LEMBRANÇAS DE UM PAÍS QUE NÃO HOUVE, OU A MEMÓRIA DE MANUEL BONFIM

O Brasil saia da ditadura. Era primeira metade dos anos 90 e buscávamos um modelo que permitisse casar desenvolvimento com inclusão social, que desse oxigênio para as empresas, depois do pesado engessamento do período anterior, e, ao mesmo tempo, completasse o processo de inclusão competitiva nas grandes cadeias globais de suprimentos.

A ditadura legou um país industrializado e profundamente desigual. Os desafios seriam, agora, colocar a civilização na pauta, sob os eflúvios da nova Constituição.

Foi quando caiu em minhas mãos o livro “América Latina, Males de Origem”, do sergipano Manoel Bomfim. Era Semana Santa. Lembro detalhes porque foi uma descoberta essencial para minha formação. Nele, Bomfim detalhava o que deveria ser um país moderno, o papel do Estado, do setor privado, as formas de participação. Entusiasmava-o o sentimento de participação que encontrara nos Estados Unidos, antes do advento do capitalismo monopolista. Denunciava a apropriação do Estado, no Brasil, por grupos de interesse e mostrava o papel deletério dos “financistas” na definição das políticas públicas. Certamente se referia ao episódio conhecido como “Encilhamento”. 

Não havia informações suficientes na época, fora dos limites do capital financeiro, para permitir a Bomfim o aprofundamento do diagnóstico. Mas, com uma capacidade de observação única, ele intuía as principais peças do jogo.

O país está saudável. Aí começa o jogo com o Estado. O Estado entra em crise. Quando a população começa a se dar conta de que o problema é essa apropriação do Estado por interesses privados, aparece a figura do “financista”, o sujeito que teoricamente está em linha com a última palavra da ciência e despeja receitas para conter a crise. E o que era uma crise do Estado se transforma em uma crise do país.

O país saía da Monarquia, entrava na República e, mesmo com essa crise, Bomfim exarava otimismo sobre a nova civilização que emergia nos trópicos.

Levantei sua história. Descobri que tinha se formado psicólogo. Filho de usineiros, estudou na Europa. Na volta, foi o primeiro a questionar as teorias racistas, até então hegemônicas na intelectualidade brasileira. 

Não era um especialista, no sentido estreito do sujeito que não consegue sair da sua esfera de conhecimento. Era uma mente fundamentalmente moderna e com visão ampla e sistêmica. Expunha uma visão moderna em cada tema sobre o qual se debruçava. E entendia que o fortalecimento do conceito de Nação era essencial para consolidar o desenvolvimento. Em parceria com Olavo Bilac chegou a publicar pequenos trabalhos para ensinar as crianças a conhecer o país continental e multifacetado.

Não sendo historiador, inspirou-se em insights de Rocha Pombo e escreveu sua obra central, o livro que me acompanhava na Semana Santa. Sua visão era tão radicalmente moderna, em cima do bolor intelectual da época e de todos os tempos, que a única alternativa da inteligência nativa foi ignorá-lo, ou então atacá-lo impiedosamente como fez Silvio Romero, defensor de teses racialistas, com uma agressividade tão inaudita que Bomfim houve por bem ignorá-la.

Houve quem supusesse que seu retraimento, nessa polêmica, teria sido o causador de seu esquecimento. Bobagem! Foi esquecido por excesso de modernidade em um país visceralmente atrasado.

Em uma visita ao professor Antônio Cândido, soube dele que, ainda adolescente, seu pai chamou sua atenção para o pensamento de Bomfim. Uma segunda descoberta de Bomfim veio com Darcy Ribeiro.

Tornei-me um defensor de seu pensamento. Escrevi vários artigos chamando a atenção para sua obra que, creio, ajudaram a convencer o então Ministro da Cultura, Francisco Weffort, a incluir “América Latina, Males de Origem” em uma Brasilianas lançada na época.

Questionei as críticas a ele feitas por um grande intelectual, Wilson Martins, apontando sua suposta incongruência em criticar a monarquia e, depois da decepção com a República, tratar os Bragança com visão mais benevolente. Rebati mostrando que Martins desconsiderava a parte mais relevante do livro, a proposta de um desenho de país moderno. Martins retificou sua visão em entrevista posterior.

A leitura do “América Latina, Males de Origem” me levou, desde então, a acompanhar os paralelos entre o Brasil e o país de cem anos atrás.

No Cruzado houve movimento similar ao do “encilhamento” na figura do economista “financista” que, a partir dali, dominaria a política econômica de todos os governos posteriores. 

