No hospital, ficou claro para mim que essa classe é a salvação da nação.
Como um americano de 71 anos que nos últimos 38 sempre viveu nos bairros mais ricos do Rio de Janeiro, minha janela para a classe trabalhadora brasileira me oferece uma vista bastante limitada.
Casei-me com uma piauiense, nascida nessa classe, cuja paciência, solidariedade e generosidade me tornaram um parceiro melhor. Encontrei gentileza semelhante em pessoas como a faxineira, o porteiro, os guardas de segurança da rua — e até nos estranhos que trocavam um pneu furado do meu carro nas estradas rurais, recusando uma gratificação.
Mas foi a minha recente internação de 12 dias em um hospital privado do Rio, em um caso grave de Covid-19, que reafirmou minha crença na gentileza e empatia da maioria dos brasileiros da classe trabalhadora. Ao me oferecerem um tratamento superpersonalizado, enfrentando risco de vida, essas 30 pessoas — fisioterapeutas, enfermeiras, auxiliares de enfermagem e faxineiras, quase todas da classe trabalhadora — me apresentaram uma dose concentrada dessas virtudes.
À exceção das faxineiras, esses cariocas enfrentaram anos de formação especializada, mas pertencem a essa classe em razão de seus salários. Nos hospitais do Rio, os fisioterapeutas ganham, em média, R$ 3.000 brutos por mês; as enfermeiras, R$ 2.500; e as auxiliares de enfermagem, R$ 1.500. Já as faxineiras das unidades recebem R$ 1.300.
Por causa de tais salários aviltantes, esses funcionários do hospital onde me internei (quase todos jovens, para proteger os cuidadores mais velhos da Covid) moram com os pais, em sua maioria, e em bairros operários tão distantes da zona sul que levam de duas a três horas para chegar ao trabalho. Alguns labutam em turnos semanais de 50 a 60 horas, em dois hospitais, para ajudar a pagar as contas.
Não tenho exemplos pessoais e comoventes do cuidado que recebi. Nenhum funcionário do hospital me deu o toque de uma mão falsa —uma luva de látex com água morna para me lembrar do toque de uma mão de verdade—, que pacientes de um hospital do estado de São Paulo receberam de uma enfermeira para atenuar o sofrimento dos longos períodos de isolamento.
Mas, quando perguntei às auxiliares de enfermagem mais atenciosas por que tinham escolhido uma profissão tão desgastante, mal remunerada e, às vezes, arriscada, as respostas variaram em torno de “alguém tem que fazer esse trabalho”.
Os quatro médicos que cuidaram de mim — muito mais bem pagos — foram igualmente dedicados. Mas um deles, que entrava no meu quarto listando os exames agendados para o dia e saía girando silenciosamente sobre os calcanhares, só passou a dizer um relutante “bom dia” ao chegar e sair quando eu lhe pedi para me cumprimentar — e, assim, ser tão cortês comigo quanto meus outros cuidadores hospitalares.
Ele passou a representar para mim o típico carioca de classe média alta — a maioria dos meus vizinhos não é calorosa, gentil ou generosa como os membros da classe trabalhadora. Muitos deles são até arrogantes.
Algumas pessoas da classe abastada, assim como a elite brasileira (a classe que menos trabalha), falsamente caracterizam os pobres da classe trabalhadora como indolentes. Essa é uma tática que, durante séculos, tem rebaixado os brasileiros mais explorados — de escravos a boias-frias—, criando o “burro de carga” que construiu esta nação.
Eu me identifiquei com meus cuidadores hospitalares da classe trabalhadora porque, quando peguei Covid, percebi que a linha que divide o estar do não estar neste mundo é muito mais tênue do que pensava. Essa percepção me deu uma dose temporária da humildade que tipifica o povão brasileiro.
Infelizmente, minha recuperação está fazendo com que essa humildade desapareça. Mas o que ainda me diferencia da maioria dos meus vizinhos de classe média alta é a reafirmação, durante meus dias no hospital, de que a classe trabalhadora, juntamente com os pobres, é a salvação desta nação.
MICHAEL KEPP ” BLOG OS DIVERGENTES” ( BRASIL)
— Michael Kepp é jornalista norte-americano radicado há 38 anos no Brasil, autor de ‘Tropeços nos trópicos – crônicas de um gringo brasileiro” (ed. Record) e ‘Um pé em cada país’ (Tomo Editorial, 2015)