Os militares, da ativa ou reserva, incluindo quem só passou pela graduação nas unidades do CPOR (Centro de Preparação dos Oficiais de Reserva) do Exército, onde costumam ingressar estudantes universitários ou pessoas que concluíram a 3ª série do ensino médio (o clássico e científico em tempos passados) têm forte queda por hinos. Quanto mais patrióticos, mais a plenos pulmões são cantados. Mas nem todos os hinos nacionais importantes são compostos por inspiração militar ou encomenda oficial. Muitas letras e intenções transcendem os limites da caserna.
Agora mesmo, o país chora mais de 263 mil mortes com o número diário de vítimas fatais da Covid-19 roçando os 2 mil óbitos diários. Com as vacinas em doses insuficientes para imunizar a população, o Brasil bateu o recorde mundial de novos casos ao longo da semana. Com a capacidade dos leitos no limite, quase todos os 27 estados brasileiros adotaram pesadas restrições à circulação à noite e de madrugada, para reduzir a proliferação das novas cepas pelo país afora. Mas o presidente Jair Bolsonaro, que pouco se empenhou pela compra de vacinas, segue promovendo aglomerações, desdenha das máscaras, volta a fazer pouco das vítimas e seus familiares e amigos, em inaceitável falta de empatia e compaixão. Ao contrário, invoca, distorcidamente, o direito Constitucional de “ir e vir” como requisito à liberdade do indivíduo (como se o direito coletivo fosse menos importante) e usa em sua fala parte do refrão do Hino à Bandeira: “Ou ficar a Pátria livre; Ou morrer pelo Brasil”. É imenso erro de perspectiva seguir o raciocínio primário. O cego povo alemão levou décadas até perceber as atrocidades de Hitler que o levaram à ruína.
O mais vibrante hino nacional “A Marselhesa”, da França, surgiu como um hino revolucionário, composto por Claude Joseph Rouget de Lisle, em 1792, ainda no reinado de Luís XVI, para animar os soldados da divisão de Estrasburgo, que participou da guerra contra a Áustria e a Prússia, aliados do reino francês. Rouget concebeu o hino como “Canto de Guerra para o Exército do Reno”. A canção e sua letra contagiante ficaram populares mesmo em Marselha, a maior cidade francesa no Mediterrâneo e ganhou o novo nome sendo o canto de guerra dos revolucionários que derrubaram a monarquia. Em 1795, a Convenção Nacional a adotou como hino nacional, mas Napoleão Bonaparte baniu a canção durante o seu Império. Luís XVIII, na 2ª restauração da Monarquia, voltou a tirar o “status” de hino. E demorou quase um século para ser oficializado. A Revolução de 1830 restabeleceu sua condição de hino francês, quando ganhou orquestração de Hector Berlioz. Napoleão III a baniu novamente. Só em 1879, com a instauração da III República, a canção foi definitivamente confirmada como o hino nacional francês, ato ratificado pelas Constituições de 1946 e em 1958, com a IV República de Charles De Gaulle.
No Brasil, o 1º hino digno de nome foi o da Independência, com música composta pelo príncipe regente, proclamado Imperador D. Pedro I, após o grito do Ipiranga, que marcou a Independência do Brasil de Portugal, em 7 de setembro de 1822. A letra do poeta Evaristo da Veiga (nome da rua que liga o centro do Rio aos Arcos da Lapa) tem 10 estrofes e o refrão repetido 10 vezes. No primário, os versos iniciais “Já Podeis da Pátria, filhos; ver contente a Mãe gentil” viravam “Japonês tem quatro filhos”. Mas nos espíritos patriotas ficaram marcados duas frases do refrão: “Ou ficar a Pátria livre; Ou morrer pelo Brasil”. O próprio D. Pedro não levou muito a sério o brado. Na primeira oportunidade, quando viu seu lugar na sucessão do trono português (vago com a morte do pai, D. João VI) ameaçado pelo irmão D. Miguel, o preferido da mãe, Carlota Joaquina, D. Pedro I abdicou do Império do Brasil voltou a Portugal, em 1931, como D. Pedro IV, título recebido em 1826. O hino da Bandeira, do maestro Francisco Braga, com letra ufanista de Olavo Bilac, tem execução mais restrita, obrigatória nas escolas públicas no Dia da Bandeira – 19 de novembro.
