É evidente que ela aceitou o convite de Bolsonaro pensando que se tornaria Ministra da Saúde. Ocorre que Bolsonaro já tinha seu candidato há tempos, o médico Marcelo Queiroga, bolsonarista de raiz, líder da ala médica defensora de Bolsonaro.
Tudo bem. O manto diáfano da fantasia é produto jornalístico bastante requisitado. Brigas na família real inglesa, heróis sem mácula enfrentando vilões inescrupulosos, tudo isso ajuda na grande mistura da dramaturgia da notícia.
Então, viva a doutora Ludmila Hajjar, que foi levada por Mefistófeles até o alto da montanha e, em nome de suas convicções científicas, recusou a oferta de fama e glória, como Ministra da Saúde de Jair Bolsonaro. Saiu do Palácio distribuindo entrevistas em que dizia que recusara o convite por ser a favor da ciência. Depois, relatou como foi perseguida por vilões noturnos, que tentaram invadir seu apartamento no hotel. Tudo bastante verossímil com o que se conhece de Bolsonaro e seus milicianos.
Antes de comprar a história, que tal submetê-la a alguns testes de verossimilhança:
Teste 1 – a médica iludida por Bolsonaro
Alguém poderia supor que Bolsonaro, o ogro, mudaria seus princípios anti-isolamento, anti-ciência? A doutora Ludmila, sim. Agarrada a essa esperança iluminista, aceitou o convite para conversar com Bolsonaro para, só aí então, cair na real, de que nada mudaria.
Digamos que passa raspando no teste de verossimilhança.
Teste 2 – Bolsonaro convidando mesmo após o vídeo com Dilma
Quando encontrou-se com Bolsonaro, ele já havia recebido uma montanha de vídeos nos quais aparece Ludmila proseando, como velhas amigas, com Dilma Rousseff; em outro, aparece chamando Bolsonaro de louco. Ela negou, disse que a voz não era dela.
Tá bom!, vamos reformular o teste. Bolsonaro recebeu um vídeo no qual Ludmilla aparece conversando com alguém que diz que Bolsonaro é louco.
Alguém, em sã consciência, vai acreditar que, depois de receber esse material, Bolsonaro, o paranóico, o obcecado, manteria o convite a Ludmila. É evidente que não.
Portanto, a versão mais verossímil é a do Ministro das Comunicações que, em um Twitter educado, elogiou a médica mas garantiu que ela jamais poderia ter recusado um convite que jamais lhe foi feito.
Teste 3 – bárbaros ululantes tentando entrar no apartamento de Ludmila
Segundo a médica, por três vezes bárbaros tentaram invadir seu apartamento no hotel em que estava hospedado.
O Estadão foi conferir com o hotel. A resposta:
“O B Hotel informa que durante toda a estadia de Ludhmila no hotel, período compreendido entre os dias 14 e 15 de março de 2021, nenhuma ocorrência foi relatada nas dependências do empreendimento e nenhuma queixa, sobretudo por parte da vítima, foi repassada à administração”, diz a nota do estabelecimento.
“Além do exposto acima, o B Hotel esclarece ainda que após tomar conhecimento das alegações concedidas por Ludhmila, consultou imediatamente o circuito interno de câmeras e não encontrou nenhuma ‘anormalidade’ nas imediações da suíte ou em qualquer outra área do empreendimento. Funcionários e colaboradores do B Hotel também foram ouvidos e nenhuma ocorrência similar foi constatada”.
Teste 4 – o perfil de Ludmila
Ludhmila é figura polêmica na comunidade médica, considerada excessivamente ambiciosa. Começou na área de infectologia, passou para a cardiologia, foi promovida precocemente, passando por cima de outros médicos, mais velhos e mais preparados. Algum tempo depois, promoveu ataques pesados contra o próprio diretor que a promoveu precocemente, chocando a comunidade médica.
Além disso, tem uma carga horária de trabalho, junto ao Hospital das Clínicas, que não cabe em uma semana. E protagonizou episódios polêmicos no Hospital Sirio Libanês.
No dia 4 de dezembro de 2019, um abaixo assinado de médicos do Hospital das Clínicas cobrava providências da direção em relação a supostas faltas cometidas por Ludmila.
Hipótese mais razoável
Com seu trabalho, Ludhmila conseguiu se aproximar de políticos do centrão. Não é o primeiro caso de médico especializado em políticos e celebridades. Como tal, seu nome foi levado a Bolsonaro por seus antigos pacientes. Pelo Google é possível levantar a enorme quantidade de políticos atendidos pessoalmente por ela. Quem patrocinou sua indicação foi o governador de Goiás Ronaldo Caiado. E houve um amplo trabalho prévio de mídia, levantando sua bola, provavelmente bancado por José Seripieri Jr, o polêmico fundador da Qualicorp e, agora, com outra empresa a QSaúde, que tornou-se patrocinadora do programa médico de Robert Kalil na rede CNN. Kalil e Ludhmila são estreitamente ligados.
É evidente que ela aceitou o convite de Bolsonaro pensando que se tornaria Ministra da Saúde. Ocorre que Bolsonaro já tinha seu candidato há tempos, o médico Marcelo Queiroga, bolsonarista de raiz, líder da ala médica defensora de Bolsonaro.
Bolsonaro recebeu ambos, com a decisão já tomada. Entre a médica amiga da Dilma e o médico bolsonarista, quem iria escolher? Conversou normalmente com Ludmila e não lhe fez nenhuma proposta. Aliás, é impossível que tenha feito qualquer proposta, ele que vê inimigos e comunistas até em suco de melancia. Ainda mais para uma médica que taxou de “vergonha” a citação de uma pesquisa científica da Alemanha, sobre máscaras. Quem citou a pesquisa foi Bolsonaro.
Aí, Ludhmila sai do Palácio e transforma o não convite em uma recusa. E se torna a heroína da mídia, substituindo por um dia o casal Megan e Harry. Afinal, uma história de fadas sempre ajuda a superar o baixo astral da tragédia brasileira.
LUIS NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)