A lógica supostamente legitimadoras era a mesma do início do século. Se tratar bem o grande capital, haverá um transbordamento dos países centrais para os periféricos, distribuindo os benefícios para todos. No final do processo, havia mais concentração de renda, menos desenvolvimento e a transformação do capital financeiro em capital gafanhoto – que vai embora depois de destruída a lavoura.

Nos anos 30, o país teve o apoio incomensurável do maior estadista brasileiro, o Sr. Crise, através de uma moratória que obrigou o governo a controlar as saidas de capital. Sem o ganho fácil, o capital desceu para a terra e irrigou o processo de industrialização posterior.

Em 2005 escrevi o meu livro “Os Cabeças de Planilha”, detalhando as semelhanças entre os dois momentos, principalmente no golpe da remonetização da economia – com o Real repetindo, com aprimoramento, o golpe da remonetização de Rui Barbosa. 

De lá para cá, os paralelismos adquiriram o ar de tragédia. O mesmo discurso falso da Velha República em defesa da financeirização, o mesmo esgarçamento da democracia, o mesmo aumento da miséria, a mesma desorganização do mercado de opinião, antes pelo rádio, agora pelas redes sociais. Até as pandemias se repetiram, com a gripe espanhola de cem anos atrás, e a Covid agora em cima de uma sociedade depauperada pelo modelo econômico.

Ainda nos anos 90, fui convidado a escrever o prefácio do relançamento de última obra de Bofim, escrita no final da vida, ele já doente e a República Velha sendo soterrada pelo positivismo que vinha do sul. O livro foi lançado em plena ascensão da Aliança Liberal, e era de um pessimismo atroz com o país. Via a democracia desmoronando, sem nunca ter sido, o deslumbramento dos novos vencedores, o fracasso de uma elite subdesenvolvida, selvagem.

O pessimismo com o país

Algumas vezes tentava imaginar como seria o país quando eu chegasse na fase final de minha vida. Ficaria tão pessimista quanto Bomfim se tornou? Jamais imaginei a tragédia que se desenhou.

Agora, nos momentos de pausa, fico lembrando dos sonhos da pós-redemocratização. Com Jorge Gerdau e Paulo Cunha compartilhei, muitas vezes, a esperança em cima dos programas de qualidade. Uma vez, em um seminário na Bahia, Gerdau me contava a conversa que teve com um grande empresário japonês: 

– Agora que o Brasil está levando programas de qualidade inclusive para o setor público, caminha para ser uma das maiores nações do mundo

Havia uma liderança empresarial ciosa de sua responsabilidade na construção de um grande país. Movimentos sociais e sindicatos canalizavam suas demandas para aquele que viria a se tornar o maior partido trabalhista do planeta. 

Tentava-se reconstruir as políticas científico-tecnológicas. E, principalmente, havia uma mudança global com a ascensão dos chamados países-baleia, a construção das novas cadeias globais de insumos e a possibilidade concreta do Brasil ser um grande ator, ao lado da China, Índia e Russia.

Gradativamente, tudo foi sendo soterrado pela financeirização ampla, completa e integral, pelo jogo sistemático de permitir a apreciação do câmbio e sangrar o orçamento com juros absurdos.

Com exceção do período de ouro de 2008-2012, ano após ano a liberdade total de câmbio, os juros da dívida pública foram consumindo o futuro e enriquecendo grupos, com poucos ganhos para o país. A única política sistêmica de desenvolvimento, em torno do pré-sal, foi destruída pela Lava Jato, representando os interesses mais espúrios. Os únicos ganhos das políticas equivocadas de campeões nacionais – o conhecimento e mercados conquistados pelos grandes grupos – foram destruídos por um moralismo mal-intencionado a serviço de interesses externos.

À medida em que o desastre avançava, foi sendo desvendado o mistério, os fatores que sempre impediram o país de aproveitar janelas de oportunidade e se desenvolver de forma orgânica.

No caos do qual emergiu Bolsonaro aparecem nítidas as características de uma sociedade escravagista, mal informada, atrasada, incapaz de pensar o novo. Uma sociedade que mistifica o conceito de Iluminismo, um modernismo à Miami, embusteiro, de uma república das bananas que reduziu direitos centrais, indispensáveis para um projeto de Nação,  a meros algoritmos, com a bandeira da meritocracia glamourizando uma crueldade endêmica, arraigada, indestrutível.

Mas não passarão. Há uma alma brasileira que resistiu à República Velha, ao Estado Novo, ao golpe de 64, e resistirá ao pesado interregno bolsonariano.

Até o último dia de minha vida estarei nessa trincheira apostando na alma brasileira, no grande país branco-negro-amarelo-vermelho, nos movimentos feministas, LBGTI, nos movimentos sociais, na arte brasileira, no empreendedorismo e na capacidade de inovação do brasileiro.

LUIS NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)

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