Mas nada se compara ao Hino Nacional Brasileiro, oficializado em 1909, cuja história atravessa quase um século. A partitura foi composta por Francisco Manuel da Silva após a abdicação de D. Pedro I, em 7 de abril de 1831. Ele foi aluno do famoso padre José Maurício Nunes Garcia, o mais renomado músico do Brasil quando a família Real portuguesa se mudou para o Rio de Janeiro, após breve estada na calorenta Salvador, primeira parada na fuga da Corte lusitana das tropas de Napoleão Bonaparte. Francisco Manuel da Silva batizou a obra de “Hino 7 de Abril”, depois virou “Marcha Triunfal”, até tornar-se o Hino Oficial do Brasil, em 1909. O poeta Joaquim Osório Duque Estrada pôs letra no final do século XIX. Ficou muito popular. Após a Proclamação da República, o marechal Deodoro da Fonseca, primeiro presidente do país, convocou concurso para o novo hino, com 36 inscritos. Venceu a obra do trio Leopoldo Miguez, Alberto Nepomuceno e Francisco Braga. Mas não caiu no gosto popular e o próprio marechal decretou: “Prefiro o hino já existente”.
Pois a atual cúpula militar que governa erraticamente, para não dizer tropegamente, o Brasil, chefiada por um ex-deputado federal, reformado como capitão, o presidente eleito em 2018, Jair Messias Bolsonaro, tem três generais-quatro estrelas (reformados) em alguns dos mais importantes ministérios ditos civis: o gabinete da Casa Civil, comandada pelo general Braga Neto, o gabinete de Segurança Institucional, liderado pelo general Augusto Heleno, e o gabinete da Secretaria de Governo, confiada ao general Luiz Eduardo Ramos, responsável pela articulação política do governo com o Congresso (embora o próprio governo tenha líderes na Câmara, no Senado e no próprio Congresso), segue as máximas dos hinos. Talvez, fora do tom até na casa da mãe. Por sinal, um civil, o ministro da Economia, Paulo Guedes, também teima em ignorar fatos e mascará-los. Convenceu o presidente Jair Bolsonaro de que o Brasil se saiu bem na crise em 2020, pois o PIB só encolheu 4,1%, menos que países europeus. O PIB da Alemanha caiu 5,3%; o da França, 8,2%; o da Itália, 8,8%; o do Reino Unido, 9,9% e o da Espanha 11%. Mas, suas moedas são fortes. Já o Real caiu 21,7% ante o dólar. Em dólar, nosso PIB despencou 22,7% e desceu do 9º para o 12º lugar. E mais de 6 milhões de brasileiros ficaram sem ocupação.
Num patamar inferior, com três estrelas, foi delegado ao general Eduardo Pazuello, o comando do Ministério da Saúde, principal foco da gestão da pandemia, após a renúncia de dois médicos que se recusaram a receitar cloroquina e outros medicamentos de eficácia não comprovada contra a Covid-19, e a concordar com as atitudes negacionistas do presidente e seu séquito. O general Pazuello, já apelidado de “general Pesadelo”, segue o lema militar de que o a patente superior (no caso do presidente da República, chefe supremo das forças armadas) “dá uma ordem e o outro obedece”, parece ter adotado o lema do “direito de ir e vir”, com os requintes da logística tabajara, a cada dia mais errática. Ordens matutinas são desditas no começo da tarde. O pára e anda da vacinação é consequência direta da falta de coordenação do governo federal desde o começo da pandemia, mais preocupado em proteger os filhos do que a nação brasileira. Para não ir longe, quem não recorda o comportamento sabotador à vinda de vacinas ao Brasil no último trimestre do ano passado? Pazuello queria começar a vacinar este mês de março. Se não fosse o empenho do governador de São Paulo, que acionou o Instituto Butatan para fazer convênio com o laboratório chinês SinoVac para a fabricação aqui da CoraonaVac, o Brasil não teria iniciado a vacinação em 24 de janeiro. No começo daquele mês, Pazuello foi a Manaus, sendo alertado, dia 8, para a falta de oxigênio. Nenhuma providência tomou. Mandou reforçar o “tratamento precoce” com cloroquina. Milhares de perdas ocorreram e para evitar uma hecatombe, transferiu às pressas (sem isolamento prévio) pacientes para os quatro cantos do país. O resultado é que as agressivas variantes do Covid-19 se “espalharam” pelo país afora. A alternativa de “morrer pelo Brasil” não era a pregada no hino. As mortes estão se multiplicando pelo Brasil.
