Palavras da língua galega, mãe do idioma português, são detectadas na estrutura das frases e no linguajar de personagens da monumental obra de um dos maiores vultos da literatura lusófona do século XX, João Guimarães Rosa (1908 – 1967), autor de um dos clássicos de nossas letras, “Grandes Sertões: Veredas”, lançado um ano antes de sua morte.
Natural da pequenina Cordisburgo, no centro de Minas Gerais, na região do Cerrado, foi tão grandioso quanto ilustres portugueses da Metrópole. Como Fernando Pessoa (1888 – 1935), Sophia de Mello Breyner Andresen (1919 – 2004), José Saramago (1922 – 2010), ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 1998, e Agustina Bessa-Luis (1922 – 2019). E exímio tal qual seus compatriotas, Euclides da Cunha (1866 – 1909), Érico Veríssimo (1905 – 1975), Graciliano Ramos (1892 – 1953) e Jorge Amado (1912 – 2001).
Acaba de ser publicado, neste 2021, outra obra de relevância no universo mineiro, “Fogo, Cerrado!”, de autoria de Marcos Wilson Spyer Rezende – um sofisticado e arguto intelectual, nascido há 72 anos, em Patos de Minas, que empreendeu vitoriosa trajetória jornalística, inicialmente, em O Estado de S. Paulo, como Editor Internacional, posteriormente, no Sistema Brasileiro de Televisão (SBT), onde tive o privilégio de trabalhar sob seu comando, como meu Diretor de Jornalismo, entre os anos 1980 e 1990, e, no canal de notícias CBS News, em Miami.
O livro de Spyer Rezende tem o ritmo e a intensidade da obra de Guimarães Rosa. Possui, sobretudo, a linguagem do homem do Cerrado e, claro, um galleguismo arraigado. O romance é um lançamento da Editora Geração, de Luiz Fernando Emediato.
A galleguicidad de Guimarães Rosa foi descoberta pelo ensaísta Valentín Paz-Andrade (1898 – 1987), natural de Pontevedra, ao publicar, em 1978, na minha querida Vigo, o valioso estudo, “A Galecidade na Obra de Guimarães Rosa” – escrito, evidentemente, em língua galega.
A pesquisa de Paz-Andrade ressalta que os arcaísmos foram trazidos aos sertões, seguramente, pelos colonizadores lusitanos, originários do Minho, no qual vocábulos galegos ainda são usados. Exemplos são palavras como ‘oxente’ (ó gente), empregada em muitos estados ao Norte do Rio de Janeiro, ‘riposta’ (resposta), utilizada na frase “A bala com bala ripostavam”, “alembrar” (lembrar), em “Num lugar, o Tuim, me alembro”, “meizinha” (mesinha ou medicina), em “Raymundo Lé, que entendia de curas e meizinha…”, ou mesmo “arreparar” (reparar), em “Melhor, se arrepare”.
Existe, aliás, um Portugal inteiro incrustrado em Minas Gerais, cortada de Norte a Sul, pela belíssima Estrada Real. Foi aberta no século XVII pelos Bandeirantes. Extraordinárias relíquias do Barroco e do Rococó portugueses estão presentes ao longo do percurso, começando em Diamantina, estendendo-se até Paraty. O Caminho Novo, traçado no século XVIII, tem início próximo a Ouro Preto, a antiga Vila Rica, capital mineira de 1721 a 1897, levando ao Rio de Janeiro. Está no Caminho Velho a preciosa São José Del-Rei, atual Tiradentes. A Estrada Real, marcada, nos dois roteiros, pelas esculturas do luso-brasileiro Aleijadinho (1738 – 1814), percorre 1630 quilômetros. Precisamente 400 a mais do que a extensão de todo Portugal.
A Estrada Real e os ‘galeguismos’ dos sertões do Cerrado são símbolos do ‘Ser Mineiro’, fonte inesgotável de inspiração a literatos como Guimarães Rosa, do personagem Riobaldo, e, ainda que tardio, o promissor Spyer Rezende, onde o protagonista, João Cândido, parece emergir também do Realismo Mágico de “Pedro Páramo”, do mexicano Juan Rulfo (1917 – 1986), mestre dos mestres hispano-americanos.
ALBINO CASTRO ” PORTUGAL EM FOCO” ( BRASIL / PORTUGAL)
Albino Castro é jornalista e historiador