A autonomia ou “independência” do Banco Central é um projeto das elites financeiras brasileiras que, com alguns percalços, vem sendo construído desde 1964. Nada mais coerente que o governo de um capitão admirador da ditadura militar consiga encerrar esse ciclo, eliminando qualquer possibilidade de controle democrático sobre a política monetária no país.
Uma das principais reformas implementadas pelo PAEG (Plano de Ação Econômica do Governo) de Roberto Campos e Octávio Gouvêa de Bulhões, em 1964, no início da ditadura militar, foi a criação, pela Lei nº 4.595, de 31 de dezembro de 1964, do Banco Central do Brasil como órgão de defesa da moeda nacional, juntamente com o Banco do Brasil, dotado, ainda, de algumas funções de fomento econômico e com uma diretoria “independente”, com mandato fixo, não coincidente com o mandato presidencial. Esta primeira tentativa de instituir um banco central “independente”, no entanto, fracassou já no governo seguinte ao do Marechal Castelo Branco (1964-1967), o do Marechal Costa e Silva (1967-1969). Durante o período militar, o Orçamento Monetário consistia na peça em que eram fixadas as metas quantitativas das duas autoridades monetárias, o Banco Central e o Banco do Brasil, era definido pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) e era operado pela conta-movimento do Banco do Brasil, criada em março de 1965.
Esta estrutura financeira durou até a crise econômica mundial da década de 1970, em que se altera o padrão de funcionamento do sistema econômico mundial. A partir da crise dos anos 1970, uma série de reformas serão estruturadas para alterar o padrão de financiamento do Estado brasileiro, em um contexto de busca de maior controle e equilíbrio dos gastos públicos. No final da ditadura, inclusive, houve uma tentativa frustrada de tornar o Banco Central a única autoridade monetária, sem as funções de fomento ao desenvolvimento que então possuía, focando a atuação do banco no combate à inflação.
Com a redemocratização, o processo de reestruturação financeira se acelera, motivado pela crise econômica profunda herdada pela Nova República. Em 1986 é criada a Secretaria do Tesouro Nacional, que passa a administrar os fundos e programas de fomento até então gerenciados pelo Banco Central. Em 1986, a conta-movimento do Banco do Brasil tem encerrada suas atividades, e, com o “Plano Bresser”, de 1987, com os Decretos nº 94.443 e 94.444, ambos de 12 de junho de 1987, e o Decreto-Lei nº 2.376, de 25 de novembro de 1987, a gestão da dívida pública sai da esfera de competências do Banco Central, passando para o Ministério da Fazenda. Além disto, o Banco Central também deixa de ser financiador do Tesouro Nacional e são extintas suas funções de fomento, medidas que, posteriormente, seriam consolidadas no artigo 164 da Constituição de 1988[1]. As relações financeiras entre a União e o Banco Central do Brasil, assim como a regulamentação da carteira de títulos mantidos pelo Banco Central para a condução da política monetária foram reguladas pelas Leis nº 11.803, de 05 de novembro de 2008, e nº 13.820, de 03 de maio de 2019, com atribuição de amplíssima autonomia ao Banco Central.
Ainda sob a Constituição de 1988, a centralização da autoridade monetária no Banco Central foi efetivamente garantida após a política de estímulo à privatização dos bancos estaduais transcorrida durante a década de 1990. Na realidade, o problema deste processo de reestruturação da política monetária foi o fato de que a recomposição da capacidade de intervenção pública se esgotou na tentativa de controle sobre os gastos públicos.
A função de presidente do Banco Central do Brasil, inclusive, foi equiparada à de Ministro de Estado a partir do Governo Lula, com a edição da Medida Provisória nº 207, de 13 de agosto de 2004, convertida na Lei nº 11.036, de 22 de dezembro de 2004. Isso gerou uma verdadeira “jabuticaba” institucional: um presidente de autarquia federal vinculada ao Ministério da Fazenda (artigo 8º da Lei nº 4.595/1964) se torna equiparável a Ministro de Estado, ou seja, com as mesmas prerrogativas de função daquele que supostamente é seu superior hierárquico na Administração Pública, o Ministro da Fazenda.
