O ADEUS DO HOMEM QUE LIDEROU A REVOLUÇÃO DOS CRAVOS QUE ENTERROU O SALAZARISMO

Se Salgueiro Maia foi o rosto consensual da revolução, Otelo foi o da controvérsia permanente. O comandante do 25 de Abril, candidato presidencial em 1976 com quase 800 mil votos, acabaria por passar mais tarde cinco anos na prisão. Salvou-o uma amnistia aprovada à esquerda.

A revolução ficou conhecida como “dos capitães”, mas, na verdade, no 25 de Abril de 1974, o seu principal estratega, Otelo Saraiva de Carvalho, não era capitão: era major. Militar por escolha própria, tinha 37 anos de idade e, no corpo, o cansaço acumulado de três comissões na guerra colonial (duas de combate em Angola e uma de estado-maior, na Guiné), quando, às dez da noite de 24 de Abril, entrou num quartel do Exército na Pontinha (o Regimento de Engenharia 1), vestido à civil.

Foi ali que o MFA (Movimento das Forças Armadas), de que ele próprio era um dos principais dinamizadores desde há mais de um ano, decidiu montar o seu Posto de Comando. O objetivo assumido era o de levar a cabo um golpe militar que depusesse o regime. Para evitar olhares curiosos, as janelas da sala ficaram o tempo todo tapadas com cortinas negras. Três dias antes, Melo Antunes tinha elaborado o programa que sustentaria politicamente o MFA e que estabelecia como prioridade o fim da guerra colonial. Ao final da tarde de 25, já com o regime deposto, Almeida Bruno declarará, ao visitar com Spínola o posto de comando: “Meus amigos, acabou a bagunçada! Agora, temos aqui um general!”

Spínola e os seus homens tomaram conta do evento, mas a revolução ficou popularmente conhecida como “dos capitães” por causa de Salgueiro Maia, o capitão de cavalaria vindo de Santarém que, no Quartel do Carmo, confrontou o Presidente do Conselho, Marcelo Caetano, com a exigência de uma rendição (Marcelo só a aceitou, entregando-se a um general, no caso Spínola, para que o “o poder não caísse na rua”). Otelo, esse, foi o autor do desenho, sobre um vulgar mapa do ACP, do plano militar que acabaria com 48 anos de ditadura. Foi ele também quem comandou por telefone, minuto a minuto, a sua execução. Morreu ontem, aos 84 anos, internado no Hospital das Forças Armadas, no Lumiar.

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Esfomeado e exausto, o major deixou a Pontinha no dia 26 de abril de 1974 e foi para casa, não sem antes ordenar a libertação dos presos políticos de Caxias. No dia seguinte, estava, como de costume, a dar aulas de táticas de artilharia na Academia Militar. E assim foi ocupando o tempo, sem grande história, até que, dois meses depois, os portugueses começaram a ouvir falar nele.

Na dúvida, a História regista tudo, e Otelo Saraiva de Carvalho não terá uma entrada pequena num futuro dicionário; mas nem pelo seu papel crucial no dia em que depôs a ditadura, nem pelo que fez depois. Salgueiro Maia ficou como o herói consensual do 25 de Abril e Otelo como o herói controverso, fraturante, sempre polémico, polarizador: amado ou odiado.

Em 1976, apesar de ter sido derrotado no 25 de Novembro de 1975 pelos militares moderados liderados pelo seu amigo Ramalho Eanes, Otelo ainda era admirado intensamente por uma parte importante do país – a parte à esquerda que não se revia nem no PS nem no PCP e que se sentia órfã de liderança.

Nessa altura, Otelo era mais popular do que nunca e, com propensão para adorar os holofotes, concorreu às eleições presidenciais de 27 de junho de 1976, as primeiras pós-revolução. Evidentemente, não venceu – Eanes, com o apoio do PS, PSD e CDS (e do MRPP) foi eleito logo à primeira volta, com 61% dos votos). Mas teve a enorme satisfação de, com quase 800 mil votos (16,46%) esmagar o candidato do PCP, Octávio Pato (365,6 mil votos, 7,59%), e suplantar Pinheiro de Azevedo (692 mil votos, 14,4%), o almirante que sucedera a Vasco Gonçalves na chefia do Governo quando os moderados venceram o 25 de Novembro, afastando os comunistas do poder.

Depois do 25 de abril, do céu ao inferno, percorreu todos os passos. Acabaria preso, entre 1986 e 1991, por causa do seu (sempre por si negado) papel de liderança nas FP-25, a organização terrorista que operou entre 1980 e 1987 e à qual foram atribuídas 18 mortes, uma das quais a do então diretor-geral das prisões, Gaspar Castelo Branco, executado com dois tiros na nuca.

