Na melhor das hipóteses para o palácio do planalto, Jair Bolsonaro sempre teve absoluto conhecimento do esquema de corrupção envolvendo a compra de vacinas Covaxin por parte de seu governo e a intermediária Precisa Medicamentos. E mesmo após o encontro do dia 20 de março com os Luís Ricardo e Luiz Miranda, servidor no ministério da saúde e deputado federal (DEM-DF) respectivamente, quando os dois estiveram no Palácio da Alvorada e apresentaram em detalhes documentados o crime que estava se cometendo em plena pandemia com dinheiro público, nada aconteceu.
Muito pelo contrário. Os dias que se seguiram ao encontro palaciano foram marcados pela subida de tom do líder do governo, deputado Ricardo Barros (PP-PR), no plenário do congresso nacional durante o mês de abril, numa defesa veemente da vacina produzida por um laboratório indiano. Vistos hoje, com outro olhar e já se tendo conhecimento dos fatos, impressiona a avidez com que o governo se lançou desde o início ao tema da Covaxin, traduzida na sequência sistemática de atos e pronunciamentos do presidente e do líder de seu governo.
O acirramento da obsessão de Ricardo Barros tem uma data bem determinada: o dia 31 de março, quando a Anvisa rejeitou o pedido de importação de Covaxin feita pelo ministério da saúde, bloqueando assim o bilionário contrato.
A partir daí ocorre uma sucessão agressiva de pronunciamentos por parte da liderança de Bolsonaro. Em favor da Covaxin, veemente contra a Anvisa.
O jabuti começou a construir o arcabouço legal para subir na árvore no dia 6 de janeiro com a edição, por parte do governo, da medida provisória 1026, e foi ganhando força em sua escalada com um cipoal de emendas aditivas e pronunciamentos em plenário. Há uma coincidência marcante no dia da publicação da MP: do outro lado do mundo, o embaixador brasileiro em Nova Déli recebia uma comitiva da Associação Brasileira das Clínicas de Vacinas para encontro, com visita da missão a fábrica da Bharat Biotech. A presença de uma figura da comitiva agora ganha luz especial: Francisco Maximiano, o presidente da Precisa.
Alguns artigos da MP do dia 6 de janeiro valem a atenção. Não apenas pelo direcionamento, mas porque alguns poderiam ter sido feitos bem antes, quando as demais vacinas eram oferecidas e o governo sequer respondia. Quanto mais se preocupava em normatizar as eventuais compras. Outros pontos parecem bem cirúrgicos na direção à Índia.
O artigo 2 flexibiliza a permissão de compra antes do registro ou da autorização para uso emergencial pela Anvisa. Logo o ponto chave com o qual o presidente e o ministro da saúde tanto se valeram para justificar a não compra de vacinas como a da Pfizer e Coronavac anteriormente. Com o acordo da Covaxin já em costura, o artigo estava lá:
O artigo 3 parece sob medida. Versa sobre autorização para compra mesmo se o fornecedor estiver com algum momentâneo impedimento em negociar com o poder público ou punição. A Precisa Medicamentos, intermediária entre o governo e o laboratório indiano, responde por um calote no próprio ministério da saúde.
O artigo 12 da MP assinada por Bolsonaro é sobre autorização para pagamento adiantado e ainda eliminar problemas na hipótese de se perder o pagamento realizado. Pontos que também valeram a veemente oposição de Jair Bolsonaro e Eduardo Pazuello. Por eles também os dois justificaram não acertar com a Pfizer. “Contrato leonino”, repetiram ambos. No dia 6 de janeiro, com as negociações da Covaxin em curso, Bolsonaro jamegou a MP.
Já o artigo 16 é curioso. Ele esconde o jabuti. Embora o quelônio estivesse de corpo e alma ali, não aparece. No artigo, fica sacramentado que a Anvisa poderá conceder autorização temporária para qualquer vacina contra a Covid bastando que ela já possua registro por parte de uma das autoridades sanitárias de uma dessas 5 agências: Estados Unidos, União Europeia, Japão, China e Reino Unido.
Onde o jabuti se esconde? Na não inclusão da agência indiana. Até ali, 6 de janeiro de 2021, as tratativas eram incipientes. Dois dias depois, Bolsonaro envia carta para o primeiro ministro indiano, Narendra Modi afirmando o interesse na Covaxin. No dia 18, o ministério envia carta para a Precisa informando querer abrir (ao menos oficialmente) tratativas para a compra da vacina.
E então, já com tudo bem adiantado, no dia 3 de fevereiro, o próprio Ricardo Barros (PP-PR) envia a emenda aditiva 1026/0017, que inclui a agência reguladora indiana entre as demais.
No mesmo 3 de fevereiro, o líder de Bolsonaro envia, da própria lavra, o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 8/21, que suspende regra da Anvisa, onde está a exigência de que os fabricantes de vacinas contra a Covid-19, para solicitar a autorização de uso emergencial, tenham que conduzir os ensaios clínicos relativos à fase 3 também no Brasil.
