Peça 1 – o jornalismo volta a falar português
Depois de 15 anos nas sombras, o jornalismo brasileiro volta a falar o português. Nesse período, em função da guerra cultural promovida pela mídia, o jornalismo brasileiro emulou o período da ditadura, recorrendo a metáforas, metonímias, e todo tipo de figura de linguagem para conseguir driblar a censura dos veículos. Em nada diferente dos anos de chumbo.
Um bom exemplo é Jamil Chade. Em seu período de Estadão foi o único a furar o bloqueio da mídia em relação aos escândalos da FIFA-CBF-Globo ou sobre a Lava Jato. Trazia informações relevantes, mas em uma linguagem anódina, para não estimular a tesoura da redação. Hoje em dia, no UOL, ganhou a liberdade para que seu estilo o consagrasse como relevante repórter de direitos humanos.
Ao mesmo tempo, vê-se a Globonews, dona de um discurso duro e imutável que nem concreto armado, enaltecendo a importância do debate, de se ouvir os dois lados. Por enquanto, a diversidade é apenas em suas vinhetas. Mas vai atingir os programas jornalísticos e de debates.
Há uma série de eventos explicando as mudanças.
O primeiro deles, o fator Bolsonaro. A guerra cultural iniciada pela mídia a partir de 2005, o discurso de ódio, o jornalismo de guerra, de destruição do inimigo, o uso de factoides, saíram do controle da mídia e foram sendo apropriados pelo bolsonarismo, recorrendo às redes sociais para ganhar autonomia. Os grupos de mídia perderam o controle sobre suas criaturas. Agora, para se diferenciar dos fake news, precisam voltar a praticar o velho jornalismo.
O segundo evento foi o fator CNN – entrando no país em cima do mesmo modelo e dos critérios da matriz americana. É curiosa, aliás, a maneira como a Globonews – cujo jornalismo sempre se baseou na CNN americana – corre atrás do padrão da CNN brasileira.
Emula os mínimos detalhes:
* os elogios aos cenários mostrados pelos correspondentes nacionais;
* a forma de agradecer os convidados;
* a relevância do bom ambiente interno, que passa a ser parte integrante da interação com os espectadores, contrapondo-se ao velho modelo televisivo brasileiro, de guerra inclemente entre estrelas. As chamadas do novo programa matinal da Globonews são do estilo “como nós nos amamos”.
* o investimento na imagem dos jornalistas, que voltam a ser tratados como estrelas da notícia, valendo-se do mesmo processo de construção de celebridades;
* a permissão para que alguns jornalistas possam avançar em opiniões próprias, espaço que vem sendo bem aproveitado pelos jornalistas mais talentosos e corajosos;
* um aumento saudável do espaço a apresentadores e comentaristas multi-raciais, com predomínio dos negros.
Mas a pluralidade é relativa. Combate-se o terraplanismo de Bolsonaro, mas temas ligados a interesses do mercado continuam sendo tabus em todos os veículos.
Peça 2 – a informação como direito
Assim como em outros campos, o mercado de opinião foi legitimado sob o égide da competição. Ou seja, do confronto de ideias nasce o consenso. Esse modelo, de um Ágora grego idealizado, foi completamente distorcido pela mídia corporativa por razões variadas.
Grupos de mídia são empresas cujos interesses econômicos são determinantes para a definição da sua linha de atuação. Em um mercado competitivo, há processos de auto-regulação. Quando um veículo sai dos trilhos, colocando explicitamente os interesses próprios acima dos interesses do leitor, o concorrente trata de apontar os pecados.
Mas, para tanto, há necessidade de duas pré-condições:
- Sociedade com valores democráticos consolidados.
- Mercado competitivo. Para cada Fox News, uma CNN, New York Times, Washington Post.
Isso não ocorre no Brasil, um mercado cartelizado, com princípios democráticos frágeis. A partir de 2005, firma-se o pacto de grupos em crise em torno de Roberto Civita, passando a praticar o jornalismo de guerra e de esgoto, sem risco de ver seus pecados explorados pela concorrência. Espalharam ódio, notícias falsas, teorias conspiratórias, assassinatos de reputação, jogadas comerciais disfarçadas de denúncias morais. E acabaram confirmando o diagnóstico de John Pullitzer: “Com o tempo, uma imprensa cínica, mercenária, demagógica e corrupta formará um público tão vil como ela mesma”. O único contraponto foram blogs e sites dissidentes praticando guerrilha informativa.
Peça 3 – entendendo a nova lógica da mídia
Para enfrentar os inimigos, a mídia necessita recuperar a legitimidade, praticando jornalismo. Isso explica o movimento atual, de defesa dos direitos e de alguma sensibilidade em relação aos vulneráveis. Quanto tempo durará a defesa de princípios?, eis a questão. Durará até a próxima onda conservadora.
Para entender a incoerência da mídia – especialmente a brasileira -, seria útil a leitura do livro “A superindústria do imaginário”, de Eugênio Bucci. As distorções dos últimos anos, mais a face atemorizante das ruas, mereceram de Bucci uma reavaliação competente.
O Bucci de 2017 sustentava a que “a imprensa livre é a única defesa da sociedade contra a expansão dos populistas com tendências autoritárias”.
Agora, os pontos principais de seu livro esposam outras convicções:
- O início da informação sistematizada foi a economia, os negócios, o mercado.
Reunidos em público, por meio da comunicação, os comerciantes privados tratavam de negócios e, só mais tarde, como num desdobramento, passaram a tematizar questões relativas à política. Aquilo a que se entende como esfera pública, portanto, essa esfera que trata, entre outros assuntos, dos destinos comuns de uma sociedade em seu sentido político mais elevado, é uma consequência da atividade prioritariamente econômica dos agentes de mercado.
