A organização que se apossou do Ministério da Saúde, sob o comando do deputado Ricardo Barros (PP-SC), com participação efetiva de Flávio Bolsonaro, tem antecedentes dramáticos, iniciados no interregno de Michel Temer.
A mídia ainda estava toda focada na criminalização do PT e empenhada em blindar Temer. A ponto de desqualificar gravações e filmagens mostrando o homem de confiança de Temer recebendo – e transportando – 500 mil reais em propinas pagas pela JBS. A Controladoria Geral da União e a Polícia Federal tinham como prioridade caçar reitores no campus e bois no pasto.
Nesse ambiente de plena blindagem, Ricardo Barros, um deputado paranaense com histórico de atuação suspeita – porém localizada – descobriu o butim do setor público e da nacionalização da sua atuação: a compra de medicamentos, valendo-se do expediente de gerar situações de emergência para justificar compras sem licitação.
Em jogo, obviamente, a vida de pessoas. Na história abaixo, mais do que isso: suas jogadas afetaram a vida de pelo menos 4 mil crianças brasileiras, vítimas de leucemia.
Entenda o jogo das quadrilhas que passaram a dominar a saúde:
Passo 1 – o remédio chinês sem eficácia
Ricardo Barros assumiu o Ministério da Saúde de Temer em 12 de maio de 2016. Em novembro de 2016, o Ministério da Saúde solicitou parecer à consultoria jurídica sobre a viabilidade de compra do medicamento com inexigibilidade (sem licitação) para atendimento de crianças com leucemia. Em dezembro de 2016 a consultoria emitiu parecer mostrando a impossibilidade da inexigibilidade, já que havia outros fornecedores no mundo.
Em janeiro de 2017, o Ministério da Saúde, de Barros, fez uma rápida verificação de preços de um medicamento crucial, para tratamento de crianças com leucemia. Limitou-se a uma pesquisa de preço entre quatro laboratórios estrangeiros. E fechou com o laboratório chinês Beijing SL Pharmaceutica
No dia 24.01.2017, a pedido do Ministro Barros, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) enviou um parecer de três páginas determinando a compra de 30.660 fracos de L-asparaginasem. Não apenas isso. O documento determinava que, a partir dali, todos os pacientes em tratamento por Leucemia Lifoblástica Aguda (LLA) no Brasil passariam a receber a Leuginase.
Peça 2 – o questionamento do Centro Boldrini
Em junho de 2017, um trabalho do Centro Boldrini – referência na América Latina para tratamento de câncer infantil – atestou a ineficácia do medicamento. Não apenas isso. Também inibia os efeitos de antibióticos utilizados no tratamento da doença. A diretora do hospital, Silvia Brandalise, foi taxativa: “Não uso nem para experimentar em animais. Ele só tem 30% de ação. Desse remorso eu não morro”.
Não era um julgamento qualquer. Em 2014, dra. Silvia foi homenageada pelo Conselho Federal de Medicina com a Comenda Zilda Arns – Medicina e Responsabilidade Social, por seu trabalho no Centro Boldrini.
Boldrini entrou com ações na Justiça para obrigar o Ministério a fornecer 150 frascos por mês do fornecedor anterior. Segundo ela, anualmente cerca de 4 mil crianças brasileiras eram diagnosticadas com LLA, dependendo de medicamentos que não são fabricados no país.
O empenho de Ricardo Barros, em favor do medicamento chinês, foi ostensivo. Chegou a insinuar que a diretora do Boldrini tinha “algum interesse” na compra do medicamento Aginasa alemão:
“O ministro afirmou que a presidente do Boldrini deve “cuidar bem dos seus clientes” e parar de “perturbar o sono de mães” de crianças com câncer. “Já faz um ano isso (que o LeugiNase é distribuído), não houve nenhum efeito adverso, não aconteceu nada de errado com a aplicação do medicamento, e ela insiste. Então fica para mim a impressão de que ela não tem nada contra o medicamento chinês, que ela tem a favor do que ela defende”.
Reportagens no Fantástico trouxeram informações relevantes, que desmentiam Barros. Foi entrevistada Gisélia Ferreira, farmacêutica concursada do Ministério da Saúde. Até fins de 2016 ela participava do grupo que analisou a compra da asparaginase fabricada na China. E a conclusão era a de que faltavam estudos que comprovassem a qualidade e a eficácia do medicamento.
Peça 3 – driblando a Justiça
No dia 2.05.2017, com base nos alertas da dra. Silvia, o Conselho Federal de Medicina oficiou o Procurador Geral da República para investigar a falta de segurança do medicamento chinês.
Mesmo assim, Barros recomendou que hospitais e Estados não interrompessem o tratamento com L-asparaginase porque a sentença, dizia ele, era de “cunho gerencial”. No dia 09.07.2017, segundo o Fantástico, o Ministério anunciou que não compraria mais os medicamentos denunciados, depois que o Ministério Público Federal pediu o recolhimento dos lotes de Leuginase distribuídos em hospitais públicos e a volta da asparaginase fabricada no Japão.
A Boldrini decidiu, então, importar, por conta própria, 500 frascos do fornecedor alemão afastado pelo esquema de Ricardo Barros, mas com prazo de 3 meses para entrega. Apenas em janeiro de 2018, os produtos importados diretamente começaram a chegar, comprometendo o tratamento de 90 crianças.
