É elucidativo o desabafo do deputado Kim Kataguari, sobre como a direita jogou fora a oportunidade de ficar 20 anos no poder. A lógica dessa rota desse fim precoce se deve a dois personagens fundamentais: Donald Trump, nos Estados Unidos, e Jair Bolsonaro, no Brasil. Mas não apenas isso.
Peça 1 – os novos tempos modernos
Sugere-se aos leitores que assistam a dois filmes essenciais para entrar os novos-velhos tempos e a superexploração do trabalho.
O primeiro, “Tempos Modernos” de Charles Chaplin. Não há diferença entre a instrumentalização do trabalhador nos tempos do fordismo e as técnicas de eficiência implementadas pela Amazon ou pela uberização do trabalho. A cena do experimento com a máquina de almoço é clássica. Colocam Carlitos na máquina para aumentar a eficiência da hora do almoço (confira no minuto 9).
O filme “O jovem Karl Marx”, recente, reconstrói o clima de superexploração na Europa, no início da revolução industrial.
O que os dois casos – e os tempos atuais – têm em comum é a superexploração do trabalho advinda de uma nova revolução tecnológica apropriada pelo grande capital.
A primeira revolução industrial introduziu as máquinas na produção.
No século 19, a segunda revolução ocorreu nos serviços públicos – navios a vapor, ferrovias, iluminação, telefonia e saneamento, com o avanço da indústria química, elétrica, de petróleo e de aço. E na implantação do fordismo, a implantação de ortganização e métodos no trabalho descritos por Chaplin.
A terceira revolução começou nos anos 60/70 com o desenvolvimento da digitalização.
A quarta avançou recentemente, com o uso intensivo da digitalização para melhoria da produtividade dos processos.
Em todos os casos, havia mudanças nos modos de produção que definia novas formas de relação capital x trabalho, abrindo espaço para a super-exploração.
Nos últimos anos, a superexploração se refletiu no modelo ultraliberal, preconizando o desmonte do Estado, das legislações em defesa do trabalho e na privatização de todos os serviços públicos.
No Brasil esse modelo foi implementado de forma retardatária através da chamada “Ponte Para o Futuro”, endossada pela frente que articulou o impeachment de Dilma Rousseff – do Centrão ao Supremo -, em um momento em que o mundo começava a rever a superexploração como uma ameaça ao próprio capitalismo, ao impedir o desenvolvimento harmônico dos países, fazendo com que a riqueza financeira se despregasse da riqueza real, gerando bolhas e crises sucessivas.
No caso brasileiro, empregou-se o mais usual dos golpes liberais, a chamada “teoria do choque”.
Peça 2 – a teoria do choque
O modelo “teoria do choque” foi implantado, na economia ainda nos anos 70, pela Escola de Chicago. Foi inspirado em dois psicólogos alemães amalucados que, no pós-guerra, tentaram adaptar o choque terapêutico em um país inteiro.
A ideia do choque terapêutico é a de que os traumas que alteram o comportamento de uma pessoa derivam de traumas do passado. Com o tratamento de choque, bagunça-se completamente a história anterior do paciente, abrindo espaço para organizar uma nova lógica interna, que expurgue as razões do trauma.
Em cima disso, os psicólogos se mudaram para os Estados Unidos e propuseram aplicar o choque em toda a Alemanha, para expurgar o comportamento germânico bélico. Essa piração não foi levada adiante, mas o tratamento de choque acabou incorporado nas técnicas de interrogatório da CIA e, nos anos 70, foi adaptado para a economia pela Escola de Chicago.
Há um conflito permanente entre os interesses do capital e da população de um país.
Há dois caminhos para o capital, o virtuoso e o predatório. O virtuoso são os investimentos em novos setores e novos ativos, ajudando a consolidar as grandes mudanças tecnológicas; o predatório é o da arbitragem, de meramente adquirir ativos já existentes, através da privatização, operação segura e com margens elevadas de lucro, especialmente quando se consegue uma operação claramente criminosa, como a tentativa atual de privatizar a Eletrobras.
Em tese, o objetivo dos governos nacionais é de levar o bem estar aos cidadãos. O do capital é o de aproveitar todas as oportunidades para se rentabilizar.
Em tempos de normalidade, na busca do bem estar, governos nacionais sérios se comportam como defensores do chamado interesse difuso – aquele que atende toda a população, inclusive os grupos não organizados. Nessa empreitada, o Estado impõe regulações, intervenções na economia – como a escola pública, a saúde pública etc. E há uma estrutura política e social, uma ordem institucional entendendo e defendendo esses avanços como objetivo central.
Mas há momentos em que ocorre um choque de grandes proporções que desarruma todo o edifício institucional e todos os conceitos consolidados. Pode ser um choque político – um golpe de Estado como no Chile de Pinochet ou no Brasil de Michel Temer, Eduardo Cunha e Lava Jato -; ou um choque climático, como o furação Katrina em Nova Orleans
Esses momentos devem ser aproveitados para implementar medidas em favor do capital contra os interesses difusos. Segundo o receituário da escola de Chicago, em geral o período a ser aproveitado é de 6 meses. No Brasil perdurou em todo o período Temer e no primeiro ano do governo Bolsonaro.