A origem de tudo vem de quando Bolsonaro “bateu continência” para seu ídolo Donald Trump, que via no vírus chinês uma “gripezinha” incapaz de ameaçar “o poderio da Grande América”. Desde março de 2020, o governo federal se eximiu de coordenar as ações de saúde pública junto a estados e municípios. Trabalhou na contramão do bom senso. Tentou jogar a população, sobretudo os trabalhadores formais e informais afetados pelas necessárias restrições à circulação, contra governadores e prefeitos (em especial os não aliados). Alegou não poder dar mais no Auxílio Emergencial porque tinha de cumprir a Lei de Responsabilidade Fiscal. Verdade. Mas descumpriu a lei de responsabilidade sanitária e social. Só com vacina o país sairá da crise.
Quando as mortes passaram de 400 mil nos EUA, em 19 de janeiro, Trump já estava fora do poder e o Brasil já acumulava 210 mil mortes. Esta semana, quando superamos os 250 mil mortos (pelo andar lento da carruagem da vacinação, sob o aceno da turba negacionista vamos a 300 mil até maio), bateu certo desespero na Câmara e no Senado, cujos novos líderes, alinhados a Bolsonaro, exigiram algumas providências do governo. Na maciota, a Anvisa, antes tão rigorosa a aprovar a “vacina chinesa do Dória”, só permitida em situação emergencial junto com a da AztraZeneca, que será envasada pela Fiocruz, passou autorizar quantas vacinas fossem pedir registro. Assim foi feito com o poderoso “lobby” da russa Sputnick V, que será produzida aqui pelo Laboratório União Química, que usou o ex-deputado Rogério Rosso (DF), que disputou a presidência da Câmara com Rodrigo Maia, e o próprio governador de Brasília, Ibaneis Rocha, como “despachantes”. A outrora repudiada vacina da Pfizer, ganhou selo, assim como a da Janssen, da Johnson & Johnson. Outra vacina produzida na Índia (de onde também vêm os insumos da CoronaVac), a Covaxin, do Barhat Biontech, concorrente do gigantesco Serum, também foi aprovada antes de concluídos os testes finais naquele país.
Entretanto, como o governo Bolsonaro assumiria a frente de batalha se sempre recusou entrar na guerra ao Covid-19? Seria confissão de culpa. Do crime de responsabilidade social e sanitária que incorreu por sucessivas omissões. A solução foi delegar poderes para os presidentes da Câmara e do Senado negociarem medidas com os líderes dos executivos estaduais, em total quebra de simetria nas relações institucionais. O chefe de cada um dos Poderes dialoga com os presidentes dos demais Poderes. No caso do Executivo, (presidente da República), com o Judiciário (presidente do STF) e com Legislativo (presidente do Congresso, cargo do presidente do Senado).
O presidente Jair Bolsonaro desdenhou das vacinas e afirmou que “não ia tomar para não virar jacaré”. Na hora da onça beber água, está querendo sair da pele do jacaré que fica à espreita e passar o ofício a terceiros. O soldado não pode fugir à responsabilidade pela maior crise sanitária, econômica e política do país desde a gripe espanhola no início do século XIX. Só no Rio de Janeiro, então capital da República, matou 15 mil pessoas, mas foi enfrentada pelos presidentes Wenceslau Braz, Delfim Moreira e Epitácio Pessoa.
Certas decisões podem ser entendidas entre a insanidade e a deliberada perseguição, esta sim, à liberdade de pensamento e à circulação de ideias, inerentes ao ambiente cultural. Na 6ª feira, o Diário Oficial da União jogou mais pesado: se um estado ou município fizer restrições à circulação de pessoas, ficam sustados os pleitos de incentivos culturais da Lei Rouanet. É represália permanente à Cultura (cujos expoentes, mesmo prejudicados pelo afastamento do público, defendem a ciência e o isolamento). Vejam: medidas, pontuais e passageiras, são revogadas, quando os casos e os óbitos retrocedem, como na Europa); já o veto vinculado a situação passageira gera efeito permanente na cultura. Processos demorados de enquadramento são alijados por decisões alheias. Troquem os hinos pela marcha fúnebre.
GILBERTO DE MENEZES CÔRTES ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)