O brasileiro há muito já percebeu que o mundo real está muito além (para uns poucos privilegiados) e muito aquém (para a imensa maioria) do que prometem os governos e políticos. Veja-se o caso do que a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), o balizamento do Orçamento Geral da União (OGU), enviado pelo governo ao Congresso e aprovado dia 14 de julho. Na Câmara, passou por 278 votos a favor, 145 votos contra e uma abstenção; no Senado, por 40 X 33 votos. Aprovar a LDO era a última obrigação dos deputados e senadores antes de saírem de férias para o recesso de meio de ano.
Daqui a duas semanas, quando os trabalhos forem retomados em 1º de agosto, e talvez da LDO já tenha sido aprovada pelo presidente da República, vai ficar claro que muitos números aprovados esta semana são incompatíveis com a realidade. Efetivamente, o governo e o Congresso terão até 17 de dezembro (quando ocorre o recesso de fim de ano, que emenda com as férias de janeiro) para ajustar o que está errado. E todos os números parecem, propositadamente subestimados. Por malandragem ou incompetência.
Quando se subestimam os números do Produto Interno Bruto (PIB), ou seja a reunião de tudo que se produz de bens, serviços e renda a cada ano (quantidade) na economia, e os da inflação (os preços calculados, em média ponderada, dos itens que compõem o PIB), há um natural descasamento entre o que se pode arrecadar (a receita dos impostos sobre bens, serviços e renda) e, portanto, do que se poderá gastar (a LDO define receitas e despesas e o déficit ou superávit previsto). No caso do Orçamento Geral da União de 2022 a previsão é de que haveria um déficit de R$ 170 bilhões.
Mas acontece que o Ministério da Economia, que fornece e negocia os parâmetros para a Lei Orçamentária de 2022, já ajustou para cima alguns números de 2021: o crescimento do PIB, previsto em abril em 3,2%, foi elevado (pela 3ª vez) para 5,3%, e a inflação, então estimada em 4,4% foi reajustada para 5,9%. Para 2022, – desmentindo o ufanismo dos apoiadores do presidente Jair Bolsonaro que acreditam que o PIB brasileiro poderia concorrer no espaço com os voos dos bilionários Jeff Bezos, Elon Musk e Richard Branson – o governo prevê alta de 2,5% no PIB e de 3,5% na inflação, medida pelo IPCA.
As projeções do mercado financeiro, na Pesquisa Focus do Banco Central, apontavam em 9 de julho para um IPCA de 6,11% este ano e PIB de 5,26. E os principais bancos do país também previam PIB e inflação deste ano acima das metas do governo: o Itaú prevê PIB de 5,8% (com crescimento de 0,3% no 2º trimestre e de 1,2% no 3º trimestre) e inflação de 6,1% para este ano, mas para 2022 crescimento mais modesto (2%) e IPCA maior (3,7%). O Bradesco está mais conservador que o governo para o PIB deste ano (5,2%) e de 2022 (2,2%), e prevê inflação maior em 2021 (6,45%) e menor em 2022 (3,3%).
Em tese, como o próprio ministério considera que a trajetória de preços e volumes negociados estão acima do previsto (como mostra o aumento de 20% na arrecadação até junho), haverá folga de recursos arrecadados para o governo negociar à vontade com políticos e governadores e prefeitos que lhe são próximos politicamente. Isso é uma enorme malandragem que vai permitir ao governo abrir, discricionariamente, seu “saco de bondades” no ano eleitoral.
No Brasil, o crescimento da economia (e da inflação) sempre foi trunfo na manga dos governos para negociar com o Congresso. Uma subversão completa das relações entre o Legislativo (Parlamento) e o Executivo. O Parlamento surgiu na Inglaterra, no século 13, quando os burgueses e os clérigos reagiram contra as constantes convocações do rei para sacramentar aumento de impostos para fazer frentes às despesas sem freio.
Aqui no Brasil durante muitos anos vendeu-se a ideia de que a inflação era parte do processo de desenvolvimento. O governo JK ajudou a propagar essa ideia. Políticos como Paulo Maluf (e até Carlos Lacerda, paradoxalmente) comungavam do mesmo ideal: graças a financiamentos a perder de vista posavam de realizadores do presente (e colhiam os dividendos políticos e comissões pelas realizações), mas deixavam as dívidas para o futuro. A correção monetária anestesiou, para uns poucos, os males da inflação.
Tanto houve de leniência com gastos e estouros nas metas de receitas e despesas públicas (essas sempre crescendo mais que as receitas, o que o cidadão-contribuinte sabe ser impossível de fazer com seu próprio orçamento) que a situação saiu inteiramente do controle gerando a hiperinflação. Só o Plano Real abateu a hidra da inflação e criou um mínimo de estabilidade monetária. A tentação pelos gastos desenfreados é sempre grande, pois ajuda a encobrir superfaturamentos, comissões e desvios nas contratações públicas.