Para completar a confusão administrativa, foi aprovada a chamada autonomia do Banco Central, medida proposta, até então sem sucesso, desde o governo Fernando Henrique Cardoso. Pela nova legislação, o presidente e a diretoria do Banco Central passam a ter mandatos fixos e não coincidentes com o mandato do Presidente da República, que perde o poder de nomear e demitir os ocupantes dessas funções quando bem entender.
Não é objetivo deste artigo fazer as críticas jurídicas e políticas à nova legislação, que cria uma entidade “Frankenstein” na estrutura administrativa brasileira: uma autarquia não subordinada ao Presidente ou a nenhum Ministro, um órgão que paira no ar, sem vínculos, sem controles. A intenção é chamar a atenção que a aprovação dessa ampliação da autonomia do Banco Central é o término de um ciclo, iniciado em 1964, de esvaziamento do poder da Presidência da República sobre a política monetária e de afastamento de todo e qualquer controle democrático sobre a atuação da autoridade monetária. Ou alguém teria a ilusão de que a sabatina realizada no Senado Federal com os indicados a ocuparem postos na diretoria do Banco Central seria algo além de mero jogo de cena?
Talvez entendam que a sabatina do Senado é um controle político e democrático sobre o Banco Central os mesmos que acham que a atuação do Banco Central “independente” irá ter maiores preocupações com o crescimento da economia porque foi introduzida na lei complementar, dentre seus objetivos, o fomento ao pleno emprego. Basta recordar que a Constituição de 1988 tem entre seus fundamentos o valor social do trabalho (artigo 1º, IV), prevê que a valorização do trabalho é também fundamento da ordem econômica constitucional (artigo 170, caput) e tem a busca do pleno emprego como princípio dessa mesma ordem econômica (artigo 170, VIII). Nenhum desses dispositivos constitucionais, ou seja, hierarquicamente superiores a qualquer outra lei, conseguiu impedir a adoção das políticas recessivas dos últimos anos, muito menos a implementação de uma reforma trabalhista contrária ao disposto na Constituição (artigos 7º e 8º, especialmente) e que destruiu a organização do trabalho e retirou direitos básicos dos trabalhadores com apoio maciço do Congresso Nacional e a chancela e cumplicidade do Supremo Tribunal Federal. Mas, quem sabe, a boa intenção dos futuros dirigentes “técnicos” do Banco Central “independente” não mude essa situação…
A pergunta que deve ser feita é: Banco Central independente de quem? Ao que parece, independente do sistema político e de todo e qualquer controle democrático. A chamada independência do Banco Central nada mais é que mais uma medida que visa garantir os privilégios do sistema financeiro em relação à democracia. Tanto faz quem as urnas elejam, a política monetária será sempre a que privilegia os interesses privados em detrimento de qualquer política de desenvolvimento e de distribuição de renda. Esses privilégios concedidos para o setor financeiro são, portanto, absolutamente injustificáveis. Aliás, o próprio liberalismo não os admite. Às vésperas da Revolução Francesa, em seu texto Ensaio sobre os Privilégios (“Essai sur les Privilèges”), publicado em novembro de 1788, Sieyès afirma que a desigualdade pertencente aos privilégios é fruto de uma esfera arbitrária que deve ser eliminada pelos direitos do homem. A nação moderna é uma instituição econômica, fundada na hierarquia dos valores do mercado, devendo a esfera política privilegiar a dimensão econômico-produtiva. A liberdade é a possibilidade de cada um perseguir e satisfazer seus próprios interesses vitais, por meio da divisão do trabalho, da troca e da dependência recíproca dos homens[2]. Ou seja, nem os grandes pensadores liberais defendem os privilégios que classes ou grupos sociais, como os rentistas, têm assegurados em países como o Brasil.
Finalmente, à guisa de conclusão, há alguma possibilidade de se reverter esse quadro? Sim, a articulação de um projeto político alternativo que busque retomar o desenvolvimento e a reconstrução nacional é essencial para, caso vitorioso nas urnas, o representante desse projeto possa encerrar esse ciclo de garantia dos privilégios do sistema financeiro. Juridicamente, a solução é muito simples. Nada que uma medida provisória revogando essas medidas não resolva. O problema, no entanto, não é jurídico, é político e social. Para que isso aconteça, é necessário um Presidente da República com coragem e apoio político e popular suficientes para reconstruir o Brasil.
GILBERTO BERCOVICI ” SITE A TERRA É REDONDA” ( BRASIL)
Professor titular de Direito Econômico e Economia Política da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo