O papa Francisco com Fidel Castro em Havana em 2015.DOMENICO STINELLIS / AP
O historiador italiano Loris Zanatta traça a raiz religiosa e moral dos discursos evangelizadores do líder cubano, sua iconografia oficial e sua glorificação dos pobres
O papa Francisco, em sua visita ao líder da revolução cubana, Fidel Castro, deu-lhe um livro e discos com sermões e reflexões do jesuíta espanhol Armando Llorente, professor do colégio em que Castro se formou. O mesmo sacerdote que foi expulso pela revolução, teve de se exilar em Miami em 1961 e antes de morrer quis absolver Castro. O biógrafo papal Austen Ivereigh se entusiasmou: os presentes foram para que Fidel se reconciliasse com seu passado de jesuíta. Não era necessário, Fidel Castro nunca deixou de ser jesuíta, a matriz religiosa e moral que adaptou ao marxismo-leninismo e que tanto confundia os soviéticos. Essa é a tese desenvolvida pelo historiador italiano Loris Zanatta em seu livro Fidel Castro, l’Ultimo “Re Cattolico” (“Fidel Castro, o último ‘rei católico’”). Na obra, que será lançada em breve na Espanha com o título de Fidel Castro, el Último “Rey Católico”, Zanatta mostra amplamente a apropriação das palavras da religião e da moral do sacrifício para ganhar o céu, sintetizada em uma das frases mais repetidas por Fidel Castro: “É preciso reprimir o homem para salvá-lo”.
A ideia entusiasmava o sacerdote e poeta nicaraguense Ernesto Cardeal e o frade dominicano brasileiro Frei Betto, amigo e biógrafo de Castro, que viam no líder da revolução cubana um cruzado pela cristandade: basta analisar sem devoção sua liturgia revolucionária, seus longos discursos evangelizadores e até a iconografia oficial que o mostra com pombas sobre seu corpo, mais parecida com a dos santos católicos do que com um comandante que pregou a violência redentora. Em seu extenso e rigoroso ensaio, o historiador desmonta o mito ideológico mais poderoso entre a esquerda latino-americana e demonstra em Fidel Castro a raiz hispânica de tradição nacionalista católica, a cruz imposta com a espada e o desprezo pelo liberalismo laico que sobrevive nos populismos atuais sob o disfarce dos socialismos do século XXI. A política impregnada pela religião e o sentimento religioso dos setores populares, transformado em fé ideológica sobre a qual foram montados regimes caudilhescos, fizeram da democracia liberal uma flor exótica e delicada, alheia à tradição autocrática da América Latina.
Autor de vários livros sobre o que mais estudou e conhece, o peronismo e o nacionalismo católico, a religião e a fé popular como sustentação ideológica dos caudilhos políticos, Zanatta encara uma biografia colossal sobre uma das figuras incontornáveis do século XX, já amplamente narrada, à qual dedicou anos de estudo. Uma vantagem, se pensarmos que a matéria-prima do historiador são as fontes e, no caso de Fidel Castro e da revolução cubana, elas enchem bibliotecas. No entanto, faltam as mais importantes, as cubanas, fechadas a sete chaves, a não ser para pesquisadores que reforcem o mito.
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Sem se deixar subjugar pelo carisma do personagem, “o primeiro historiador de si mesmo”, Loris Zanatta diz, sobre a novidade antecipada no título do livro, que não se deveria estranhar que “o monarca comunista do século XX seja herdeiro do ideal dos monarcas do passado: cresceu em uma ilha que foi colônia da Espanha durante séculos, em um ambiente familiar e social hispânico e católico”, educado por padres nos princípios do comunitarismo das missões jesuítas. Um legado que impregnou seu universo moral, a salvação das almas pela evangelização ideológica, o sopro criador do “homem novo” pela ação e disciplina revolucionárias, a sociedade sem classes do comunismo e a redenção do povo eleito pelo messias, o líder salvador. As analogias entre a sociedade castrista e as sociedades cristãs da colônia surgem de um percurso minucioso e atraente pela vida de Fidel Castro e pela sociedade cubana, “onde o indivíduo está submetido à coletividade sobre a qual vela a Igreja, ou seja, o partido fiador da ortodoxia e da unidade da fé. E, acima disso, o rei, Castro, investido dos poderes temporais e espirituais”. Nessa viagem histórica, Zanatta encontra traços comuns a muitos católicos latinos que, como Castro, desprezam as práticas e os valores democráticos do liberalismo anglo-saxão, aos quais o líder da revolução cubana atribuía as “fraturas morais do mundo”, e que repetem atualmente os novos populismos na região. Essa permanência cultural dá a dimensão da importância do livro em um tempo em que Cuba exporta seu fracassado modelo socialista e em que se atualiza no continente o debate em torno da democracia, ameaçada pelas autocracias e pelos populismos eleitorais.
Trata-se de um imenso ensaio que escandalizará tanto os fiéis devotos de Castro, por verem a herança hispânica e católica associada ao ícone marxista-leninista, quanto os anticastristas que combateram seu comunismo, que ficarão incomodados por vê-lo como um monarca católico. No entanto, sua leitura desapaixonada nos oferece aspectos que sempre estiveram ao alcance da compreensão racional, mas foram desprezados devido à força emocional do autoengano ideológico: o despotismo, a moral sexual, a glorificação dos pobres por sua pureza de alma para justificar o fracasso econômico da revolução, o desprezo às democracias e seu apoio às guerrilhas armadas do continente.
Um livro perturbador para os que tínhamos vinte anos na década de 1970 e caímos sob a névoa da revolução cubana. Depois da ressaca dos exílios, mortes e desaparecimentos, tivemos de aprender o valor de viver no que as revoluções desprezam, a democracia liberal, e hoje olhamos com perplexidade para as novas gerações educadas na liberdade que reescrevem a história, negam a violação dos direitos humanos na Venezuela e glorificam as guerrilhas armadas promovidas pelo regime de Castro, como mostra Zanatta, apenas com “fatos” e com as copiosas palavras do Fidel.
NORMA MORANDINI ” EL PAÍS” ( ESPANHA / BRASIL)
Norma Morandini é jornalista e escritora argentina. Foi deputada e senadora independente.