CHARGE DE NANDO MOTTA
Se o saudoso Sérgio Porto ainda estivesse vivo, seu alter ego, Stanislaw Ponte Preta, estaria preparando uma edição revisitada do “Febeapá”, ou melhor do “Festival de Besteiras que Assola o País”, uma coletânea de baboseiras e declarações estapafúrdias das tropas militares (e seus apoiadores) que tomaram o poder do Brasil em abril de 1968. A 1ª edição foi lançada em 1966. Em 1967, houve uma 2ª edição, aumentada. Afinal, as besteiras ditas por fardados que não tinham traquejo no “múnus público” e eram justificadas por políticos que se submeteram aos militares se multiplicavam diariamente. A 3ª e última edição, repleta de colocações do marechal Costa e Silva e sua folclórica esposa, que seria tratada hoje como uma “perua” deslumbrada com o poder, ainda veio em 1968. O “cavalo” do Stanislaw Ponte Preta, sobrinho da “Tia Zulmira”, deixou órfãos milhares de admiradores e amigos impagáveis da “Boca do Mato”, como o “Primo Altamirando”, ao morrer precocemente aos 45 anos, em setembro de 1968. Talvez pressentindo os tempos sombrios que viriam com a decretação do AI-5, em 13 de dezembro de 1968. Assuntos não iriam faltar para futuras edições. Mas, o “Febeabá” dificilmente teria novas edições enquanto a liberdade no país não raiasse no país.
Os tempos modernos da internet e das transmissões ao vivo nas mídias sociais e na TV são um prato cheio para compilações. Mas se na época de Sérgio Porto as besteiras ou as mentiras só eram compiladas no dia seguinte, quando estavam impressas nas folhas de jornais ou revistas de então (quando a censura, sempre vigilante, não vetava), hoje as besteiras e mentiras já podem ser checadas quase que instantaneamente, graças ao Dr. Google. Nem assim os políticos e atores da vida social tomam ao devido cuidado para não faltar com a verdade ou moderar o disparo da metralhadora giratória de bobagens.
A CPI da Covid tem sido um desfilar quase diário de bobagens e metiras. Quase, porque, seguindo o expediente normal do Congresso, só ocorre das terças às quintas-feiras, quando não há um feriado no meio (nos demais dias, seguindo um velho hábito que já existia quando o Rio de Janeiro era a capital federal, mas se cristalizou com a mudança para Brasília, em 1960, senadores e deputados precisam estar presentes em seus estados e bases eleitorais). Nos tempos do Lalau (apelido carinhoso que Sérgio Porto dava a seu personagem), criador do impagável, e hoje politicamente incorreto, “Samba do Crioulo Doido” (motivado pelas restrições aos sambas-enredos no período do “Febeapá”) e do concurso “as Certinhas do Lalau” (que também seria criticado, embora muitas cantoras, atrizes e outros gêneros que almejam a fama usem abertamente de apelações eróticas para ganhar “likes”), Sérgio Porto teria manancial semanal para encher páginas de jornais com pérolas reais ou “fakes”.
Na CPI, o campeão da mentira, até o momento, é Dom Eduardo Pazuello, o “mentiroso”, digno representante do país descoberto 521 anos antes, em 1500, no reinado de D. Manuel, o “Venturoso”. Mas o país que acolheu imigrantes dos quatro cantos do mundo tem um elenco vasto, que será alvo de novas sabatinas na CPI. A reconvocação de depoentes e testemunhas ocorre nos inquéritos policiais (quando são diligentemente bem feitos, o que infelizmente é raro) para que se esclareçam inconsistências e divergências de fatos e versões com as provas já obtidas do quebra-cabeças. Até agora não se ouviu um descendente de índio ou de negros, expoentes maiores da população brasileira. Os sobrenomes têm indicado origem italiana (Luiz Henrique Mandetta), espanhola (Marcelo Queiroga), judaico-europeia (Nelson Teich, Fábio Wajngarten e um 3º a ser convocado, Arthur Weintraub, que mora nos Estados Unidos e se declarou esta semana com Covid-19, como o irmão, Abraam, ex-ministro da desEducação), ou japonesa, como Nise Yamaguchi.
Mas nada supera o presidente da República, comandante em chefe das Forças Armadas, Jair Messias Bolsonaro, também descendente de italianos. Se, em setembro de 2020 mentiu descaradamente em discurso virtual na Assembleia Geral das Nações Unidas, quando disse que o Brasil tinha dado Auxílio Emergencial de “quase mil dólares a 65 milhões de brasileiros” – no mesmo dia, a Caixa Econômica Federal informava que o AE pago a 67 milhões de brasileiros (aqui ponto para Bolsonaro) era 44% inferior aos US$ 1 mil ditos pelo presidente (na ocasião, o dólar valia R$ 5,47). Agora que o dólar caiu para R$ 5,06, ainda estariam faltando mais de 30%. Só que, de lá para cá, a inflação disparou e o Auxílio Emergencial murchou para menos de R$ 250 mensais e excluiu mais de 30 milhões de pessoas.
