Os participantes do mercado financeiro se assustaram esta semana com a tempestade perfeita formada por nuvens negativas que estavam no horizonte: variante Delta se espalhando pela Ásia (o que retarda a normalidade da cadeia produtiva industrial, dependente dos chips produzidos nos ‘tigres asiáticos’), Europa, Estados Unidos e aqui. Se não bastasse a escalada da inflação, que inflou a arrecadação e trouxe ilusória impressão de que os indicadores de endividamento iriam melhorar, mas exige doses mais amargas de juros pelo Banco Central, com o efeito colateral de esfriar a recuperação da economia e do emprego, o Fed (o Banco Central americano) anunciou que pode começar a cortar os estímulos monetários ainda este ano. A tradução disso serão o dólar mais forte, com a liquidez mais apertada e juros mais altos pelo mundo afora. Na gangorra da economia, juros altos moderam o consumo e são inimigos das apostas especulativas com ativos, sobretudo ações e commodities (agrícolas, minerais, metálicas e energéticas). A tempestade trouxe um certo pânico.
O Departamento de Estudos Econômicos do Itaú Unibanco resumiu a semana econômica no Brasil, com notícias de reversão, para pior, “tanto no aspecto inflacionário como fiscal”: o Ibovespa recuou 3,3% em reais, a taxa de câmbio depreciou 3,4%, agora próxima de 5,43 reais por dólar e a taxa de juros de dez anos negociada nos contratos da B3 continuou subindo e ultrapassou os 10% a.a. O risco-país brasileiro medido pelo CDS de 5 anos subiu 12 p.b., encerrando a semana próximo de 192 p.b. “E existe a percepção de que os riscos em torno da manutenção da disciplina fiscal estão aumentando, seja pela renúncia de receitas prevista na proposta de mudança na tributação de renda e lucro, seja pelas maiores dificuldades de conciliar o cumprimento do teto de gastos com a aceleração da inflação, aumento inesperado do gasto com precatórios e pressões para aumento do Bolsa Família”, disse o Itaú.
Como corolário disso tudo, o ministro da Economia, o “Posto Ipiranga” Paulo Guedes se deu conta 6ª feira, em audiência no Senado que “fazer uma reforma tributária é difícil; só por etapas, para ter acerto com estados e municípios”. Descobriu o óbvio tardiamente o nosso Paulo Bó (digo, Pedro Bó). Pelo Pacto Federativo estados e municípios recebem via Fundos de Participação, sua cota parte nos impostos arrecadados pela União. Esse é um dos princípios básicos da Constituição, que não poderia ser ignorado pelo expoente que o mercado financeiro considerava mais “luminar”. O mercado financeiro se assustou um pouco tarde, percebendo que havia feito apostas muito arriscadas e otimistas.
O Produto Interno Bruto (vulgo PIB) não vai crescer essa cocacola toda este ano (5,5% seria uma recuperação do tombo de 4,1% no ano passado, em ritmo abaixo das economias mais desenvolvidas e até da América Latina). E isso graças à acelerada de 1,2% no 1º trimestre, quando a alta de 5,7% na safra agrícola, puxada pela soja, espalhou onda de otimismo que se espraiaria até o ano eleitoral de 2022. Ilusão à toa. Há muito o PIB agrícola cresce (ou cai) no 1º trimestre em função da boa ou má safra da soja, nosso principal produto da cadeia do agronegócio. Depois há ajustes mais suaves. Este ano, o clima frio e as geadas estão pressionando a produção para baixo e os preços para cima, movido à especulação. Se o quadro de baixo crescimento previsto para 2022 (nenhum banco ou consultoria econômica arriscava mais de 2,3%) está encolhendo para 1,5% ou um pouquinho mais, respingos de baixo crescimento atingem 2023 (o Santander baixou a previsão de 2,5%, que é o potencial básico de crescimento do PIB brasileiro, para 2,3%), a situação pode piorar se o Banco Central tiver de colocar os juros acima de 7,50% ao ano e até 8%.
Há outros fatores que explicam os desacertos e frustrações de uma parte importante do mercado financeiro com os rumos do governo Bolsonaro. As cabeçadas que o governo dá na Constituição e nas instituições representativas do arcabouço democrático brasileiro são semelhantes à tomada de assalto do Talibã no Afeganistão. O grupo tomou literalmente conta das principais cidades do país e da capital Cabul antes de chegar o prazo final anunciado pelos Estados Unidos para a retirada de suas tropas do país: 31 de agosto. Vinte anos depois da invasão do país pelas tropas americanas no governo George W. Bush, menos de dois meses após terroristas da Al Qaeda, comandada pelo saudita Osama Bin Laden, que se aliara a membros do Talibã no Afeganistão e no Paquistão (Bin Laden foi morto por tropas americanas no Paquistão em maio de 2011), os Estados Unidos não conseguiram implantar uma democracia orgânica no país que há séculos é um dos maiores produtores de ópio do mundo. A ação de grupos de bandoleiros que saqueavam (na ida e na volta) caravanas que faziam o comércio com a China criou hábito em mais de um milênio. É duro triunfar a racionalidade onde prevalece o radicalismo.