O que o salvou foi, primeiro, um tremendo “imbróglio jurídico” (expressão de Mário Soares, então primeiro-ministro) nos recursos e contra recursos de um julgamento com tantos arguidos e advogados que obrigou à construção de um tribunal especial, em Monsanto. Depois, salvou-o uma amnistia aprovada em 1996 no Parlamento, com os votos do PS, PCP e PEV.

O grande mentor desta amnistia foi Mário Soares, então a finalizar o seu segundo e último mandato presidencial. Contudo, foi com Soares a primeiro-ministro, em junho de 1984, que a PJ, em conjunto com a GNR e a PSP, sob tutela do Ministério Público, desencadeou a “Operação Orion”. Aparentemente, no entanto, os operadores da investigação desconfiavam do poder político e, porventura receando fugas de informação, não informaram Soares, nem ninguém do Governo, de que a operação seria desencadeada. Soares foi notificado por Manuel Alegre, por sua vez avisado por um jornalista – segundo contou ontem o próprio Alegre ao DN. Mitterrand terá dito uma vez a Soares que, se fosse com ele, nunca a polícia seria autorizada a prender Otelo.

Mas foi. Ele e mais dezenas de pessoas (foram assinados mais de seis dezenas de mandados de captura). Cândida Almeida, procuradora do MP titular do processo, ficou perplexa quando percebeu que Otelo era o alvo central da investigação. “Este homem é o 25 de Abril […], quando ele entrou senti uma tristeza interior muito grande, [mas] a justiça tinha de ser feita”, confessaria, anos depois.

A razão de se chamar Otelo

Otelo tornou-se militar de carreira mas, na verdade, antes de chegar aí, o seu sonho era vir a ser ator. A paixão chegou-lhe por via de um avô. Aliás, foi por causa desse amor que, quando nasceu, em 31 de agosto de 1936, na então Lourenço Marques (atual Maputo), lhe chamaram Otelo, numa referência à personagem de Shakespeare.

Depois do 25 de Abril, Otelo, graduado como oficial general (brigadeiro) assumiria o todo poderoso cargo de chefe do COPCON (Comando Operacional do Continente), difundindo ao mesmo tempo um discurso político de democracia direta que levou alguma imprensa internacional, sobretudo nos EUA, a retratar Portugal como uma espécie de nova Cuba europeia (o militar seria recebido em braços por Fidel na ilha caribenha). Escolhendo ou não esse caminho, Otelo é visto como o líder da ala militar de esquerda mais radical dentro das Forças Armadas, por oposição aos militares mais conotados com o PCP ou com o PS.

O COPCON, diria o próprio em entrevista à “Visão”, “tinha uma missão estritamente militar, [a de] impedir qualquer atividade contrarrevolucionária”. Ora, isso fê-lo levar a cabo tarefas tudo menos estritas: “Começa a haver uma grande desresponsabilização de quem exerce outras funções, sobretudo governativas, e começam-nos a chegar problemas gravíssimos, laborais, sociais, às vezes até pessoais e de saúde. Por exemplo, começam a fugir empresários, que fecham as empresas e levam o dinheiro, os trabalhadores vão ao Ministério do Trabalho e de lá mandam-nos para o COPCON! E eu, nós, assumimos isso. Talvez não o devêssemos ter feito, o que me teria livrado de uma grande carga de trabalhos”. “Tenho consciência de que, enquanto seu comandante, extravasei largamente esses objetivos.”

É desse tempo que vem o caso dos mandados de captura em branco supostamente assinados por Otelo; e a suspeita de ter ameaçado “meter os fascistas no Campo Pequeno” – frase que o próprio sempre negou ter dito nestes exatos termos (terá falado em “contrarrevolucionários”).

A vida pessoal, também a viveu com uma marca muito própria. O jornalista Paulo Moura contou na biografia “Otelo, o revolucionário”, que o militar vivia com duas mulheres em simultâneo, Dina e Filomena, mas em casas distintas, ambas sabendo uma da outra. De segunda a quinta estava com uma família e de sexta a domingo com outra.

Por ocasião dos 30 anos do 25 de Abril, Otelo disse como gostaria de ser recordado: “Gostava de ficar na História como um homem que, desde a juventude, lutou por um ideal e conseguiu alcançá-lo. Um homem com grande orgulho em ter sido protagonista de uma ação que libertou o país de 48 anos de fascismo e que continuou depois a lutar pelo que julgou ser o melhor para o seu país e o seu povo.”

O velório será terça-feira na igreja da Academia Militar. O funeral realizar-se-á na quarta-feira, mas ainda em local indefinido à hora do fecho desta edição.

JOÃO HENRIQUES ” DIÁRIO DE NOTÍCIAS” ( PORTUGAL)

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