Há um sentimento comum de que a comissão, mesmo que não seja definitiva para apeá-lo do poder, fustigará o presidente. O “fora Bolsonaro” e o “qualquer um é melhor do que ele” viraram um mantra
O presidente Jair Bolsonaro começa a viver seu declínio. Seu nervosismo, às vezes visível e às vezes camuflado, indica que começa a sentir na carne que até seus demônios começam a abandoná-lo.
Sua amarga e ao mesmo tempo sarcástica resposta dias atrás ao seu clã matutino de fanáticos, “para quem não está contente comigo, tem Lula em 2022”, é de um grande simbolismo que reflete seu estado interno de raiva.
Seu instinto político captou a força do amistoso e histórico encontro entre Lula e Fernando Henrique Cardoso, que agitou todas as forças do poder. Bolsonaro sabe que foi um golpe baixo contra ele que poderia ser fatal.
Todo esse pano de fundo de um Bolsonaro que começa a sentir que a terra se move sob os seus pés e talvez por isso tenta aparecer a cavalo ou de moto como para camuflar sua debilidade e mostrar uma força que já não tem.
Neste contexto, é significativa a CPI da Pandemia no Senado, que está conseguindo atrair de uma maneira impensável a atenção da rua, pois está sendo seguida com especial interesse por todas as classes sociais. É como se tivesse sido criado um consenso de que a CPI trairia o quase meio milhão de vidas sacrificadas se, como tantas outras, terminasse em nada.
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Há uma espécie de sentimento comum de que a CPI, mesmo que não seja definitiva para apear do poder Bolsonaro, negacionista e genocida declarado, deixará o presidente fustigado, comprometendo seriamente suas chances de reeleição. O “fora Bolsonaro” e o “qualquer um é melhor do que ele” tornaram-se um mantra nacional.
Daí a importância de que bem no meio dos trabalhos da CPI, a oposição, sob o signo do “fora Bolsonaro”, tenha convocado para sábado um protesto nacional que, apesar da pandemia, já adquiriu outro forte simbolismo contra os demônios do bolsonarismo que envenenam este país, intoxicando-o com os gases do ódio e da guerra entre irmãos.
Os símbolos sempre carregam uma grande força renovadora ou destrutiva. Hoje em um Brasil atormentado por um clima de asfixia coletiva, o simbolismo da CPI junto com a convocação anunciada da primeira manifestação nacional contra o Governo que acontecerá, segundo o jornal Folha de S. Paulo, em 110 cidades, entre elas 27 capitais, podem significar o início de uma mudança radical com o cerco ao inferno em que tentam transformar o país.
Por isso é fundamental que a CPI e as manifestações, apesar das restrições impostas pela pandemia, não fracassem. A oposição tem formas criativas e simbólicas de dar destaque e força às manifestações por meio de slogans significativos e gestos como pedir que as famílias que desejam sair do pesadelo demoníaco do bolsonarismo coloquem nas janelas algo que represente o luto pelas vítimas da covid-19, resultado da política destrutiva e da ausência de sentimentos de dor e compaixão da sociedade pelo extermínio ao qual uma política de morte está arrastando o país.
A direita soube usar no passado os símbolos e os slogans nas manifestações a favor do impeachment de Dilma Rousseff e do “fora Lula” que ajudaram a Lava Jato a prender o ex-presidente e a tirar Dilma do poder.
É fundamental que desta vez as forças políticas de oposição que se reunirão no sábado saibam sensibilizar uma sociedade em busca de uma solução urgente contra o negacionismo bolsonarista da pandemia que tenta fazer do Brasil o maior cemitério do mundo.
Que o cerco a Bolsonaro está se agudizando como solução para resgatar a esperança perdida neste país é revelado pelo fato de que até o presidente da Câmara, que foi apoiado por Bolsonaro, tornou público pela primeira vez que começou a analisar os mais de 100 pedidos de impeachment que até agora dormiam sonhos tranquilos.
Sinal de que até os políticos que tinham começado a acolher o genocida parecem ter pressa em se afastar dele. Tudo isso graças ao fato de que a rua começa a pressionar os governantes e as instituições a abandonar uma política suicida já reconhecida mundialmente.
O Brasil, apesar de todos os seus problemas ainda não resolvidos como o racismo herdado da escravidão e suas abissais desigualdades sociais, é um povo que o mundo sempre viu como um laboratório no qual se poderia construir uma nova civilização baseada não apenas em suas riquezas naturais, mas também espirituais e de sincretismo cultural e religioso.
Justamente tudo que o bolsonarismo-raiz tenta destruir com sua política demoníaca. Uma política que desperta nas pessoas essa zona de sombras, de ódio e de violência que habita em cada um, algo que só a cultura e uma convivência civilizada são capazes de neutralizar, deixando que prevaleçam os sentimentos positivos do abraço e do desafio à dureza da vida, que são o melhor da alma brasileira.
JUAN ARIAS ” EL PAÍS” ( ESPANHA / BRASIL)
Juan Arias é jornalista e escritor, com obras traduzidas em mais de 15 idiomas. É autor de livros como ‘Madalena’, ‘Jesus esse grande desconhecido’, ‘José Saramago: o amor possível’, entre muitos outros. Trabalha no EL PAÍS desde 1976. Foi correspondente deste jornal no Vaticano e na Itália por quase duas décadas e, desde 1999, vive e escreve no Brasil. É colunista do EL PAÍS no Brasil desde 2013, quando a edição brasileira foi lançada, onde escreve semanalmente.