A estreia desse modelo foi no golpe de Pinochet, no Chile. O golpe permitiu destruir a Previdência Pública, privatizar os bancos públicos e acabar com o ensino público.
Em Nova Orleans, aproveitou-se o choque do furacão Katrina para impor a privatização do ensino público. Mudou-se o modelo, privatizou-se, criou-se uma escola elitizada mantendo os piores indicadores educacionais do país.
O caso brasileiro é o mais notório. O golpe do impeachment foi montado em cima da tal “Ponte para o Futuro”, um conjunto de medidas de cunho ideológico-negocista visando desmontar a precária rede de apoio social brasileira e privatizar estatais estratégicas brasileiras. O choque em questão decorreu da incapacidade do governo Dilma de enfrentar a queda das cotações de commodities e manter uma base aliada coesa. Essas fragilidades foram aproveitadas por uma conspiração que teve como eixo central os fundamentos da teoria do choque. O golpe foi acompanhado de perseguição implacável aos críticos, desmonte da estrutura sindical, repressão a movimentos sociais e perfeita sintonia entre políticos do impeachment e Ministros do Supremo Tribunal Federal. Abriram-se as comportas para todo tipo de negócios até se chegar ao extremo da tentativa de privatização da Eletrobras.
Abaixo, alguns dos artigos do GGN para entender esse processo.
Xadrez dos golpes na América Latina e a reação da democracia.
Xadrez para entender as teorias conspiratórias
A “doutrina do choque” de Naomi Klein
Xadrez da teoria que sustenta o golpe
Peça 3 – a aliança com os fundamentalistas
Historicamente, o capital se aliou a diversos grupos de poder. O modelo mais adequado é o da democracia mitigada, que permite manter a estabilidade das medidas pró-capital através de formas de influência na mídia, no Congresso e no Judiciário.
A entrada da banca inglesa na República se deu através de associação com o capital nacional, mas também com o primeiro Ministro da Fazenda, Ruy Barbosa. O uso da retórica econômica como ferramenta política foi praticada por Rui Barbosa, por Campos Salle na renegociação da dívida externa brasileira, por Pedro Malan e pelos economistas do Real.
Nas décadas de 60 e 70 houve alianças com ditaduras. No caso brasileiro, após um período pró-mercado, no governo Castello Branco, seguiu-se uma era desenvolvimentista, com Médici-Delfim Netto, e um período de planejamento centralizado – com Geisel-Reis Velloso, reforçando, para o mercado, as dificuldades das alianças com ditaduras, já que fica-se na dependência da cabeça do ditador do momento.
Nos anos 90, retomou-se a busca de aliados na política. E a aliança mais profícua foi com Fernando Henrique Cardoso e a turma do Real, brandindo a bandeira da luta contra a inflação para impor as medidas mais impopulares, benéficas ao grande capital e nocivas ao desenvolvimento. Seguiu-se o período Lula-Dilma e a ofensiva mais atrevida, com o impeachment de Dilma e a entrada de Temer.
Como lembrou Kataguari, em seu debate, ali foi o auge da direita. Conseguiu-se a condenação e prisão de Lula, o desmonte da legislação trabalhista, da estrutura sindical, da Previdência, a maluquice da Lei do Teto por 20 anos, abriram-se as comportas para uma privatização selvagem.
Aí entra o fator Bolsonaro, com sua selvageria e a tragédia no enfrentamento da pandemia, ameaçando o próprio conceito de Nação e, com isso, abreviando o ciclo da direita mercadista nacional.
Ocorreu o mesmo nos Estados Unidos com o fenômeno Donald Trump. Sua gestão foi tão extravagante e tão desastrosa no combate ao Covid-19, que impediu a reeleição abrindo espaço para a eleição de Joe Biden.
O choque provocado pela pandemia expôs de maneira crua os desatinos das políticas liberais, a extraordinária concentração de renda e o abandono dos extratos sociais de menor renda.
Mais que isso, expôs o lado imprescindível do Estado nacional e das políticas públicas.
Peça 4 – a volta para a centro-esquerda
Independentemente dos desdobramentos das alianças políticas, o país caminhará, no pós-Bolsonaro, para a centro-esquerda, com a revalorização do papel do Estado, especialmente nas áreas de educação e saúde, com uma visão mais civilizada das relações de trabalho, das políticas ambientais, com um novo enfoque do federalismo – depois que os governadores se comportaram como âncoras para impedir que as loucuras de Bolsonaro jogassem o país ao mar.
Principalmente, será cortado o cordão umbilical entre o Banco Central e o mercado e o controle absoluto do mercado sobre as políticas monetária e fiscal.
Os efeitos da revisão econômica tardia – encabeçada por André Lara Resende e nova geração de economistas – frutificará no próximo mandato presidencial.
Lá atrás se sabia que o país só começaria a mudar depois que visse a bocarra do monstro. Bolsonaro cumpriu esse papel didático.
Ainda haverá um bom trajeto pela frente. Levará algum tempo para que esse movimento de retomada dos valores públicos se imponha. Mas a caminhada é irreversível.
LUIS NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)