O CONGRESSO AMERICANO AUMENTA A PRESSÃO PARA QUE ” BIG-TECHS” AMPLIEM A CENSURA E AMEAÇA A PRIMEIRA EMENDA

CHARGE DE ZÉ DASSILVA

Pela terceira vez em menos de cinco meses, o Congresso dos Estados Unidos convocou os presidentes de empresas de mídias sociais a comparecerem frente a uma de suas comissões, com a intenção explícita de pressioná-los e coagi-los a exercer uma maior censura sobre os conteúdos de suas plataformas. Em 25 de março, a Comissão de Energia e Comércio da Câmara irá interrogar Jack Dorsey do Twitter, Mark Zuckerberg do Facebook e Sundar Pichai do Google, em uma audiência que, conforme anúncio da Comissão, irá se concentrar “na informação enganosa e na desinformação que assolam as plataformas online”.

O presidente da comissão, o deputado Frank Pallone Jr. (Democrata-Nova Jersey), e os dois presidentes das subcomissões nas quais as audiências terão lugar, Mike Doyle (Democrata-Pensilvânia) e Jan Schakowsky (Democrata-Illinois), afirmaram em uma declaração conjunta que a motivação para as investigações foram as “informações falsas sobre a vacina contra a covid-19” e também “acusações já desmentidas de fraude eleitoral”. Eles afirmaram que “essas plataformas online permitiram a disseminação de informações enganosas, intensificando crises de escala nacional, com consequências concretas terríveis para a saúde e segurança públicas”, acrescentando que “a audiência dará prosseguimento  ao trabalho da Comissão de responsabilizar as plataformas online pelo crescente aumento das informações enganosas e da desinformação”.

Os democratas da Câmara não fizeram segredo quanto ao objetivo último dessa audiência: exercer controle sobre os conteúdos dessas plataformas online. “A autorregulação do setor de comunicações falhou”, disseram eles, e, portanto, temos que dar início ao trabalho de mudar os  incentivos que levam as empresas de mídia social a permitir e até mesmo a promover informações enganosas e desinformação”. Em outras palavras, esses parlamentares pretendem usar o poder do Estado para influenciar e coagir essas empresas a alterarem os critérios relativos a quais conteúdos podem ou não ser publicados.

Há vários anos, venho escrevendo e falando longamente sobre os perigos de investirmos o Estado ou monopólios de tecnologia com o poder  de determinar o que é falso ou verdadeiro, ou o que são opiniões permissíveis ou não. Não voltarei aqui a esses argumentos.

Em vez disso, tratarei da principal questão levantada pelas recentes ameaças dos democratas da Câmara, que é com frequência ignorada: embora a Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos não se aplique a escolhas voluntárias feitas por empresas privadas quanto a que opiniões devam ser proibidas ou permitidas, ela impede que o governo dos Estados Unidos coaja, por meio de ameaças ou não, as empresas a exercerem censura. Em outras palavras, o Congresso comete violação da Primeira Emenda quando tenta exigir que empresas privadas, com base em seus pontos de vista, imponham restrições à expressão de opiniões que o próprio governo estaria constitucionalmente proibido de impor.

Talvez não seja fácil traçar com precisão essa linha divisória – saber exatamente em que momento o Congresso passou da simples manifestação de uma preocupação para a regulamentação inconstitucional da expressão de opiniões, ao exercer influência sobre empresas privadas – mas não há sombra de dúvida de que a Primeira Emenda não permite censura indireta por meio da aplicação de regulamentos e legislação.

Ben Wizner, Diretor do Projeto de Expressão de Pensamento, Privacidade e Tecnologia, da União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU), disse a mim que embora uma análise constitucional dependa de uma diversidade de fatores, incluindo os tipos de ameaças proferidas e o grau de coerção exercida, é ponto pacífico que a Primeira Emenda rege as tentativas por parte do Congresso de pressionar empresas privadas a exercerem censura:

Pelas mesmas razões que fazem com que a Constituição proíba o governo de ditar quais informações podemos ver e ler (fora de limites estritos), ela também proíbe o governo de usar sua imensa autoridade para coagir atores privados a exercer censura em seu nome.

