalismo, embora tendencialmente mundial desde seus primórdios, nasceu indubitavelmente na Europa (ocidental), o que levou a questionar a “validade do modelo europeu de divisão histórica”, baseado exclusivamente em sociedades capitalistas (excluindo, portanto, as que não o eram), ou seja, a divisão de história em períodos baseada num critério euro-centrado, que seria a base para posicionamentos ideológicos legitimadores da escalada imperialista das potências europeias. Finalmente, a datação iniciada em na Revolução Francesa ou na Revolução Americana (1776), em se pondo no seu centro metodológico a história do capitalismo, não pareceu adequada, pois a “era do capital” teve sua origem nos séculos precedentes, sendo situada no século XVI, por exemplo, por autores tão divergentes quanto à origem e natureza do capitalismo como Max Weber ou Karl Marx.
Dentro de uma contemporaneidade polêmica e controvertida, desenvolveu-se nas últimas décadas uma “história do tempo presente” dedicada à investigação de permanências e rupturas temporais não superadas, embora nem sempre de modo explícito ou reconhecido, buscando pôr em seu contexto histórico as sociedades hodiernas por meio da investigação da construção de seu passado e de seus usos públicos e políticos: o tempo presente estaria permeado por passados dos mais diversos tipos, inclusive bem remotos (pré-contemporâneos) ou propositalmente ocultos pelo “discurso histórico oficial”. A dimensão política da “história do tempo presente” é bastante evidente, pois está vinculada ao surgimento de políticas de memória, à investigação de traumas históricos nacionais e mundiais, ao crescimento de reivindicações políticas de reparação (de descendentes de escravos ou de vítimas do Holocausto judeu, por exemplo) e à revalorização do acontecimento para entender o processo histórico, superando uma abordagem unilateralmente centrada na “longa duração” (as continuidades inconscientes ou semiconscientes de longo prazo, por trás da “fumaça” dos eventos) ou nos processos seculares.
Mesmo aceita, essa abordagem não elimina as categorias gerais de análise de um período histórico delimitado, se as considerarmos as únicas capazes de ir além da experiência e evidência imediatas, o que é o significado e fundamento da pretensão científica da história. Se aceitarmos, como hipótese de partida, que o desenvolvimento do capitalismo, em suas diversas configurações espaciais e temporais, constitui o eixo interpretativo da história contemporânea, na medida em que o capitalismo foi o único sistema histórico de produção que se expandiu mundialmente, devemos admitir que, se a história do capital pode ser rastreada a partir de tempos remotos, a história do capitalismo é bem mais recente, mas não tão recente quanto o último quartel do século XVIII, sendo sua origem objeto de controvérsias.
Sua relação social fundante é a existente entre trabalho assalariado e capital: a história das sociedades contemporâneas estaria determinada pelas relações estabelecidas com base nesse fundamento, sua dinâmica e contradições. Mobilidade social, carreira baseada no mérito, vínculo entre educação e ascensão social, igualdade formal de oportunidades, flexibilidade profissional, mercantilização geral, egoísmo hedonista, entre outras, seriam suas manifestações derivadas. Seriam, inclusive, a reformulação em novos termos de características pré-existentes: “Ainda que várias instituições (dinheiro, escrita, leitura, religião) presentes no feudalismo possam ter semelhanças de família com o capitalismo, apenas no interior das emergentes relações capitalistas, da gramática histórica do capital, é que passamos a encontrar novos valores sociais como ‘individualismo’, ‘concorrência’, ‘lucro’, ‘mobilidade social’ e o novo modo de produção, com sua nova divisão do trabalho”.
A origem do conceito de “capitalismo” não é difícil de rastrear. O termo “capital” tem sua origem no latim capitale, capitalis (“principal, primeiro, chefe”), que vem, por sua vez, do indo-europeu kaput, “cabeça”. É a mesma etimologia da “cidade capital” (ou “primeira cidade”) das nações modernas, ou do italiano capo. Em sentido amplo, a noção de “capital” foi usada como sinônimo de riqueza, sob qualquer forma em que ela se apresentasse ou como quer que ela fosse usada. Em seu sentido moderno, o conceito surgiu na Itália nos séculos XII e XIII, designando estoques de mercadorias, somas de dinheiro ou dinheiro com direito a juros. No século XIII já se falava, na Itália, em “capital de bens” de uma firma comercial. O jurista francês Beumanoir usou o termo no século XIII para referir-se ao “capital” de uma dívida. Seu uso se generalizou depois como soma do dinheiro emprestado, diferenciada dos juros do empréstimo.