A crônica da votação dos orçamentos de 2021 e da proposta orçamentária para 2022 é de estarrecer. O OGU de 2021 só foi aprovado em 25 de março deste ano. Ou seja, atrasado, com quase 25% de bola rolando e a CPI da Covid-19 iniciando os trabalhos. E previu déficit de R$ 247 bilhões. Mas tudo foi amaciado com aprovação de verbas orçamentárias fáceis para deputados e senadores. A moeda de referência foi a destinação de verbas para a compra de retroescavadeiras, com as quais os políticos fecham acordos com os prefeitos em suas bases eleitorais. O objetivo imediato era arregimentar votos contra a instauração de um processo de “impeachment” pelo conjunto de ações negacionistas que levou mais de 540 mil brasileiros à morte pela Covid-19.
Para o ano eleitoral de 2022, o butim foi mais valioso. Mais uma vez criou-se um Orçamento ficcional. O déficit previsto de R$ 170,47 bilhões é só para constar. Nenhum deputado da ampla base aliada do governo fez restrições aos números fora da realidade. Estava em jogo a farta distribuição de verbas para os fundos partidários nas eleições de outubro de 2022, que vão renovar os mandados da Câmara, do Senado, das Assembleias Legislativas, dos governos estaduais e da presidência da República.
E quem hipocritamente criticou, na eleição de 2020, a exemplo dos então aliados do governo Bolsonaro, a destinação de R$ 2 bilhões para o fundo eleitoral ser repartido entre os cacifes dos partidos conforme a sua representação, fez cara de paisagem agora quando o mesmo fundo teve ser valor praticamente triplicado para R$ 5,7 bilhões.
Com chances eleitorais crescentes após a reabilitação política de Lula quando o Supremo Tribunal Federal considerou a suspeição do julgamento de ações contra o ex-presidente pela Justiça Federal de Curitiba, então sob o comando do juiz Sérgio Moro, e a desidratação da popularidade de Jair Bolsonaro, com a péssima condução do país na pandemia da Covid-19 e as revelações de corrupção no seio do governo, o PT também mandou às favas os escrúpulos.
Lembrando o gesto do ex-ministro da Educação, Jarbas Passarinho, ao votar pelo AI-5 na fatídica reunião ministerial de 13 de dezembro de 1968, o senador Paulo Rocha (PT-PA) justificou que o país “tem de pagar o alto preço da democracia” e que “os representantes do povo não podem ficar submetidos ao poder econômico”. De fato, governantes em campanha pela reeleição, no plano federal e estadual, fazem uso permanente de verbas e da máquina de governo.
Vejam o caso das recentes viagens do presidente Jair Bolsonaro a diversas regiões do país. Uma reinauguração de obra já entregue e/ou com pequeno acréscimo, servem de palanque eleitoral quase um ano antes do início legal da campanha – o registro de candidatos nos partidos políticos termina em 7 de abril, as convenções partidárias para a escolha dos candidatos devem ocorrer entre 20 de julho e 5 de agosto de 2022 e a campanha eleitoral tem início no rádio e na televisão em 31 de agosto. Coincidentemente os caros deslocamentos de toda a “entourage” presidencial precediam as motociatas de Jair Bolsonaro antes que a obstrução intestinal interrompesse o circuito e o impedisse de cumprir a promessa de “cagar e andar para a CPI do Senado”.
O que é mais grave para a democracia: a burla escancarada à legislação ou a hipotética, e nunca provada, suspeita de “fraude nas urnas eletrônicas”? A tradução cabocla das fraudes que Donald Trump disseminou em seguidos tuítes nos Estados Unidos, quando percebeu que a reação à má gestão na pandemia mobilizara amplos setores da sociedade a trocar o comodismo do voto não obrigatório pelo engajamento maciço no voto pelo correio, e causaria a vitória de Biden por mais de 7 milhões de votos populares e no Colégio Eleitoral. E comandou a infame invasão do Capitólio durante a diplomação.
Ou a ameaça prévia de Bolsonaro de que não aceitará outro resultado que não o do voto impresso apontando sua vitória? Se lembrarmos de que ele declarou várias vezes, ao longo do ano passado que era contra a vacinação (enquanto a Pfizer fazia ofertas ao governo desde abril/maio de 2021), e ter garantido, em novembro, “que o governo não comprará a CoronaVac, a vachina chinesa”, vê-se, como dizia Cazuza, que “suas ideias não correspondem aos fatos.
O presidente esperneou. Mas, por insistência do governador de São Paulo, João Dória Jr, o Instituto Butatan firmou contrato com o laboratório Sinovac para a compra dos Insumos Farmacêuticos Ativos IFAs) que permitiram, após aprovação da vacina pela Anvisa, a 1ª vacinação, em 17 de janeiro deste ano, da enfermeira Mônica Calazans, em São Paulo. Mesmo persistindo em desmoralizar a eficácia da CoronaVac, viu-se em vídeo esta semana que o então ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello recebeu em março, no ministério, um representante chinês que pretendia atravessar o contrato da Sinovac com o Butantan, cobrando três vezes mais por 30 milhões de doses.
Confrontado com o juramento na CPI da Covid de que jamais negociara a compra de vacinas, o general abrigado no Palácio do Planalto, após deixar a Saúde, saiu-se com a desculpa esfarrapada de que só recebeu o atravessador, mas quem negociava eram os representantes do Ministério. Com mais essa mentira, a crise de soluços do presidente pode voltar a qualquer momento.
GILBERTO DE MENEZES CÔRTES ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)