Em um artigo de opinião do Wall Street Journal publicado em janeiro, o empresário de tecnologia Vivek Ramaswamy, e o especialista e direito constitucional da Yale Law School, Jed Rubenfeld, alertaram que o Congresso vem se aproximando rapidamente desse limite constitucional, se é que ainda não o transgrediu. “Usando uma combinação de incentivos legais e ameaças regimentais”, escreveu a dupla, “o Congresso cooptou o Vale do Silício a fazer por trás dos panos o que o governo não pode realizar de forma direta nos termos da Constituição”.

O citado artigo compilou apenas uma pequena amostra da jurisprudência existente, deixando claro que os esforços para coagir atores privados a censurarem a expressão de opiniões afetam as garantias de liberdade de expressão contidas na Primeira Emenda. No caso Norwood versus Harrison (1973), por exemplo, a Corte declarou ser “axiomático” – um princípio jurídico básico – que é vedado ao Congresso “induzir, incentivar ou ajudar particulares a agir de forma vetada pela constituição”. Segundo os autores, “por mais de meio século os tribunais vêm afirmando que ameaças exercidas pelo governo podem converter a conduta privada em ação estatal”.

Em 2018, a ACLU defendeu com sucesso a Associação Nacional dos Rifles (NRA) na ação judicial contra o governador Andrew Cuomo e o estado de Nova York, com base nas tentativas de funcionários do estado de coagir empresas privadas a cortarem vínculos empresariais  com a NRA fazendo uso de ameaças implícitas – movidas pelo fato de Cuomo ter posicionamentos políticos opostos aos da NRA – alegando que isso equivalia a uma violação da Primeira Emenda. Segundo a ACLU, os comunicados enviados pelos assessores de Cuomo aos bancos e seguradoras “poderiam, com boa razão, ser interpretados como uma ameaça de retaliação contra empresas que não haviam cortado seus vínculos com grupos defensores de armamentos”, conduta essa que contrariava o princípio firmemente estabelecido “de que há violação da Primeira Emenda por parte do governo no caso de atos que não cheguem a configurar uma proibição direta da liberdade de expressão, inclusive quando ocorre retaliação ou ameaça de retaliação contra aqueles que tentam exercer essa liberdade. Em suma, o grupo de defesa das liberdades civis apresentou o seguinte raciocínio, que foi aceito pelo tribunal:

Os tribunais nunca exigiram que os demandantes demonstrassem que o governo tentou suprimir diretamente sua expressão protegida para estabelecer que houve a retaliação prevista na Primeira Emenda e, com frequência, acataram as acusações desse tipo de retaliação no caso de ações econômicas prejudiciais destinadas a desincentivar a liberdade de expressão de forma indireta.

Ao expor suas razões para assumir a defesa da NRA, a ACLU descreveu o quão facilmente esses mesmos poderes estatais poderiam ser usados de forma abusiva ​​por um governador republicano contra grupos militantes liberais – por exemplo, exigindo com ameaças que um banco deixe de prestar serviços a grupos de planejamento familiar, como a Planned Parenthood, ou a grupos de defesa da causa LGBT. Quando o juiz rejeitou a solicitação de Cuomo pela anulação do processo movido pela NRA, a Reuters resumiu o cerne da questão em uma manchete:

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Reuters

7 de novembro de 2018

No caso NRA versus Estado de Nova York, um lembrete oportuno de que autoridades do governo não podem usar seu poder para esmagar a livre expressão

 Por Allison Frankel

(Reuters) – A parte da Declaração de Direitos que mais agrada à NRA é a Segunda Emenda, mas foi a proteção constitucional à liberdade de expressão que manteve viva a ação judicial movida pela NRA acusando altos funcionários do estado de Nova York de pressionarem seguradoras a abandonar o grupo de direito às armas.

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Talvez a decisão judicial mais relevante no que diz respeito às atuais controvérsias tenha ocorrido em 1963, no caso levado à Suprema Corte Bantam Books versus Sullivan. Em nome do combate ao “obsceno, indecente e impuro”, a legislatura de Rhode Island criou uma comissão para notificar as livrarias sempre que ficasse determinado que um livro ou revista era “questionável”, solicitando sua “cooperação” para remover ou recusar-se a continuar vendendo tais livros. Quatro editoras e distribuidoras de livros entraram com um processo, pedindo que fosse declarado que essa prática consistia em uma violação da Primeira Emenda, embora, tecnicamente, elas nunca tenham sido forçadas a exercer censura. Essas editoras, em vez disso, pararam “voluntariamente” de vender os livros listados por temor às ameaças implícitas nas notificações “de orientação” recebidas do estado.

