Quando Donald Trump, o ídolo do presidente Jair Bolsonaro, foi escorraçado do comando da nação mais poderosa do planeta duas semanas antes da posse do Democrata Joe Biden, em 20 de janeiro, com o corte do acesso às redes sociais, nas quais despejava “fake news” e raivosas convocações aos militantes republicanos ultra-radicais – alguns dos quais invadiram o Capitólio em 6 de janeiro, na “maior infâmia à Democracia americana -, ficou clara a diferença de estatura entre um Estadista e um chefe de governo. Em menos de 50 dias, as palavras e atos de Joe Biden mudaram radicalmente o quadro de avanço do coronavírus nos Estados Unidos. O foco na vacinação maciça deixou Trump pequeno e engrandeceu Joe Biden na cadeira presidencial.
Por aqui, infelizmente, o presidente da República não mudou o discurso negacionista, contra o isolamento e o uso de máscaras, nem quando novas variantes da Covid-19, surgidas em Manaus na mesma época em que Trump convocava seus sequazes a não aceitaram a derrota eleitoral – por quase 8 milhões, no somatório de votos, e por 306 a 232 delegados no Colégio Eleitoral – produziam um morticínio no coração da Amazônia. Mesmo alertado na sua ida a Manaus, cidade onde comandou o Exército na região, o inepto ministro da Saúde, o general 3 estrelas Eduardo Pazuello, não tomou providências para evitar que centenas de pacientes, já na fase aguda da doença, morressem por falta de oxigênio nos hospitais públicos e privados da cidade.
Em vez de fazer valer seus conhecimentos de logística e deslocar de vários pontos do país, por ar (FAB), terra (Exército) e água (Marinha), estoques de oxigênio disponíveis, o general, obedecendo ao capitão-presidente, insistiu no “tratamento precoce” com cloroquina e azytromicina. E gastou tempo e energia esgrimindo restrições à aprovação da vacina chinesa da CoronaVac, que seria envasada no Brasil pelo Instituto Butatan, de São Paulo, e a AztraZeneca, desenvolvida pela Universidade de Oxford em parceria com a Fiocruz, do Rio de Janeiro. Todos os epidemiologistas alertaram para o risco da propagação das novas variantes e na concentração de esforços para antecipar a aprovação, ainda que emergencial, das mais variadas vacinas. Os conhecimentos de logística do “general Pesadelo” fizeram as cepas se espalharem pelo Brasil, quando, após fracassar na coordenação da provisão de oxigênio, deslocou os pacientes de Manaus e outras cidades do interior do Amazonas para hospitais do Sul, do Nordeste, do Sudeste e do Centro-Oeste. Sem maiores cuidados preventivos de isolamento, só fez espalhar o vírus mais agressivo e letal para várias regiões do país.
As 275 mil mortes ultrapassadas pelo Brasil na 6ª feira, 12 de março, quando superamos a populosa Índia em número de infectados detectados por testes (em mortes, o país, com 1.370 milhões de habitantes, contra nossos 212 milhões, tinha 158,6 mil óbitos pela Covid) são resultado de um ano de erros do presidente Jair Bolsonaro. Assim como Trump, ele considerou a Covid-19 como uma “gripezinha” e trocou em abril o 1º ministro da Saúde, o médico Luiz Henrique Mandetta, porque este, sem leitos, respiradores e equipamentos de proteção aos profissionais de saúde, que não foram providenciados por uma ação coordenada do governo federal (deixando a governadores e prefeitos a difícil e pouco transparente negociação da compra na mão de espertalhões, alguns já identificados) pregava o isolamento e era contra a cloroquina. Mas o novo ministro da Saúde, o também médico, Nelson Teich, deixou o posto 28 dias depois, em 16 de maio, porque também defendia restrições à circulação para isolar o vírus e não concordava em prescrever o “tratamento precoce” na rede do SUS, por medicamentos não avalizados pela OMS. Nenhuma sugestão no sentido do uso da ciência foi acatada.
Chega a ser estranha, agora, a postagem feita neste sábado, 13 de março, pelo presidente Jair Bolsonaro, em suas redes sociais transcrevendo a iniciativa do então ministro da Saúde, Nelson Teich, de se antecipar “em conversas com laboratórios para garantir prioridade na aquisição do recurso assim que o mapeamento for detectado”. Bolsonaro e os operadores de suas redes sociais falseiam a verdade, insinuando que já em 8 de maio de 2020, o governo brasileiro estava tomando iniciativas para garantir vacinas. As vacinas de Oxford, desenvolvidas por sua incubadora de tecnologia Vaccitech, com o laboratório AztraZeneca, só foram aprovadas no Reino Unido em 30 de dezembro de 2020 e aprovada na Índia, onde os ingredientes farmacêuticos ativos (IFAs) são produzidos pelo laboratório Serum, em 6 de janeiro.
Desde o 8 de maio – quando suspostamente Bolsonaro teria incentivado seu então 2º ministro da Saúde a adquirir “recurso” (que tanto podia ser uma vacina como um remédio, como agora foi procurar em Israel uma comitiva brasileira, chefiada pelo ministro das Relações Exterior, Ernesto Araújo, advertido por não usar máscara numa cerimônia com seu colega israelense) todos os movimentos do governo foram para desacreditar a vacina. Pouco mais de uma semana, após a data do “post” nas redes sociais, o Ministério passa ao comando interino do general Pazuello, aquele que vem praticando, desde novembro e dezembro (quando as campanhas eleitorais e as compras para as festas de fim de ano geraram aglomerações e a explosão de contágios) e sobretudo em janeiro, quando as novas cepas passaram a circular pelo Brasil, uma sucessão de bolas fora em seus sucessivos pronunciamentos.