O termo “capitalista”, por sua vez, refere-se ao proprietário de capital, seu uso data de meados do século XVII. O Hollandische Mercurius usou-o, pioneiramente (Holanda foi uma das nações pioneiras do capitalismo), entre 1633 e 1654, para se referir aos proprietários de capital comercial. David Ricardo, nos Principles of Political Economy and Taxation (de 1817) também o usou. Seu predecessor Adam Smith, porém, não o usou em A Riqueza das Nações (1776), onde se referiu ao novo sistema econômico como “liberalismo”. O termo foi usado em 1753 na Encyclopaedia Britannica, como “estado de quem é rico”; na França, ele já era usado desde o século XVIII para se referir aos proprietários industriais.
Rousseau o usou em 1759, em sua correspondência. Pierre-Joseph Proudhon usou-o em O que é a propriedade? (1840) para se referir aos proprietários em geral. Benjamin Disraeli, futuro premiê da Grã-Bretanha, o usou em seu romance Sybil (1845), também chamado The Two Nations, em que o pano de fundo eram as condições atrozes de existência da nova classe operária da Inglaterra. Marx e Engels falaram do Kapitalist no Manifesto Comunista (1848) para se referir aos proprietários de capital. O termo foi também usado por Louis Blanc, socialista republicano, em 1850. Marx e Engels se referiram ao sistema capitalista (Kapitalistisches System) e ao modo de produção capitalista (Kapitalistische Produktionsform) em Das Kapital (1867). Finalmente, “por volta de 1860, uma nova palavra entrou no vocabulário econômico e político do mundo: capitalismo”.
Como relação social entre empresários proprietários de capital e trabalhadores “livres” (livres para vender sua capacidade de trabalho, sem mais nada para vender) formas embrionárias de capital existiram desde as primeiras sociedades históricas. Considerando as “formas antediluvianas do capital” (o capital comercial ou o usurário) como plenamente capitalistas, diversos autores postularam a atemporalidade e/ou naturalidade do capitalismo, como um sistema econômico-social que se poderia projetar indefinidamente em direção do passado, considerando capitalista qualquer sociedade em que existissem dinheiro e capital comercial ou portador de juros. Essas sociedades, porém, não eram capitalistas, embora grande parte de sua produção fosse direcionada para o mercado, pois não estavam alicerçadas em relações capitalistas de produção: “Falar de ‘capitalismo’ antigo ou medieval, porque havia financistas em Roma ou mercadores em Veneza é um abuso de linguagem. Esses personagens jamais dominaram a produção social de sua época, assegurada em Roma pelos escravos e na Idade Média pelos camponeses, sob os diversos estatutos da servidão. A produção industrial da época feudal era obtida quase exclusivamente sob a forma artesanal ou corporativa. O mestre artesão comprometia seu capital e seu trabalho e alimentava em sua casa seus companheiros e seus aprendizes. Não há separação entre os meios de produção e o produtor, não há redução das relações sociais a simples laços de dinheiro: portanto, não há capitalismo”.
Qual foi o diferencial histórico do capitalismo? O capital é uma forma determinada de valor, é valor que se expande de modo indefinido (sine die e sem limites quantitativos). No capitalismo, por força da circulação e da concorrência a simples preservação do valor não é possível: é necessário que o capital se reproduza e se expanda, não apenas através da reprodução simples (em que os valores dos capitais são repostos permanentemente na produção, sem incremento nem redução), mas como reprodução ampliada, como acumulação de valor e mais-valia, como “reinvestimento” da mais-valia obtida no ciclo precedente e acumulação de capital.
O senhor feudal, diversamente, se satisfazia quando ele recebia suficiente renda de seus camponeses para sustentar a si próprio, sua família e seus empregados, dentro do seu modo de vida. O capitalista, ao contrário, tem um “apetite voraz”, uma “fome de lobisomem por mais-trabalho”, ou seja, por lucros, que brota da necessidade de combater seus concorrentes, com vistas a superá-los, ou ir à falência (desaparecer do mercado). No capitalismo, a criação do valor depende da competição entre mercadorias e capitais, o que pressupõe a generalização da produção de mercadorias.
O capitalismo nasceu da apropriação da esfera da produção social pelo capital: “A subordinação da produção ao capital e o aparecimento da relação de classe entre os capitalistas e os produtores devem ser considerados o divisor de águas entre o velho e o novo modo de produção”. Nesse novo sistema econômico, a origem do lucro se baseia na troca entre capital e trabalho assalariado, na qual se baseia a produção moderna, que a reproduz e amplia constantemente: “O processo de produção capitalista reproduz, mediante seu próprio procedimento, a separação entre força de trabalho e condições de trabalho. Ele reproduz e perpetua, com isso, as condições de exploração do trabalhador”. Os aspectos comuns a todos os capitais surgem da expansão do valor, produto da exploração do trabalhador na produção.