Em uma afirmação que os democratas da Câmara e seus defensores certamente haveriam de invocar para justificar o que eles vêm fazendo no caso do Vale do Silício, as autoridades estaduais de Rhode Island insistiram que não se tratava de uma censura inconstitucional, uma vez que seu sistema “não regulamenta nem suprime a obscenidade, mas simplesmente exorta os livreiros, e os aconselha quanto a seus direitos legais”. 

Ao rejeitar essa alegação tortuosa, a Corte Suprema reconheceu que “é verdade que os livros [dos demandantes] não foram apreendidos nem proibidos pelo estado, e que ninguém foi processado por sua posse ou venda”. No entanto, a Corte enfatizou que a legislatura de Rhode Island – assim como os democratas da Câmara que convocam executivos da área da tecnologia – havia deixado explicitamente claro que seu objetivo era a supressão de expressões que não lhes agradavam: “a Comissão, de forma deliberada, se lançou a conseguir a supressão de publicações consideradas ‘censuráveis’, e alcançou sucesso em seu objetivo”. A Corte enfatizou também que o mal-disfarçado objetivo do estado era intimidar essas editoras e distribuidoras privadas para que elas exercessem censura, colocando ameaças implícitas de sanções em caso de não cumprimento: 

É verdade, conforme observado pela Suprema Corte de Rhode Island, que [o distribuidor do livro] era “livre” para ignorar as notificações da Comissão, no sentido de que sua recusa a “cooperar” não violaria qualquer lei. Mas foi considerado fato – e essa constatação, amplamente corroborada pelos autos, nos obriga a concluir que o cumprimento [pela distribuidora de livros] das diretivas  da Comissão não era de natureza voluntária. As pessoas não costumam facilmente desconsiderar ameaças veladas partindo de funcionários públicos que insinuam a abertura de processos penais contra elas caso elas não se submetam às determinações, e a reação [do distribuidor], segundo um depoimento não-contestado, não foi exceção a essa regra geral. As notificações da Comissão, expressas praticamente como ordens e interpretadas como tal  pela distribuidora, e que eram invariavelmente acompanhadas por visitas de policiais, de fato interromperam a circulação das publicações listadas ex proprio vigore [por força própria]. Seria ingênuo dar crédito às afirmativas do estado de que essas listas negras têm a natureza de mera orientação legal, quando elas, claramente, servem como instrumentos regulatórios.

Em suma, concluiu o Tribunal da Bantam Books: “a operação foi de fato um esquema de censura estatal efetuada por meio de sanções extrajudiciais; eles agiram não como uma agência que visava a orientar, e sim a reprimir”.

Não é preciso muito esforço para perceber que os democratas, agora no controle do Congresso e da Casa Branca, estão engajados em um esquema de controle da expressão praticamente indistinguível daqueles que há muito são considerados inconstitucionais por décadas de jurisprudência relativa à  Primeira Emenda. O fato de os democratas estarem tentando usar seu controle do poder estatal para coagir, por meio de intimidação, empresas privadas de tecnologia a exercerem censura – objetivo já de fato alcançado – dificilmente será objeto de um debate equilibrado. Eles vêm dizendo explicitamente que isso é o eles estão fazendo.

Uma vez que a “big tech fracassou ao não reconhecer seu próprio papel no fomento e na disseminação a suas audiências online de informações flagrantemente falsas”, afirmaram os membros da comissão, dirigindo-se mais uma vez às empresas de mídia social, “temos que começar o trabalho de reverter os incentivos que levam as empresas de mídia social a permitirem e até mesmo promoverem a divulgação de informações enganosas e a desinformação”.