Enquanto tenta se agarrar com o Centrão para conseguir uma blindagem no Congresso, sobretudo na Câmara dos Deputados, para barrar qualquer processo de “impeachment” ou tentar aprovar agendas retrógradas (como a volta do voto impresso e a volta das coligações partidárias, banida pelo Congresso em 2017), o presidente Jair Bolsonaro vai perdendo o cacife eleitoral, com o qual julgava (no começo de 2020) que a reeleição estava garantida em outubro de 2022. Atropelado pela Covid-19, que enfrentou da pior forma possível desde o começo, com atraso nas medidas restritivas a aglomerações, uso de máscaras e vacinação. Agora mesmo falta estratégia (e vacinas) diante da variante Delta. [Com 575 mil mortos e pouco mais de 25% da população vacinada com duas doses, superamos, é claro, o Irã dos aiatolás, que está amargando 100 mil mortos pela contagem oficial, e tem menos de 5% dos 83 milhões de iranianos vacinados com duas doses; mas, pelas projeções do IHME, o Instituto de métricas em medicina hospitalar de Seattle (EUA) vamos disputar na companhia da Rússia, Índia, Estados Unidos e México quem ficará mais próximo da tétrica cifra de um milhão de mortos até dezembro. A Rússia de Putin está na frente, nas projeções reais do IHME. Índia e EUA duelam pela prata. Espero que o Brasil se aprume, tome juízo e evite o bronze], a popularidade de Bolsonaro vai caindo a olhos vistos enquanto cresce a rejeição a seu governo, considerado inábil e incompetente pela maioria.
Mas o presidente Jair Bolsonaro continua – diria Leonel Brizola – “costeando o alambrado do golpe”, como demonstra o pedido de “impeachment” do ministro Alexandre Moraes, do Supremo Tribunal Federal, que comanda o inquérito das “fake news” e das investigações sobre o financiamento dos sites de apoiadores de Bolsonaro que pregam atos democráticos como o fechamento do Congresso e do STF. Todos parecem saudosos dos tristes tempos do AI-5 ou do retorno dos métodos dignos do Talibã, que retomou o poder no Afeganistão, 20 anos depois.
Com a visão e a experiência de seus 93 anos, em vários governos ou como conselheiro de boa parte do PIB brasileiro, o ex-ministro da Fazenda e do Planejamento, Antônio Delfim Neto, resumiu esta semana o sentimento do “Centrão” econômico, aquele grupo de empresários pragmáticos que se aliam a governos que prometem eficiência e a menor interferência nos negócios privados e deles se afastam tão logo percebem que da cartola do mágico não sairão pombos nem coelhos: “Em 2022, Bolsonaro é risco maior que Lula para o mercado”. Não acusem Delfim de ser adepto do PT. O Delfim Neto de agora é o mesmo que votou entusiasticamente, em 13 de novembro de 1968, pela assinatura do AI-5 que fechou o Congresso e cassou ministros do Supremo Tribunal Federal no ano seguinte e do qual foi o grande beneficiário, com caminho pavimentado para pilotar o “milagre brasileiro”. Serviu de 1967 a 1974 aos governos militares de Costa e Silva e Médici (com o interregno da Junta Militar pós impedimento de Costa e Silva), voltou ao governo com Figueiredo (1979 a 1985) e atuou como conselheiro de Lula, Dilma e Temer.
Vale lembrar que em novembro de 2018, Delfim Neto proclamou aos quatro ventos que votou em Bolsonaro “em legítima defesa contra o PT”. Pragmático, já está desembarcando, como parte do PIB que criticou o descaso do atual governo com a questão ambiental, que afeta a confiança dos investimentos estrangeiros, da canoa que está fazendo água.
Uma das maiores críticas a Delfim durante a época do “milagre brasileiro” foi que o crescimento não veio acompanhado de inclusão social. O economista Edmar Bacha chegou a cunhar, em 1973, uma sigla para definir o Brasil – “Belíndia”, uma elite com padrão de renda e consumo semelhante à da Bélgica (que tem 11,4 milhões de habitantes) e uma imensa massa com os padrões de pobreza da Índia (hoje com 1.380 milhões). Em anos recentes, muitos se espantaram com a pobreza do Haiti 9º país mais pobre das Américas. Caetano Veloso e Gilberto Gil já haviam abordado a situação, em 1982, quando lançaram a tocante canção “O Haiti é aqui”, para abordar o contraste da miséria ao lado de todos, terminando com o refrão: “Pense no Haiti, Reze pelo Haiti; o Haiti é aqui; o Haiti não é aqui”. Esta semana, com os estragos de um vendaval posterior ao terremoto, que juntos causaram mais de 2.100 mortes, ficamos tocados com a desventura da maior nação negra das Américas. O país divide a ilha de Dominica com a República Dominicana, fez a própria abolição da escravidão, décadas antes da gente, e tem 11,4 milhões de habitantes (quase o total do Grande Rio), “quase todos pobres e pretos”, como diria Caetano. Há menos de dois meses o presidente e a cúpula do governo foram trucidados num golpe de estado. Damos graças a Deus e à democracia por não sermos o Haiti. Mas todo cuidado é pouco. Militares que já comandaram tropas brasileiras sob a bandeira da ONU no Haiti, como os generais Augusto Heleno e Hamilton Mourão sabem bem a diferença. Mas é preciso estar atento e forte em defesa da democracia para que talibãs não implantem aqui regime de terror como fizeram em julho no Haiti.
GILBERTO DE MENEZES CÔRTES ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)