Na era contemporânea, todas as categorias econômicas se apresentam de forma quantitativa, reduzidas, em última instância, a dinheiro; no entanto, somente no capitalismo a forma dinheiro, muito mais antiga do que ele, desenvolve todas suas potencialidades, e se transforma no “signo absoluto”, o mediador geral das relações sociais. O dinheiro, no entanto, é quase tão antigo quanto a troca comercial, na medida em que esta superou o limite do escambo realizado entre comunidades isoladas; sua origem remonta ao culto dos sacrifícios orientado para a fecundidade da terra, dos animais e das mulheres.
Na Roma antiga, o dinheiro era cunhado no templo de Juno, deusa do matrimônio identificada com a Hera grega, também chamada de Moneta, denominação que sobreviveu em todas as línguas de origem latina: “Inicialmente, as moedas só eram cunhadas em quantidades grandes, as que precisavam os funcionários do templo para seu comércio exterior em dinheiro. Havia sempre um pequeno bazar onde os administradores do templo trocavam vacas por produtos da terra. Terminada a cerimônia, os servidores do templo reuniam as vacas, que podiam vender no dia seguinte. Esses rituais sacrificiais permitiam às autoridades acumular grandes tesouros mediante a troca de animais votivos pelos produtos da terra, com o que se teve o motivo e a necessidade de um comércio muito ativo, sobretudo com terras longínquas; os administradores do templo forçosamente foram se animando em direção de negócios em dinheiro cada vez mais audazes”.O dinheiro, portanto, surgiu não só para facilitar as trocas, mas com vistas ao lucro, sendo ele próprio “capital em potencial”.
Do uso de objetos diversos de uso comum como moeda passou-se para os metais preciosos, e daí para o papel moeda fiduciário prometendo pagar ouro ou prata, seguido pelo papel moeda de curso forçado, experimentado pela primeira vez em larga escala, no Ocidente, na França de inícios do século XVIII, embora haja evidências de seu uso na China um milênio antes. Os metais preciosos conquistaram o papel de mercadoria-dinheiro através de um longo processo histórico: “Na origem, serve como moeda a mercadoria mais trocada como objeto necessário, aquela que mais circula, a que, em uma determinada organização social, representa a riqueza por excelência: o sal, os couros, o gado, os escravos (…) A utilidade específica da mercadoria, seja como objeto particular de consumo (os couros), seja como instrumento de produção imediato (os escravos) a transforma em dinheiro. Mas, na medida em que o desenvolvimento avança, ocorre o fenômeno inverso: a mercadoria que menos é objeto de consumo ou instrumento de produção passa a desempenhar melhor aquele papel, pois responde às necessidades da troca como tal. No primeiro caso, a mercadoria se converte em dinheiro por causa de seu valor de uso específico; no segundo, seu valor de uso específico decorre do fato de servir como dinheiro. Durável, inalterável, passível de ser dividida e somada, transportável com relativa facilidade, pode conter um valor de troca máximo em um volume mínimo; tudo isso torna os metais preciosos particularmente adequados nesse último estágio”.[xiii]
O capitalismo pressupõe a transformação do dinheiro em capital, baseado na obtenção do lucro através da exploração do trabalho alheio, não no logro comercial ou na extorsão usurária. Essa concepção da transformação qualitativa da função do dinheiro na era do capital esteve longe de ser consensual. Georg Simmel, no início do século XX, publicou a “obra prima da filosofia dos valores”, a Filosofia do Dinheiro: o comércio seria o elemento decisivo da civilização; os homens civilizados seriam “animais que praticam o intercambio”. A troca absorveria a violência social-animal preexistente nos seres humanos, e o dinheiro universalizaria a troca. A modernidade se caracterizaria por traços intrinsecamente ligados a vida monetária, como a aceleração do tempo, a monetarização das relações sociais, a ampliação dos mercados, a racionalização e quantificação da vida e a inversão de meios e fins.
O dinheiro seria o deus da vida moderna, pois na modernidade tudo gira ao redor do dinheiro e, ao mesmo tempo, o dinheiro faz tudo girar.O dinheiro seria, para Simmel, a categoria transcendental da socialização humana. Nessa filosofia dos valores, o capitalismo não seria uma ruptura em relação às fases históricas precedentes, mas um fenômeno definidor de um “processo civilizatório” sem solução de continuidade. O ponto nodal da passagem para a sociedade civilizada seria a passagem da economia natural para a economia monetária.