O Washington Post, em uma matéria sobre essa  audiência mais recente, disse que a comissão pretende “voltar novamente sua atenção aos gigantes da tecnologia, em razão de eles não terem conseguido reprimir falsidades políticas perigosas e informações enganosas sobre o coronavírus”. E, espreitando por trás dessa conclamação a um maior policiamento das manifestações de opinião há processos ainda pendentes que podem resultar em sanções graves para essas empresas, incluindo possíveis medidas antitruste, e a suspensão da Seção 230, que trata da imunidade à responsabilização.

Essa dinâmica se tornou tão comum que os democratas, agora, pressionam abertamente as empresas do Vale do Silício a censurar os conteúdos de que não são de seu agrado. Imediatamente após o tumulto de 6 de janeiro no Capitólio, quando foi disseminada a informação falsa de que o Parler seria o foco do planejamento do tumulto – o Facebook, o YouTube do Google e o Instagram do Facebook, todos eles, tiveram importância ainda maior – dois dos democratas mais proeminentes da Câmara de Representantes, Alexandria Ocasio-Cortez (D-NY) Ro Khanna (D-CA), usaram suas vastas plataformas de mídia social para exigir que os monopólios do Vale do Silício removessem o Parler de suas lojas de aplicativos e serviços de hospedagem:

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O Parler é hospedado pelos serviços de Rede da Amazon (AWS). A Amazon deve se recusar a prestar serviços ao Parler até 21 de janeiro, a não ser que eles se comprometam a remover todas as postagens relacionadas a incitação à violência relativa à cerimônia de posse. Isso ajudará a evitar mais violência e a salvar vidas.

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Em vinte e quatro horas, as três empresas do Vale do Silício atenderam a esses “pedidos” e tomaram a medida extraordinária de remover da Internet o Parler – na época, o aplicativo mais baixado na Apple Store. É muito  pouco provável que algum dia venhamos a saber ao certo qual o papel desempenhado por esses tuítes, e por outros casos de pressão de políticos e jornalistas liberais, nas decisões dessas empresas, mas o que está claro é que os democratas estão mais que dispostos a usar seu poder e suas plataformas para dar instruções ao Vale do Silício quanto às informações que eles devem  ou não permitir circular.

Ativistas liberais de primeira linha e alguns políticos democratas poderosos, como a então candidata presidencial Kamala Harris, há muito vinham exigindo a exclusão do ex-presidente Donald Trump das redes sociais. Depois de os democratas terem conquistado a Casa Branca – na verdade, um dia após os democratas terem assegurado o controle de ambas as casas do Congresso com duas vitórias no segundo turno nas eleições para o Senado na Geórgia – o Twitter, o Facebook e outras plataformas online baniram Trump, alegando como pretexto o motim no Capitólio.

Enquanto os democratas aplaudiam, diversos líderes de todo o mundo, incluindo muitos que não sentiam a mínima afeição por Trump, alertaram sobre perigo dessa medida. Jennifer Palmieri, assessora de longa data dos Clintons,  postou um tuíte que viralizou reconhecendo com franqueza – e celebrando abertamente – o por quê de essa censura ter ocorrido. Com os democratas agora no controle das comissões do Congresso e dos órgãos do Poder Executivo que regulamentam o Vale do Silício, as  empresas chegaram à conclusão de que seria do seu interesse censurar a internet, obedecendo as ordens e os desejos do partido que agora detém o poder em Washington:

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Não escapou à minha atenção que o dia em que as empresas de mídia social chegaram à conclusão de que elas, de fato, poderiam fazer mais para policiar o comportamento destrutivo de Trump coincidiu exatamente com o dia em que elas ficaram sabendo que os democratas presidiriam todas as comissões do congresso encarregadas de supervisionar as mídias sociais.  

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Da última vez em que CEOs de plataformas de mídia social foram convocados para testemunhar perante o Congresso, o senador Ed Markey (D-MA) afirmou explicitamente que o que os democratas desejam é mais censura – mais exclusão de conteúdos que, segundo eles, consistem em “desinformação” e “discurso de ódio”. Ele sequer se preocupou em disfarçar suas exigências: “A questão não é que as empresas que estão frente a nós estejam excluindo um número demasiado de postagens; o problema é que muitas postagens perigosas não foram excluídas”.

Quando se trata de censura de conteúdo politicamente hostil, às vezes as exigências explícitas de censura são desnecessárias. Onde um clima de censura prevalece, as empresas antecipam o desejo dos poderosos praticando autocensura prévia a fim de evitar retaliações oficiais. As manifestações de opinião são abafadas sem que ordens diretas de censura sejam necessárias.