- O enfraquecimento do jornalismo escrito.
Como saber ler não era mais um requisito obrigatório para o consumo dos produtos da comunicação social, multidões iletradas passaram a ter acesso a discursos, anúncios, entretenimento e mesmo notícias, que se tornaram um segmento diminuto do repertório dos meios, agora mais interessados na diversão.
- os malefícios das transmissões ao vivo de sessões do STF.
Faz também, uma revisão corajosa sobre os malefícios da TV Justiça e da transmissão ao vivo dos julgamentos do Supremo Tribunal Federal. Em 2010, tivemos posições distintas sobre o tema. Bucci julgava ser fator de aumento da transparência. De minha parte, dizia que quando Ministros entrassem no grande show da mídia, terminariam refém dos donos do roteiro – os veículos de mídia.
Diz Bucci em seu livro:
Na instância da imagem ao vivo, a mesma divindade é impelida a sair para tomar sol de topless e óculos escuros, o que não é uma reles força de expressão. Está aí, escancarado, o desserviço que a TV Justiça, pura instância da imagem ao vivo jurisdicional, presta para o protocolo de altivez dos magistrados. Se, na instância da palavra impressa podemos reconhecer traços dos fundamentos significantes da hermenêutica, da exegese, do juízo de fato, do juízo de valor e das jurisprudências, na instância da imagem ao vivo o que se vê é a aderência entre um ícone (um amuleto, uma figura, um nome, um logotipo, uma marca) a um sentido imediato (sem mediação da razão), envolvendo estímulos lascivos.
- a lógica da mídia e os interesses comerciais
Quando, depois dos jornais de opinião, apareceu a imprensa comercial, com publicidade e com o desenvolvimento da indústria gráfica, o negócio se expandiria mais. (…) As redações se estabelecem como artesãs não da democracia em um sentido ideal, mas da novíssima mercadoria da informação jornalística, difratada em notícia, opinião e faits divers, dando a largada para o mercado publicitário maduro. A imprensa, diz Habermas, era “o pórtico de entrada de privilegiados interesses privados na esfera pública”.
Do mesmo modo, a opinião pública deixa de ser olhada como o locus da racionalidade e da democracia. É um bicho perigoso, que se move por ondas e é influenciado por signos, por imagens, pelo efeito manada.
Peça 4 – o movimento pró-cíclico da mídia
Mesmo com um certo retorno aos princípios jornalísticos, pela mídia corporativa, e o trabalho da mídia digital, dificilmente a imprensa cumprirá o poder de mediação, necessário para os tempos atuais.
Primeiro, pela falta de compromisso democrático da mídia, e por sua subordinação às ondas.
Depois, pelo fim do modelo tradicional de mídia – concentrado em poucos veículos, mas competindo entre si, tendo o ponto forte na habitualidade da leitura ou da audiência.
Com todos seus vícios, o modelo tradicional dos jornais permitia aprofundamentos, enfoques não ligados diretamente à busca de audiência, por duas características principais.
- Havia uma mescla de entretenimento e artigos de fundo. As seções de variedades, esportes e local garantiam a audiência. E política e economia sustentavam a reputação, a influência.
- A continuidade da leitura permitia ao jornal – com todas as limitações e idiossincrasias – praticar a mediação. O articulista podia elogiar o político um dia, criticar no outro, permitindo ao leitor – com a continuidade da leitura – entender a lógica da mediação.
Esses dois movimentos criavam o efeito pedra no lago. Uma matéria inovadora de um grande veículo se propagava pelos veículos menores e pela mídia regional.
No ambiente online, cada matéria tem vida própria. Cada reportagem é medida pela quantidade de likes e de leitura. Há uma enorme poluição de informações, palpites, opiniões, diluindo as mensagens de maior impacto. Se o articulista criticar um partido hoje e elogiar amanhã, será criticado pelas partes em todos os momentos.
Da mídia digital, não se espere discussões aprofundadas sobre as novas ideias. Assim como a corporativa, é prisioneira da nova lógica digital, centrada na visualização rápida, nos clicks e curtidas. Nessa lógica, um meme vale mais do que uma reportagem de fôlego. E os veículos tornam-se prisioneiros de seus leitores. Há um receio pânico de enfoques inovadores, sequer de ouvir o outro lado, devido à dificuldade de assimilação pela público-manada.
Peça 5 – o controle pelas big techs
A grande questão em jogo é que a imprensa – tal qual conhecemos do início do século 20 até agora – morreu. Nesse período, foi o mais relevante influenciador de opinião da história, mais que as religiões, os partidos políticos, os sindicatos.
E agora? O Ágora grego se transformou em um mercado persa, com cada veículo expondo seus produtos de forma desordenada, tentando monetizar de qualquer forma, ampliando a espetacularização da notícia, fugindo do aprofundamento dos temas, buscando cada vez mais o fígado e o estômago do que o cérebro do público.
Hoje em dia, há veículos que atendem à demanda da esquerda, da direita, do centro e dos apolíticos. Os mais eficientes tornaram-se grandes propagandistas de suas ideias.
Sem a bússola da relevância, o jornalismo torna-se joguete de algoritmos, cenário no qual as convicções são formadas pelo efeito repetição, pelo título e pelo lead da matéria.
O grande desafio será como se dará a reinvenção do jornalismo. Se é que ainda tem sobrevida.
LUIS NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)