Na sociedade do capital, porém, a mercadoria-dinheiro não é fim, mas meio da acumulação de capital. O capitalista não é o entesourador, mas o investidor (industrial ou agrário; comercial ou financeiro). Na “sociedade do investimento”, com a separação do produtor dos meios de produção e a acumulação deles no pólo social oposto, o dos proprietários desses meios, o dinheiro reúne as condições para atuar como capital, tornando possível o surgimento da reprodução ampliada e da acumulação de capital, e desfraldando todas suas funções potenciais. Foi só nessas condições que o valor dos metais preciosos se converteu, num longo processo, na referência da moeda fiduciária, e deu lugar às modernas teorias do dinheiro. A teoria pioneira do padrão-ouro, a “teoria quantitativa da moeda”, foi elaborada por David Hume em 1752, sob o nome de “modelo de fluxo de moedas metálicas” e destacava as relações entre quantidades de moeda e níveis de preço. Pressupunha-se que cada banco, instituição já desenvolvida nas feiras medievais, era obrigado a converter as notas bancárias por ele emitidas em ouro (ou prata), sempre que solicitado pelo cliente.
Desse modo, só na sociedade burguesa o dinheiro desenvolveu suas potencialidades como expressão da forma total ou desenvolvida do valor (as antigas trocas comerciais podiam se realizar sem dinheiro, não assim a acumulação capitalista), potencialidades já presentes na mercadoria-dinheiro, reconhecida socialmente como forma monetária do valor. Nas palavras de Marx: “O ouro não desempenha o papel de moeda diante das mercadorias, a não ser porque já desempenhava diante delas o papel de mercadoria. Igual a elas, funcionava também como equivalente, às vezes acidentalmente em trocas isoladas, às vezes como equivalente particular com outros equivalentes. Pouco a pouco começa a funcionar como equivalente geral, dentro de limites mais ou menos amplos. Desde que conquista o monopólio dessa posição na expressão do valor do mundo das mercadorias, transforma-se em mercadoria-dinheiro, e é só a partir do momento em que já se transformou em mercadoria-dinheiro que a forma geral do valor se transforma em forma monetária”.
As formas modernas do capital se desenvolveram inicialmente, na Europa ocidental, através de um longo processo de transição. Com a dissolução do velho Império Romano, a economia da Europa passou a ser controlada pelos poderes locais; seu comércio interno e externo entrou em declínio: “O efeito mais evidente da crise econômica e política, nos primeiros cinco séculos depois da queda do Império Romano, foi a ruína das cidades e a dispersão dos habitantes pelos campos, onde podiam extrair da terra seu sustento. O campo foi dividido em grandes propriedades (de cinco mil hectares em média, ou maiores). Ao centro se encontrava a residência habitual do proprietário, a catedral, a abadia e o castelo; as possessões eram muitas vezes espalhadas a grandes distâncias. Nessa sociedade rural, que formava a base da organização política feudal, as cidades tinham um lugar marginal; não funcionavam como centros administrativos, e em mínima parte como centros de produção e de trocas”.
O retrocesso comercial e produtivo europeu se estendeu a partir do século IV até o século XI, na Alta Idade Média. O comércio de longa distância se desenvolveu, revigorado, na emergente Arábia islâmica: os árabes estabeleceram rotas comerciais de longo percurso com Egito, Pérsia e Bizâncio. No meio tempo, a população europeia se transformava em virtude das invasões externas. Ainda assim, “mesmo nos momentos de maior depressão, a Escandinávia, a Inglaterra e os países bálticos continuaram seu comércio com Bizâncio e com os árabes, principalmente através dos russos. Mesmo o Império Carolíngio continuou vendendo, para o norte, sal, vidro, ferro, armas e pedras de moinho”. Os restos do antigo Império Romano eram uma fortaleza sitiada, pelo Sul, pelos árabes, pelo Norte pelos vikings escandinavos, ao Leste pelos germânicos e hunos, cujos avanços territoriais vieram configurar, através de sucessivas ocupações e misturas, a população da Europa moderna, em cuja trajetória se originou o capitalismo.
O vazio deixado pelo fim do Império Romano foi, finalmente, preenchido. A conquista árabe-islâmica, que começou no século VII, rompeu a unidade do Mediterrâneo existente na Antiguidade e destruiu a “síntese cristão-romana”. Com a expansão do Islã a partir do século VII, o comércio de longo alcance espalhou-se rapidamente para a Espanha, Portugal, o Norte da África e a Ásia, configurando o que veio a ser chamado de “economia-mundo”, com um centro extra-europeu: “É difícil dar cifras ao comércio antigo [extra-europeu] de longa distância, quando comparado com a produção. Esta incerteza permitiu minimizar sua importância, considerando esses intercâmbios como limitados apenas aos produtos de luxo, isto é, negócios marginais entre elites dirigentes. Essa negligência é muito lamentável e solidária do eurocentrismo. Ela permitiu considerar anedótica, na evolução econômica da Europa, seu recuo do grande comércio entre os séculos IV e XII, aproximadamente. Nesses oito séculos, o restante do continente eurasiático conheceu uma expansão inédita do comércio à distância, e uma sofisticação de seus atores e técnicas”.