O deputado Ricardo Barros aproveita e faz veementes críticas contra a Anvisa para justificar seu ato, alegando que a exigência de realização da fase 3 no Brasil não encontra paralelo em outros países. Com autoridade que faz parecer ser um cientista, explana sobre a norma: “Tal exigência não goza de razoabilidade e sequer tem amparo na legislação vigente no País. Trata-se de inovação normativa que exorbita do poder regulamentar da agência”, afirmou.
Em tempo recorde, inimaginável para um governo que recebeu mais de uma centena de e-mails da Pfizer e sequer respondeu, em 25 de fevereiro o contrato entre o ministério da saúde assina contrato para compra de 20 milhões de doses da Covaxin.
No entanto, em 31 de março, o revés para a consolidação de toda a estratégia, chamado na CPI de “esquema criminoso”: a Anvisa rejeita o pedido de importação de doses da Covaxin feito pelo ministério da saúde, alegando falta de documentos básicos por parte dos responsáveis.
O que vem a partir desse 31 de março impressiona. A Anvisa ganha contornos de obsessão nos discursos do líder de Bolsonaro em plenário. Monotemático após a negativa da Anvisa, a Covaxin também vira protagonista das falas do parlamentar. Sobe os decibeis da pressão pelo contrato.
No dia 6 de abril, sobe ao plenário às 16h04 e relata sobre as 40 milhões de doses que o Brasil tem contratadas junto ao laboratório indiano e critica a morosidade do processo.
Volta a carga nove dias depois, em 15 de abril, quando pede celeridade para a Anvisa para a liberação da Covaxin.
Em 29 de maio, não fez por menos e tirou a falta de vacina do colo do governo e empurrou a culpa para a Anvisa.
Fora do plenário, a pressão segue intensa.
Francisco Emerson Maximiano, o sócio da Precisa, seguia operando nos corredores do ministério.
No dia 28 de abril, foi recebido por Rodrigo Moreira da Cruz, secretário executivo do ministério da saúde, logo no primeiro horário.
O secretário é da área de logística do ministério, nomeado no dia 30 de março, emprestado pelo ministério da infraestrutura e de confiança de Tarcísio Freitas, também da confiança de Bolsonaro. A reportagem entrou em contato com o ministério da saúde para saber sobre a pauta da reunião, sem resposta.
A reunião com o empresário da empresa intermediária da Covaxin foi às 8h. Ás 9h, Rodrigo Moreira da Cruz estava em outra reunião, dessa vez no Planalto, com o presidente Jair Bolsonaro, junto com o comitê de cordenação para enfrentamento do Covid-19.
O secretário é da área de logística do ministério, nomeado no dia 30 de março, emprestado pelo ministério da infraestrutura e de confiança de Tarcísio Freitas, também da confiança de Bolsonaro.
DEPUTADO RELATOU OS FATOS AO GENERAL PAZUELLO EM VIAGEM DO MINISTÉRIO
Não foi só para o presidente que o deputado Luís Miranda falou sobre o esquema. No dia 21 de março, exatamente o dia seguinte do encontro no Alvorada, participou de voo do ministério entre Brasília e Guarulhos e durante a viagem, conforme relatou na CPI, conversou com o general Eduardo Pazuello, então ainda ministro da saúde, sobre o esquema de corrupção. O voo da ida foi às 15h e a delegação tinha 12 integrantes e nomes como o ex-ministro das relações exteriores, Ernesto Araújo.
Já o voo de retorno, às 20h, ganhou mais dois passageiros além dos 12 da ida, como mostra o documento obtido pela reportagem através da Lei de Acesso à Informação. Os dois novos viajantes eram Roberto Ferreira Dias e Aírton Antônio Soligo, o Aírton Cascavel, homem de confiança e braço direito de Pazuello.
Roberto Ferreira Dias, diretor de logística do ministério, foi citado por Luís Miranda na conversa com Bolsonaro, e, segundo o depoimento do deputado na CPI, também como um dos operadores do esquema. É homem de confiança e foi posto no ministério pelo deputado Abelardo Lupion (PP-PR), por recomendação de Ricardo Barros, de acordo com fontes ouvidas pela reportagem. Em tempo recorde, pouco tempo depois da nomeação, foi indicado para assumir vaga na Anvisa, mas já na ocasião não pode ir porque causou barulho, pois já sofria denúncias de irregularidades em contratos. Mas tampouco foi exonerado da saúde. Para não ampliar o barulho das denúncias, não foi transferido. Considerado um representante do “Centrão” no ministério, no dia 19 de março foi Roberto Ferreira Dias que assinou as dispensas de licitação da Sputinik no valor de R$ 693.000.000,00 e da Covaxin, esta última no valor de R$ 1.614.000.000,00.
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LÚCIO DE CASTRO ” AGÊNCIA INVESTIGATICA SPOTLIGHT” ( BRASIL)