Sem desmerecer o ex-governador do Rio Grande do Sul, o jornalista Antônio Britto, as falas de Pazuello, que prometem de manhã um cronograma de doses com novas quantidades e são desmentidas à tarde ou no dia seguinte, com sucessivas reduções de estimativas de vacinas disponíveis, que deixam a população idosa à beira de um ataque de nervos, lembram os “brieefings” inicialmente otimistas do então porta-voz da Presidência da República, sobre o estado de saúde do presidente eleito Tancredo Neves. Com uma crise de apendicite supurada, à véspera da posse, em 15 de março de 1985, Tancredo deu o lugar ao vice-presidente José Sarney e foi operado às pressas em Brasília. Os mais velhos vão recordar o tom otimista dos boletins médicos de Britto: “Senhores, trago boas notícias”, mas o ar sombrio dos médicos e a linguagem cifrada não disfarçavam o pior a cada dia. O presidente que não tomou posse foi transferido a São Paulo onde havia mais recursos, mas nem uma foto com Tancredo convalescente sentado na cama do hospital, rodeado pelo corpo médico, mascarou a tragédia, consumada em 21 de abril de 1985.
Se não fosse o empenho do governador João Dória em acelerar as providências para a vacinação com a CoronaVac começar em janeiro em São Paulo (dia 16), a “Hora H do Dia D” do general Pazuello talvez nem tivesse acontecido e a mãe do presidente, com 93 anos, não teria recebido a 2ª dose da CoronaVac esta semana. Afetada pelo atraso da entrega das doses da vacina da AztraZeneca, mais eficaz que a da CoronaVac, a Europa está fechando as cidades para evitar a explosão das novas cepas. Se o Brasil se fiasse só na vacina da AztraZeneca que seria envazada pela Fiocruz, estaria dependendo da “vacina chinesa do Dória “ até meados de abril, quando o instituto de Manguinhos poderá envazar o IFA importado (as primeiras doses já vieram prontas). O tal empenho do governo Bolsonaro pelas vacinas nunca existiu. Se existiu, foi abandonado quando Teich deixou o governo percebendo que o uso da ciência e do saber não teriam vez no Ministério da Saúde.
Tudo está claro. Não foram as escaladas de mortes e de novas contaminações que fizeram o governo Bolsonaro se movimentar ou fingir que está tomando providências – esta semana o Ministério da Saúde fechou a compra de quase 10 milhões de doses da vacina russa Sputnik V, desenvolvido pelo Instituto Gamaleya e que será fabricado aqui pelo Laboratório União Nacional (GO) mesmo antes de ter aprovação da Anvisa. A agência reguladora aprovou ainda o uso do medicamento Redemsivir (que era usado no tratamento da AIDS) contra a Covid-19. Mas a decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal, Edson Fachin, de anular as sentenças do ex-juiz Sérgio Moro contra Lula na 13ª Vara Federal de Curitiba, envolvendo o tríplex de Guarujá, o sítio de Atibaia e o Instituto Lula, em São Bernardo do Campo, considerando que a competência no caso cabia à Vara Federal de Brasília, que ao devolver (temporariamente ou em definitivo, pois os crimes a serem apurados no DF prescrevem em 2022) os direitos políticos de Luiz Inácio Lula da Silva, resgatou ao ex-presidente da República um papel importante no cenário brasileiro.
A sentença de Fachin foi na 2ª feira, dia 8, e Lula não perdeu tempo. Na 4ª feira, 10, fez longo pronunciamento no Sindicato onde se entregou à Polícia Federal, em 2918, com máscara vermelha e estrelinha do PT, seguido de paciente entrevista coletiva à imprensa nacional e estrangeira. Mesmo levando em conta que os jornalistas estavam mais propensos a ouvir o ex-presidente que a fazer perguntas incômodas ou cobranças, ficou nítida a postura de Estadista no foco que Lula imprimiu à urgência na vacinação como a base do combate ao Covid-19, acompanhado de medidas de higiene e de isolamento, e na defesa da imediata volta do Auxílio Emergencial.
Ainda na tarde de 4ª feira, um Bolsonaro de máscara e cercado de ministros e colaboradores também protegidos, anunciou alguma novidade em relação a vacinas. Passou o recibo. Mesmo muito longe da eleição de outubro de 2022, o presidente sentiu que não está sozinho na pista e tem adversário para fustiga-lo e ser ouvido por parte da população. Até para simples comparação. Quem sabe isso torne o governo mais responsável no combate à maior pandemia brasileira, para a qual, isto sim, devia mobilizar as Forças Armadas. O filho 01, o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) chegou a postar mensagem, no dia da fala de Lula, dizendo: “A vacina é a nossa arma”. Parecia uma promissora mudança de atitude. Infelizmente, o cartaz estilizado do famoso e doce Zé Gotinha (concebido para atrair as crianças à vacinação contra a pólio e outras doenças virais, como o sarampo, que estão voltando perigosamente), inspirado no armamento da população (milícias, fazendeiros e praticantes de clubes de tido que podem repetir os fanáticos de Trump em 2022, remete à famosa frase do Barão de Itararé: “De onde não se espera nada é que não vem nada mesmo”. Cuidem-se e vacinem-se, se puderem.
GILBERRO DE MENEZES CÔRTES ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)