A partir do século XII, o renascimento do grande comércio europeu afetou suas relações econômicas e sociais internas, determinando o declínio do feudalismo e a tendência para a organização da economia em unidades amplas baseadas na economia monetária e mercantil. As cidades italianas quebraram o monopólio marítimo dos árabes no Mediterrâneo. Uma série de acontecimentos precipitou uma nova economia e uma nova sociedade: “Do século VII ao XI, o Ocidente se esvaziara de metais preciosos, mas o ouro e a prata retornaram com as Cruzadas. Os meios monetários cresceram, a moeda de ouro recomeçou sua circulação. São Luís a oficializou na França; o ducado de Veneza e o florim de Florença, moedas de ouro, jogaram um papel só comparável na história antiga ao dracma em Atenas”. Para sua expansão externa, Europa aproveitou conhecimentos e rotas marítimas traçadas pelos chineses: o Ocidente europeu pós-medieval criou, com base nessas e outras apropriações, uma “nova civilização”. Pois as peculiaridades do processo ensejaram ali a passagem para um sistema econômico-social em que as relações puramente mercantis se apossaram da esfera produtiva, através da venda generalizada da força de trabalho, como não aconteceu, por variados motivos, em outras sociedades nas quais o comércio interno e externo chegou a atingir importantes dimensões.
Ao se situar o capital no centro motor da contemporaneidade, situa-se também nele, objetivamente, seu oposto, o trabalho social baseado na liberdade de contratação (e demissão). Foi graças a isso que, na era moderna, chegou-se à ideia do trabalho ser o único elemento ativo para a criação de riqueza (nos primeiros estágios da sociedade o trabalho material não era concebido como produtor de riqueza).Na velha tradição judaico-cristã, o trabalho se apresentava como carga, pena e sacrifício impostos em virtude da perda e da queda do homem para uma condição de miséria na vida terrena. Quando o cristianismo se impôs no Império Romano, essa tradição se tornou funcional à sociedade que emergiu do declínio do Império. Na sociedade medieval, a riqueza não era identificada com o trabalho: a questão essencial era a segurança dos bens e das pessoas, que não mais podia ser garantida pelo poder imperial.
Assim, grande comércio, moeda, lucro e formas primitivas do salário, precederam o capitalismo; setores econômicos protocapitalistas existiram no mundo antigo, e aspectos iniciais do capitalismo mercantil floresceram na Europa durante a Baixa Idade Média. O capitalismo moderno, no entanto,fez sua primeira aparição nos séculos XIV e XV em cidades mediterrâneas, especialmente em cidades costeiras italianas, mas a era histórica em que se projetou mundialmente data do século XVI, quando a acumulação de capital se transformou na alavanca da transformação econômica de algumas sociedades, atingindo tanto a produção como a distribuição e o consumo: seu surgimento deveu-se à forte emergência comercial do Norte da Europa, que correspondeu à passagem da preponderância das cidades-estados italianas para a dos Estados organizados e “racionalizados” do século XVII europeu. Durante esses séculos foram reunidas as condições do capitalismo como modo de produção dominante, com os dois pólos da sociedade capitalista, os proprietários dos meios de produção e os trabalhadores despossuídos de meios de trabalho.
Ideologicamente, a Reforma Protestante expressou religiosamente a ideia de trabalho da nascente sociedade burguesa, em que se distinguiu por primeira vez o trabalho das outras atividades humanas. O estatuto do trabalho mudou com esse desenvolvimento. O “trabalho”, como conceito abstrato definidor de um conjunto muito variado de atividades, foi “uma invenção da modernidade”. Sendo o exercício do trabalho em qualquer regime social um dispêndio físico de energia, somente no regime capitalista a força de trabalho humana passou a possuir a particularidade de ser fonte de valor como fenômeno social; o valor de um produto se transformou em uma função social, não uma função natural adquirida por representar um valor de uso ou trabalho no sentido fisiológico ou técnico-material.
A medição do suporte do valor, o trabalho, se realiza pelo tempo: sua medição e divisão possuem especificidades na sociedade capitalista, na qual o tempo é medido em horas, minutos, segundos e até em frações de segundo: “O relógio não é só um instrumento que mede as horas que passam; é um meio para sincronizar a ação humana. O relógio, não a locomotiva, é o instrumento-chave da modernidade industrial. Em relação à quantidade determinável de energia, à padronização, aos automatismos, ao seu produto peculiar, à medida apurada do tempo, o relógio foi de longe a máquina mais importante da técnica moderna. Está em primeiro lugar na lista porque atinge uma perfeição para a qual tendem todas as outras máquinas”.
O relógio moderno (diverso dos antigos relógios baseados no sol, na água, na areia, em sistemas mecânicos) nasceu de uma revolução científica, “a Grande Invenção: o uso de um movimento oscilante (para cima e para baixo, para frente e para trás) para fixar o fluxo temporal. Caberia ter esperado algo bem diferente: para medir o tempo, fenômeno contínuo e unidirecional, o instrumento mais adequado, deveria também basear-se em um fenômeno contínuo e unidirecional”.
