O Brasil equilibrou-se por tanto tempo na beirada do vácuo que acreditou que o abismo, assim como o inferno da escatologia cristã, seria mais uma ficção admonitória do que a realidade de uma crise terminal. Sob Bolsonaro, a ficção tornou-se real. A tempestade ainda nem acabou e já veio a cobrança. O Brasil convive com o “custo Bolsonaro.”
Dentro do país, cresce a percepção de que a gestão Bolsonaro já não é apenas um governo em crise. Transformou-se numa crise sem governo. No exterior, de onde os melhores investidores estrangeiros traçam rotas alternativas para fugir do Brasil, o país passou a ser dividido em duas fases: AC e DC.
Antes do capitão, o Brasil era tratado como o país do jeito para tudo. Depois do capitão, passou a ser visto como um país que não tem jeito. Sumiu a ideia de que o Brasil está à beira do abismo. O país experimenta a vivência do abismo.
Um político convencional cultivaria duas ideias fixas: 1) Parar de cavar; 2) Alcançar a borda. Dono de convenções próprias, Bolsonaro trocou a picareta pela pá. Em vez de cavar, joga terra em cima de si mesmo. Substitui uma crise por outra.
Bolsonaro vai do ataque às urnas ao desfile de blindados, evolui dos insultos ao pedido de impeachment de ministros do Supremo. Revela-se capaz de tudo, exceto de trabalhar. Acha que governa os fatos. Na verdade, é desgovernado por eles.
Na pandemia, a teatralidade radical de Bolsonaro perdeu o prazo de validade. A realidade sonegou-lhe o papel que melhor desempenha: culpar os outros. No comando de um governo disfuncional, virou fardo de si mesmo. Não consegue produzir nem desculpas para os rolos em que se mete.
Tome-se o caso da vacina indiana covaxin. Bolsonaro disse ter tratado da denúncia com o general Eduardo Pazuello, que repassou o abacaxi ao coronel Elcio Franco, que não viu nenhuma mutreta. Hoje, o contrato está cancelado, Pazuello e Franco escondem-se da CPI atrás de contracheques do Planalto e Bolsonaro é investigado no Supremo por prevaricação.
Bolsonaro conquistou 57,8 milhões de votos em 2018 sem um plano de ação. Dispunha apenas de um versículo do Evangelho de João —”Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”— e de um bordão: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”.
O candidato balbuciava desejos vagos. Queria, por exemplo, abrir a economia, afrouxar as leis do meio ambiente, impor a nova política ao Congresso e combater o marxismo cultural. Entregou ruína fiscal, devastação ambiental, rachadinha e retrocesso educacional.
Paulo Guedes, uma ficção que venceu na vida, humilha-se. Ricardo Salles, um pesadelo que caiu na vida, foge da polícia. O centrão recebeu as chaves da Casa Civil. E o Brasil ouve estarrecido o pastor Milton Ribeiro, quarto ministro da Educação da era DC, declarar que crianças com deficiência “atrapalham” os outros alunos em sala de aula.
Virou cloroquina a superstição segundo a qual pessoas iluminadas acalmariam Bolsonaro. Paulo Guedes virou cabo eleitoral. Os generais do Planalto bolsonarizaram-se.
Ciro Nogueira, o “amortecedor” do centrão, chegou ao quarto andar do Planalto prometendo “estabilizar” o governo e “diminuir as tensões”. Horas depois do discurso conciliatório do novo auxiliar, Bolsonaro ameaçou agir “fora dos limites das quatro linhas da Constituição”. E o presidente do Supremo, Luiz Fux, a cancelar encontro pacificador que articulava entre os chefes dos três Poderes.
No momento, Bolsonaro tem apenas quatro prioridades: não cair, passar a impressão de que preside e rezar pela fidelidade de Augusto Aras, o procurador-geral que não procura, e de Arthur Lira, o presidente da Câmara que engaveta. Para que a estratégia do presidente dê certo, o Brasil precisa dar errado.
JOSIAS DE SOUZA ” SITE DO UOL” ( BRASIL)