A última grande mentira do presidente foi dita na noite de 4ª feira, 2 de junho, em rede nacional de Rádio e Televisão. Após rápida mensagem de solidariedade às famílias enlutadas pela Covid-19, sem mencionar que eram mais de 467 mil mortos – neste sábado passamos de 470 mil mortos e, infelizmente, perderemos mais de 10 mil na próxima semana – (o 2º maior do mundo após os 595 mil mortos dos Estados Unidos, embora sejamos o 6º país em população, com 213 milhões de habitantes), disse que o país era o “quarto país que mais vacinava no mundo” e estava com “cem milhões de doses de vacinas distribuídas”. “Fake news” amparada na propaganda oficial que, usando um “Zé Gotinha” bombado, já trabalha com esse número icônico, mas que, talvez (quem sabe, tomara), só seja alcançado no final deste mês. No dia 2 de junho, as vacinações que chegaram aos braços dos brasileiros (somadas a 1º e a 2ª dose) não alcançaram 68 milhões. Faltavam 32 milhões ou 32% do que disse o presidente. E as pessoas que receberam a 2ª dose (que é a que protege, salvo na vacina Janssen, da J&J, já aprovada pela Anvisa, mas não comprada pelo Brasil), representavam menos de 14% do total.
Precisamos de bem mais vacinas, no braço, e não as “100 milhões distribuídas” pela propaganda oficial e anunciadas pelo presidente Bolsonaro. Os 68 milhões de doses efetivamente aplicadas no Brasil nos colocavam em 76º lugar entre os países que mais vacinavam em relação à população. Israel era o 8º, o Chile, era o 15º. O tamanho da população costuma ter relação com as mortes e vacinações. Segundo o painel da Universidade John Hopskin, o líder em vacinação é a China, com 723,228 milhões de doses. Mas sem transparência sobre 1ª e 2ª doses, o país com 1.400 milhões de habitantes só figura em 58º lugar na estatística por 100 habitantes, com cobertura de 50,7%. Os EUA vêm em 2º com 298 milhões de doses para 329 milhões (88,6%), sendo 41% totalmente vacinados. A Índia é o 3º em vacinação (227,9 milhões), mas é uma cobertura de apenas 3,5% de sua população de 1.380 milhões com a 2ª dose. [por isso, a aprovação do uso emergencial da vacina Covaxin pela Anvisa, deve ser vista com reservas. É sempre bom o Brasil ampliar o leque de vacinas – a russa Sputnik V ainda não aprovada, poderia reforçar o estoque em mais de 40 milhões de doses. Entretanto, sem entrar na cota da OMS, dificilmente o laboratório Bharat Biontech, que produz a vacina, terá como exportar diretamente ao Brasil. A Fiocruz está penando para cumprir suas metas de produção da AztraZeneca porque o fornecimento dos Insumos Farmacêuticos Ativos (IFAs) que estava acertado com o “Serum Institute” da Índia, o maior produtor de IFAs do mundo, foi suspenso com a explosão na pandemia no país antes mesmo da descoberta da cepa indiana que levou o primeiro ministro Narendra Modi a pedir auxílio de IFAs e vacinas à China. O que complica o fornecimento à Fiocruz e ao Butatan a cada fustigada do Brasil ao país que Xi Jinping, maior comprador de produtos brasileiros].
O 4º país que lidera as estatísticas macabras de mortes, o México, que tem 127 milhões de habitantes e 228,5 mil mortos, só conseguiu aplicar 32,8 milhões de vacinas, sendo que menos de 10,5% da população recebeu a 2ª dose. Se alguém tinha dúvidas de que a vacinação é a única saída segura para a recuperação da economia (do Brasil e de qualquer país), o Fundo Monetário Internacional afirmou, na reunião do G-7, as sete maiores economias do mundo nesta semana, que “o mundo só estará seguro quando todos estiverem vacinados, o que compromete os países ricos com as nações mais pobres. Por isso os EUA e outros países (europeus sobretudo) que atingiram metas razoáveis de cobertura de suas populações e têm estoques suficientes para prosseguir as vacinações cederam doses ao mecanismo de solidariedade da OMS. O Brasil se candidata disputar parte do quinhão de 6 milhões de doses que o presidente Joe Biden colocou à disposição da América Latina e Caribe. Falas ufanistas como as do presidente Bolsonaro, que não relativizam a posição brasileira – estamos avançando, mas estamos atrasados pelo pouco empenho em buscar o mais amplo espectro de vacinas – podem dar a impressão de que não estamos necessitados. Estamos, muito.