Paralelamente, o desenvolvimento da indústria capitalista desqualificou o trabalho (as habilidades concretas de cada trabalhador passaram a ser secundárias na produção social, na medida em que se desenvolveu o maquinismo) tornando possível sua abstração, o nascimento do conceito hodierno de “trabalho”. A partir dele, Marx considerou o trabalho em geral como o mediador entre o homem social e a natureza e como fator primordial da autoconstrução da humanidade. O trabalho era uma “categoria totalmente simples”, a “mais simples e antiga em que os homens aparecem como produtores”. O caráter universal objetivo da categoria de trabalho era anterior ao capitalismo, mas não seu significado econômico moderno: “O trabalho parece ser uma categoria totalmente simples. Também a representação do trabalho na sua universalidade – como trabalho em geral – é muito antiga. Porém, considerando essa simplicidade do ponto de vista econômico, o trabalho é uma categoria tão moderna quanto as relações que dão origem a essa abstração simples”.
Somente em sua forma moderna, quando o esforço humano se apresentou como indiferente em relação a um trabalho determinado, como facilidade de passar de um trabalho para outro devido ao predomínio da máquina (com o trabalho transformado num apêndice daquela), como meio geral de criar riqueza, como trabalho abstrato e não como destino particular do indivíduo, é que se pôde produzir teoricamente uma categoria “tão moderna quanto as relações que lhe dão origem”. A distinção entre as funções que os diversos tipos de trabalho exerciam na reprodução do capital já existia na economia política clássica; a distinção entre trabalho simples e complexo (qualificado), e entre trabalho produtivo e improdutivo, atingiu, no entanto, sua maturidade com o capitalismo. Com ele, a indústria se tornou o pólo dinâmico da reprodução do capital; o lucro comercial ou os juros bancários deixam de ser seu momento dominante. As categorias de trabalho produtivo e improdutivo adquiriram sua maturidade, sendo produtivo o trabalho que produz mais-valia (lucro do capital), e improdutivo aquele que não o faz.
O capitalismo, por outro lado, ostenta a peculiaridade de não possuir mecanismos através dos quais a sociedade pudesse decidir coletivamente o quanto de seu trabalho será direcionado a tarefas particulares. O desenvolvimento da divisão de trabalho significa que a produção em cada local de trabalho é separada dos outros locais: cada produtor não pode satisfazer suas necessidades a partir de sua própria produção. A reprodução do capital, devido a isso, não é idêntica à reprodução do ser social. Pela transformação da força de trabalho em mercadoria, o capital criou um modo de produção baseado na exploração universal.
Marx estabeleceu essa premissa analítica: “A força de trabalho nem sempre foi uma mercadoria. O trabalho nem sempre foi trabalho assalariado, isto é, trabalho livre. O escravo não vendia sua força de trabalho ao proprietário de escravos, assim como o boi não vende seus esforços ao camponês. O escravo é vendido, com a sua força de trabalho, de uma vez para sempre, ao seu proprietário. É uma mercadoria que pode passar das mãos de um proprietário para as mãos de outro. Ele próprio é uma mercadoria, mas a força de trabalho não é uma mercadoria sua. O servo só vende uma parte da sua força de trabalho. Não é ele quem recebe um salário do proprietário da terra: pelo contrário, o proprietário da terra é que recebe dele um tributo. O servo pertence à terra e rende frutos ao dono da terra”.
Diversa é a situação no capitalismo: “O operário livre vende-se a si mesmo e, além disso, por partes. Vende em leilão oito, dez, doze, quinze horas da sua vida, dia após dia, a quem melhor pagar, ao proprietário das matérias-primas, dos instrumentos de trabalho e dos meios de vida, isto é, ao capitalista. O operário não pertence nem a um proprietário nem à terra, mas oito, dez, doze, quinze horas da sua vida diária pertencem a quem as compra. O operário, quando quer, deixa o capitalista ao qual se alugou, e o capitalista despede-o quando acha conveniente, quando já não tira dele proveito ou o proveito que esperava. Mas o operário, cuja única fonte de rendimentos é a venda da força de trabalho, não pode deixar a classe dos compradores, isto é, a classe dos capitalistas, sem renunciar à existência. Ele não pertence a este ou àquele capitalista, mas à classe dos capitalistas, e compete-lhe a ele encontrar quem o queira, isto é, encontrar um comprador dentro dessa classe dos capitalistas”.