No dia 24.09.2017, o juiz federal Rolando Valcir Spanholo, do Distrito Federal, proibiu o governo de continuar a comprar e distribuir o LeugiNase. Argumentava de que não havia provas de que o remédio fosse eficaz em humanos.
Usou imagens fortes, da lavra da dra. Silvia:
“O mais importante, todavia, ressalta que não é a falta de produção nacional, mas a não observância dos requisitos mínimos de eficácia e segurança de um medicamento distribuído para a população. Se caracteriza como grave imperícia médica e grave improbidade administrativa, se distribuir um medicamento sem estas prerrogativas fundamentais. Na vida não há recall”.
Mas Barros recusou-se a cumprir as medidas judiciais. Simples assim, recorrendo a um estratagema banal. Abriu um novo pregão, vencido por outro medicamento chinês (Leucospar), do laboratório Xetley, do mesmo distribuidor da LeugiNase.
No dia a dia dos tratamentos, o quadro era tenebroso. Conforme a dra. Silvia Brandalise:
“Hoje, com protocolos modernos, as chances de cura da leucemia linfoide aguda da criança giram ao redor de 80% dos casos. Com a possível redução da ação da Leuginase®, cairão para níveis abaixo de 50%. É um crime hediondo deixar de usar um produto seguro por outro desconhecido. Mortes secundárias a recidivas serão registradas”.
Peça 4 – a montagem da organização na Saúde
A operação Covaxim-Biotech, conduzida por Ricardo Barros – agora, na condição de líder do governo Bolsonaro – contou com participação direta dos Bolsonaro, não apenas do pai, assinando a Medida Provisória que permitiu a compra, e chegando a ligar ao primeiro ministro da Índia, quanto Flávio Bolsonaro, o representante comercial da família, recorrendo ao BNDES para obter financiamentos para Precisa (a intermediária da compra) e celebrado o contrato no Twitter.
Esses movimentos não passaram despercebidos de especialistas da área.
No dia 5 de fevereiro, o médico e advogado Daniel Dourado alertava no Twiter:
O médico Paulo Lotufo reforçava a mesma suspeita.
Naquele dia, a Folha deu a notícia de que o Ministério da Saúde estava nas “últimas negociações” para adquirir 20 milhões de vacinas Covaxin. Na reportagem, o Ministério garantia a compra da Covaxin e condicionava a compra da Sputnik aos preços oferecidos.
No dia 12 de fevereiro, o presidente da Câmara passou a pressionar pessoalmente a Anvisa, exigindo rapidez para a aprovação das vacinas. A declaração ocorreu em meio a disputas com técnicos da Anvisa, que queriam que Bolsonaro vetasse o dispositivo da MP 1003/20, que exigia que, em apenas cinco dias, a Agencia concedesse autorização para a importação de vacinas.
Peça 5 – a hipótese mais plausível para o escândalo
Gradativamente, vai sendo desenrolado o fio da instabilidade no Ministério da Saúde desde o início da pandemia.
A narrativa mais provável é a seguinte, conforme um observador atilado do submundo da contravenção brasiliense:
Explicamos em 29 de agosto de 2020, no “Xadrez de como Bolsonaro herdou a rede neopentecostal de Eduardo Cunha, a apropriação por Bolsonaro de todo o esquema do ex-deputado Eduardo Cunha, o mais influente membro do Centrão.
“Quando Bolsonaro ganhou, esse pessoal tinha já uma expertise em ganhar dinheiro misturando atividades privadas ilícitas (ou semi-ilícitas) com corrupção pública. Tinham estado em praticamente todos os governos federais. Tinham o controle absoluto da máquina pública em vários estados. Por exemplo, Distrito Federal. Sabiam quais as áreas mais vulneráveis para serem atacadas para saque. Uma dessas áreas sensíveis é a saúde pública. Envolve orçamentos bilionários e não há uma padronização de preços. Remédios, insumos, equipamentos, tudo pode ser comprado por x, ou por 2x, sem que alguém possa de imediato afirmar que se trata de corrupção.
O esquema começou a funcionar ainda na gestão do ex-Ministro Luiz Henrique Mandetta, com a indicação – pelo Centrão – de um tercerizado diretamente ligado a Ricardo Barros. Aparentemente, Mandetta, apesar de adepto do plano de destruição do SUS, talvez fosse um empecilho para esses planos de saque.
A mesma dificuldade com o Nelson Teich, que era um gerente da iniciativa privada.
Aproveitaram as divergências com a visão de pandemia do Bozo e tiraram os dois. Para a base bolsonarista não houve prejuízo, pois sempre poderiam ser apresentadas outras desculpas para as mortes.
Ficou Pazuello. Aí entrou essa associação insólita do milicianismo bolsonarista com os tradicionais corruptos de sempre. Essa parece ser a explicação mais plausível para o fato do Ministério da Saúde ter sido o mais militarizado de todos. Na denúncia dos Miranda, sempre aparece algum oficial na cadeia de comando envolvido nos rolos. Já teve aquele episódio grotesco da tentativa de corrupção com as reformas do prédio do RJ.
Parece de fato a atuação de uma quadrilha”.
LUIS NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)