Por sinal, a estatística macabra de mortes (pelo tamanho da população) tem relação quase direta com o comportamento dos dirigentes dos países. A liderança negacionista de Donald Trump explica em grande parte o recorde americano (ao lado do excesso de consumo de comidas com gorduras trans e refrigerantes). É visível a queda de casos a partir de 20 de janeiro, com a nova postura de incentivo ao uso de máscaras na gestão Biden, que acelerou as metas de vacinação do país. Os países cujos presidentes resolveram copiar a postura de minimizar a pandemia, tratada como “gripezinha” por Trump, como o Brasil de Bolsonaro, a populosa Índia do populista PM Narendra Modi, o México do populista de esquerda, Manoel Lopez Obrador, o Reino Unido do primeiro-ministro Boris Johnson e o Irã dos Aiatolás (prova de que a Covid-19 não respeita direita, esquerda, ricos ou pobres, ou qualquer religião), ganhou a companhia do caos que se instalou no nosso vizinho Peru, onde o vazio presidencial (a eleição deste domingo vai selar o destino dos descendentes dos Incas) provocou a mortalidade recorde de 180 mil vítimas para 32,5 milhões de habitantes.
Nos EUA, a decisão soberana do eleitorado varreu os planos autocráticos de Donald Trump de criar um império da ultra-direita, cujo cartão de visita final foi a infame invasão do Capitólio pela turba insuflada pelo presidente derrotado que ainda esperneava acusando o resultado eleitoral de fraudulento. E agora o Facebook ampliou até janeiro de 2023 a proibição de Trump frequentar a rede social com “fake news” e suas propostas delirantes. A evolução americana há de colocar as ideias deste especulador imobiliário no canto da História, como exemplo a não ser repetido. Em outro espelho em que se mira o presidente brasileiro, no Estado de Israel, parece surgir uma coalisão improvável para se opor à continuidade da política belicosa de Benjamim Netanyahu, que durante 12 anos acirrou os ânimos entre judeus e palestinos e deixou parte do mundo de prontidão. Mas Netanyahu tem sete vidas. Melhor esperar…
Poderia falar do minimizado risco do apagão e do inflado PIB do 1º trimestre (vou tratar disso na minha coluna de amanhã, O Outro lado da Moeda), mas fiquemos no “pega na mentira” maior da semana. Aquela encenada pelo presidente da República, comandante em chefe das Forças Armadas, o Ministério da Defesa, na pessoa do general, Walter Braga Neto, e o comando do Exército, força chefiada pelo general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira. Após 11 dias de suspense desde da participação do ex-ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, na motociata organizada na orla do Rio de Janeiro pelo presidente Jair Bolsonaro, que arregimentou, com o governador aliado (o ex-vice de Wilson Witzel) Cláudio Castro um batalhão de quase 1.000 PMs motorizados, e atraiu milhares de motociclistas com promessa de isentá-los do pagamento de pedágio nas cancelas da cidade e estradas. Pazuello, festejado por Bolsonaro como “meu gordinho” no palanque erguido em frente ao Monumento dos Pracinhas (mortos na 2ª Guerra Mundial) no Aterro do Flamengo, se defendeu no Comitê de Disciplina do Exército, que proíbe a participação de fardados da ativa em atos políticos, disse que “não era um ato político”, mas “uma reunião de motoqueiros”, e que “o presidente nem filiado a um partido”. Antes do comando de 9 generais do Exército engolir esta versão fajuta, o general de três estrelas (Divisão) foi aquinhoado com cargo de R$ 16 mil mensais na Secretaria de Assuntos Estratégicos que funciona no Palácio do Planalto. E Bolsonaro se encaminhou para se filiar ao pequeno mas simbólico Patriota -51, para competir com Lula.
Pois 5ª feira, 3 de junho, feriado de “Corpus Christi”, o Exército bateu continência ao comandante em chefe e ficou tudo por isso mesmo. Detalhe ignorado, Pazuello fora chamado ao palanque para ser testado, extraoficialmente no evento como possível candidato a governador do Rio de Janeiro. Com sua capacidade em logística testada na crise de Manaus, sua terra natal, aí mesmo é que o Cristo Redentor (que está de máscara contra a Covid-19 na capa da revista “The Economist”), nos abandona. O Papa já brincou que o Brasil não tem jeito.
GILBERTO DE MENEZES CÔRTES ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)