A revolução na produção industrial (que, como notou pioneiramente Adam Smith, foi antes do mais uma revolução na divisão de trabalho)foi preparada por uma revolução comercial e uma revolução agrária. Foi na Europa Ocidental, a partir do século XII (daí que diversos historiadores datassem o início do capitalismo nesse século), que se originou o processo que deu lugar a um sistema social e econômico único e novo, orientado para a acumulação de riqueza baseado no crescimento permanente da capacidade produtiva: “Como todas as sociedades o capitalismo consegue empregar o seu trabalho e distribuir o seu produto mais ou menos sistematicamente.
De forma única com relação às outras sociedades, isto é feito não intencionalmente, sem um planejamento global. E isto acontece ao mesmo tempo em que se mantém uma taxa de crescimento excepcionalmente rápida apesar de uma interna e desagregadora luta de classes. De qualquer ponto de vista com que se encare o assunto, trata-se de um resultado extraordinário”.[xxviii]Segundo as estimativas de Angus Maddison,em se considerando um valor de referência equivalente a 100 em 1500, a produção mundial teria atingido um valor de 11.668 em 1992, centuplicando a produção social em cinco séculos (os da era capitalista),tendo sido o “100” inicial referencial atingido depois de milênios de história humana.
Jean-Baptiste Say, na primeira metade do século XIX, já definia o “capitalista” (o termo “capitalismo” ainda não era usado) como aquele proprietário que “reinveste seu lucro” em vez de gastá-lo ou entesourá-lo. Para Marx, diversamente, o capitalismo não é só a interminável acumulação pela acumulação, mas a transformação implacável das condições e meios de acumulação, a revolução perpétua da produção, do comércio, das finanças e do consumo. O que distingue o capitalismo dos outros modos pelos quais a produção social se desenvolveu é a mais-valia enquanto forma específica na qual trabalho excedente não pago é extraído dos produtores. Essa forma se consolidou pioneiramente na Inglaterra, com consequências que forçaram os outros países a adotá-la.
O jovem Karl Marx reconstruiu esse percurso: “Até ao ano de 1825 – época da primeira crise universal – pode dizer-se que as necessidades do consumo em geral avançavam mais depressa do que a produção, e que o desenvolvimento das máquinas era a forçosa consequência das necessidades do mercado. Desde 1825, a invenção e a aplicação das máquinas não é senão o resultado da guerra entre os patrões [maîtres] e os operários. E ainda assim isto só é verdade para a Inglaterra. Quanto às nações europeias, foram forçadas a aplicar as máquinas pela concorrência que os ingleses lhes faziam, tanto no seu próprio mercado como no mercado mundial. Por fim, quanto à América do Norte, a introdução das máquinas foi trazida quer pela concorrência com os outros povos quer pela escassez dos braços, isto é, pela desproporção entre a população e as necessidades industriais”.
A produção industrial capitalista, como já foi dito, é uma produção ad infinitum, em que o capitalista recupera o capital investido durante os ciclos de produção obtendo um lucro, reinvestido na produção. Antes que esses processos se tornassem dominantes não se poderia falar em capitalismo, conceito que levou a melhor sobre outras definições (liberalismo, sociedade industrial, sociedade livre, sociedade aberta) por bons motivos: “Sociedade industrial e capitalismo não podem ser considerados sinônimos, embora ambas as noções estejam estreitamente vinculadas. O processo capitalista é a variante originária do processo de industrialização, já que foram as sociedades capitalistas as que apareceram historicamente como as primeiras sociedades industriais”. O capital criou a grande indústria, orientada pela ampliação sistemática e sem limites do comércio, não o contrário: ela teve no capital sua precondição histórica. O conceito de capitalismo se impôs e generalizou só na segunda metade do século XIX, quando a subordinação da produção industrial ao capital se tornou fato econômica e socialmente dominante e evidente.
A relação entre a história e esse fato, não é, porém, evidente; ela precisa ser desvendada, pois as leis que governam a produção capitalista não são imediatamente perceptíveis; suas relações sociais se expressam através de categorias fetichizadas: “Onde o trabalho é comunal as relações entre homens em sua produção social não se manifestam como ‘valores’ das coisas”. O fetichismo da mercadoria consiste em que para os produtores as relações de troca existem e se realizam por características intrínsecas às próprias mercadorias: “As relações sociais entre indivíduos aparecem na falsa forma de relações sociais entre coisas; a ação social dos produtores assume a forma de ação dos objetos que dominam os produtores, em vez de serem dominados por eles”. “A ausência de regulação direta do processo social de produção leva necessariamente à regulação indireta do processo de produção, através do mercado, através dos produtos do trabalho, através de coisas… A materialização das relações de produção não surge através de ‘hábitos’, mas da estrutura interna da produção mercantil. O fetichismo não é apenas um fenômeno da consciência social, mas da existência social”.