Isso foi claramente o que aconteceu depois de os democratas passarem quatro anos insistindo petulantemente que haviam perdido a eleição de 2016 não porque escolheram uma candidata fortemente rejeitada, ou porque sua ideologia neoliberal causou tanta miséria e destruição. Mas sim porque, segundo eles, o Facebook e o Twitter permitiram a circulação irrestrita de documentos incriminadores hackeados pela Rússia. Antecipando que os democratas tinham grandes probabilidades de vencer em 2020, as duas empresas de tecnologia, nas semanas que antecederam a eleição,  decidiram, nas semanas antes da eleição – no que considero o ato de censura mais ameaçador da última década – suprimir, ou proibir na sua totalidade, matérias do The New York Post tratando dos documentos encontrados no laptop de Hunter Biden, que levantaram sérias dúvidas quanto à ética do candidato democrata à presidência. Esse é um caso clássico de autocensura para agradar autoridades do governo que exercem poder sobre você.

Tudo isso levanta a questão vital de onde o poder reside de fato quando se trata de controlar as manifestações de opinião online. Em janeiro, o comentarista de extrema direita Curtis Yarvin, cujas análises são altamente influentes em meio a um determinado setor do Vale do Silício, escreveu um ensaio provocativo com o título “A grande tecnologia não tem poder algum”. Em essência, escreveu ele, o Facebook, como plataforma, é extremamente poderoso, mas outras instituições – particularmente a imprensa empresarial/oligárquica e o governo – tomaram esse poder de Zuckerberg e o remanejaram para servir a seus próprios interesses, de modo a que o Facebook se tornasse seu servo, e não seu senhor:

No entanto, se Zuck está sujeito a algum tipo de poder oligárquico, ele está exatamente na mesma posição que seus próprios moderadores. Ele exerce poder, mas não é o seu poder, porque não se trata da sua vontade. O poder não emana dele, mas flui através dele. É por essa razão que podemos dizer com honestidade e seriedade que ele não possui poder algum. O poder não é dele, mas de alguém mais.

Por que Zuck bane os shitlords, os trolls agressivos e provocadores? O criador do “Facemash” seria apaixonadamente comprometido com a justiça social? Bem, talvez. Ele pode não ter poder, mas ainda é um chefão. Os chefões, em geral,  tornam-se puros e virtuosos quando passam da meia idade – em especial quando todos à sua volta estão fazendo o mesmo. Mas – ele tem escolha? Se ele não tem escolha – ele não tem poder.

Por razões que não vêm ao caso aqui, não concordo inteiramente com esse paradigma. Os monopólios tech têm um poder enorme, às vezes maior que o dos próprios estados-nação. Acabamos de ver isso nas batalhas do Google e do Facebook com um país inteiro, a  Austrália. E esses monopólios, frequentemente, vão à guerra contra as tentativas estatais de regulamentá-los. Mas é inquestionavelmente verdadeiro que essas empresas de mídia social – que se estabeleceram em grande parte por razões de interesse próprio e, secundariamente, devido a uma ideologia de internet gratuita capaz de oferecer uma plataforma de conteúdo neutro – foram forçados a praticar censura por órgãos da mídia empresarial aliados a políticos poderosos.

É possível pensar nas empresas de tecnologia, na mídia empresarial, no estado de segurança dos Estados Unidos e nos democratas mais como um conglomerado – uma fusão grupos de poder – do que como facções separadas e antagônicas. Mas seja qual for o termo de sua preferência, é claro que o poder das empresas de mídia social de controlar a internet está nas mãos do governo e de seus aliados da mídia empresarial, pelo menos na mesma medida que está nas mãos dos executivos de tecnologia que nominalmente administram essas plataformas.