No feudalismo europeu, diversamente, assim como em outras formações sociais pré-capitalistas, “o trabalho e os produtos entram na engrenagem social como serviços e pagamentos in natura (…) Como quer que se julguem as máscaras que os homens revestem, as relações sociais entre as pessoas em seus trabalhos aparecem em qualquer caso como suas próprias relações pessoais, e não são disfarçadas em relações sociais das coisas, dos produtos de trabalho”. No capitalismo, a relação entre homens proprietários de mercadorias aparece como uma relação entre as mercadorias, independente da ação e da vontade humanas.
A formulação dessa ideia aconteceu no mesmo local e período em que Lewis Carrol escreveu Alice no País das Maravilhas no fim da década de 1860, e Através do Espelho em 1871, histórias repletas de absurdos, de tempo maleável, nas quais as criaturas vivas e as coisas materiais podiam mudar de forma, uma ovelha virar uma velha, um bebé virar um porco, uma cadeira ganhar vida própria. A loucura podia vencer a razão, a aparência a realidade, o mundo inanimado o animado.
No mesmo momento e local, Karl Marx explicava que “a forma da madeira é alterada quando se faz uma mesa. No entanto, a mesa continua sendo madeira, uma coisa sensível e banal. Mas tão logo ela aparece como mercadoria ela se transforma numa coisa sensível-suprassensível. Ela não se mantém com os pés no chão, mas põe-se de cabeça para baixo diante de todas as outras mercadorias, e em sua cabeça de madeira nascem minhocas que nos assombram muito mais do que se ela começasse a dançar por vontade própria. O caráter místico da mercadoria não resulta, portanto, de seu valor de uso”.Na produção capitalista, onde o processo de produção se torna autônomo do valor de uso, o caráter social do trabalho dos homens aparece como uma característica objetiva do produto deste trabalho, a mercadoria; a relação dos produtores com o produto de seu trabalho se apresenta a eles como uma relação social que existe, não entre eles, mas entre os produtos de seu trabalho. Devido a isso, a produção “abrange, ao mesmo tempo, a reprodução (isto é, manutenção) da classe capitalista e da classe trabalhadora e, portanto, também a reprodução do caráter capitalista do processo de produção global”. A reprodução dos fatores imediatos da produção (meios de produção e força de trabalho) e a reprodução das relações sociais de produção capitalistas (separação entre produtor e meios de produção, apropriação privada do produto social) são duas faces da mesma moeda.
A grande ruptura que lhe deu origem se produziu quando a história humana passou, ao menos tendencialmente, a se verificar num palco único, mundial, com a “expansão europeia”, que precedeu a expansão universal do capital. Como resumiu admiravelmente Earl J. Hamilton: “Embora houvesse outras forças que contribuíram para o nascimento do capitalismo moderno, os fenômenos associados com a descoberta da América e a rota do Cabo foram os principais fatores desse desenvolvimento. As viagens de longo percurso aumentaram o tamanho dos navios e a técnica da navegação. Como assinalou Adam Smith, a ampliação do mercado facilitou a divisão do trabalho, e conduziu a melhoras técnicas. A introdução de novas mercadorias agrícolas da América e de novos bens agrícolas e manufaturados, especialmente artigos de luxo orientais, estimulou a atividade industrial para se obter a contrapartida que os pagasse. A emigração às colônias do Novo Mundo e aos estabelecimentos do Leste diminuiu a pressão da população sobre o solo metropolitano e aumentou o excedente, o excesso da produção em relação à subsistência nacional, do qual pôde se obter a poupança. A abertura de mercados longínquos e de fontes de abastecimento de matérias primas foi um fator importante para que o controle da indústria e do comércio fosse transferida dos grêmios para os empresários capitalistas. A velha organização gremial, incapaz de lidar com os novos problemas da compra, produção e venda, começou a se desintegrar e cedeu, finalmente, seu lugar à empresa capitalista, meio mais eficiente de gestão”.
Assim, a era da história mundial, em que todas as regiões e sociedades do planeta passaram a interagir, direta ou indiretamente, umas com as outras, integrando-se em um único processo histórico, teve na emergência do capitalismo sua base, e alimentou seu desenvolvimento. As forças produtivas suscitadas pela produção capitalista não ficaram contidas dentro das áreas confinadas dos velhos Estados dinásticos da Europa, onde se originaram. O desenvolvimento do capitalismo e a industrialização geraram um mercado mundial e uma divisão internacional do trabalho. A constituição do mercado mundial foi definida como a missão histórica de libertação e explosão da produção social que o capital realizou. Foi através de sua relação com o mercado mundial que os Estados nacionais adquiriram sua fisionomia específica, e que as áreas menos desenvolvidas, na medida que entravam em contato com o mercado mundial, assumiram uma posição de dependência.
OSVALDO COGGIOLA ” SITE A TERRA É REDONDA” ( BRASIL)
Osvaldo Coggiola é professor titular no Departamento de História da USP. Autor, entre outros livros, de História e Revolução (Xamã).