E é precisamente essa realidade que apresenta graves ameaças à Primeira Emenda. Como demonstra a jurisprudência da Suprema Corte discutida acima, essa forma de censura estatal indireta e implícita não é nova. Em 2010, o senador pró-guerra Joe Lieberman cometeu abuso de poder no exercício de seu cargo de presidente da Comissão das Forças Armadas do Senado ao “sugerir” que empresas de serviços financeiros e hospedagem na Internet, como Visa, MasterCard, Paypal, Amazon e Bank of America, deveriam cortar seus vínculos com o WikiLeaks, alegando que o grupo, que se opunha veementemente ao imperialismo e ao militarismo de Lieberman, representava uma ameaça à segurança nacional. Lieberman deu a entender que essas empresas poderiam ser legalmente responsabilizadas caso continuassem a processar pagamentos para o Wikileaks.  

Não surpreende a ninguém que essas empresas tenham rapidamente obedecido a ordem de Lieberman, o que impossibilitou o grupo de coletar doações. Em meu relato desses acontecimentos ao Salon, observei que:

O fato de Joe Lieberman ter cometido abuso de poder no exercício de seu cargo de Presidente da Segurança Interna, ao determinar de forma criminosa a empresas privadas quais websites elas  poderiam ou não hospedar – e, o que é ainda mais grave, o que se pode ou não se pode ler na Internet – foi um dos atos mais perniciosos cometidos por um senador dos Estados Unidos nos últimos tempos. Josh Marshall escreveu ontem: “Quando eu soube que a Amazon havia concordado em hospedar o Wikileaks, fiquei francamente surpreso, tendo em vista todos as questões que uma grande empresa como a Amazon tem a tratar com o governo federal“. Isso é verdade para todas as grandes corporações que possuam veículos de mídia – todas elas – e esse é um dos grandes motivos pelos quais elas são tão servis aos interesses do governo dos Estados Unidos, e são tão facilmente manipuladas pelos detentores do poder político. Foi  precisamente essa a dinâmica que Lieberman explorou em seu breve e ameaçador telefonema à Amazon (em essência: Olá, aqui é o Comitê de Segurança Interna do Senado; você vai excluir o site do WikiLeaks imediatamente, certo?). A Amazon, é claro, cumpriu as ordens que recebeu.

(Juntamente com Daniel Ellsberg, Laura Poitras e outros, eu co-fundei a Fundação Liberdade de Imprensa, em parte para coletar doações em nome do WikiLeaks, a fim de assegurar que o governo nunca mais venha a fechar grupos de imprensa que não lhe agradem por meio de campanhas de pressão e ameaças implícitas como essas, precisamente porque era tão claro que esses meios indiretos de atacar a liberdade de imprensa eram perigosos e inconstitucionais).

O que tornou tão despóticas as ameaças implícitas de Lieberman em nome da “segurança nacional” foi que elas visavam claramente a punir e silenciar um grupo que trabalhava contra sua agenda política. E o mesmo se aplica às exigências dos democratas da Câmara, que exigem uma maior censura em nome do combate à “desinformação” e ao “discurso de ódio”: suas reivindicações quase sempre – ou sempre – visam a silenciar aqueles que se opõem à sua ideologia e à sua agenda política. Apenas como um único exemplo: é perfeitamente lícito afirmar online, como muitos democratas o fazem, que as eleições presidenciais de 2000, 2004 e 2016 (vencidas pelos republicanos) foram resultado de fraude eleitoral, mas fazer a mesma afirmação quanto às eleições de 2020 (vencidas por um democrata) resultará em banimento imediato.

O poder de controlar o fluxo de informações e os limites do discurso permissível é a marca registrada de um regime autoritário. Esse poder é tão intoxicante quanto ameaçador. Quando se trata da internet, nosso principal meio de nos comunicarmos uns com os outros, esse poder, nominalmente, reside nas mãos de empresas privadas do Vale do Silício.

Cada vez mais, entretanto, o governo controlado pelos democratas e seus aliados na mídia empresarial estão percebendo que são capazes, indiretamente e por meio da coerção, de tomarem para si esse poder e de o exercerem eles mesmos. Essas ações coercitivas têm implicações relativas à Primeira Emenda, tanto quanto se o Congresso aprovasse leis que determinassem explicitamente a censura de seus oponentes políticos.

GLENN GREENWALD ” BLOG BRASIL 247″ ( BRASIL)

Jornalista independente, vencedor do Prêmio Pulitzer e responsável por algumas das principais investigações jornalísticas da história recente, como o caso Snowden e a Vaza Jato

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