Em 1972, coautor do roteiro com o saudoso Hugo Carvana, que também atua no filme, o cineasta Cacá Diegues produziu, com músicas de Chico Buarque de Holanda, que também deu importantes pitacos na trama, “Quando o Carnaval Chegar” era uma obra colorida, mas que remete ao estilo das chanchadas da Atlântida, aqui lembradas com as presenças dos eternos vilões José Lewgoy e Wilson Grey. Nara Leão, então casada com Cacá, e Maria Bethânia cantam várias músicas compostas por Chico e iluminam a obra. O filme estreou no ano em que a ditadura do general Emílio Garrastazu Médici teve o seu mandato prorrogado por mais dois anos, até março de 1974. O argumento era de que o general (que tomara posse em fins de 1969, após breve interregno na junta militar dos “três patetas”, que comandavam Exército, Marinha e Aeronáutica, como classifica o jornalista Elio Gaspari), merecia ter o mesmo prazo original de cinco anos do mandato do Marechal Costa e Silva (de março de 1967 a março de 1972).
Mas o que o empresariado, que se aliou à pior fase de repressão da ditadura militar, financiando a operação Oban, queria mesmo é manter o time que, com Delfim Neto à frente do Ministério da Fazenda, estava produzindo o “milagre brasileiro”. Neste mesmo ano, antes de o “milagre” ruir como um castelo de cartas quando o cartel da Opep mais do que triplicou os preços do petróleo em setembro de 1973, o general Médici foi ver de perto a seca do Nordeste e proclamou uma frase célebre: “A economia vai bem, mas o povo vai mal”. E lançou o Plano de Integração Nacional, um plano de atração dos nordestinos para lotes de terras que seriam legalizados na região Norte, ao longo do eixo projetado de mais de 5 mil km da Transamazônica, que saindo do Ceará, cortaria o Piauí, o Maranhão, o Pará e o Amazonas, chegando até a cidade de Benjamin Constant, situada praticamente na fronteira do estado do Amazonas com a Venezuela e muito próxima à fronteira com a Colômbia.
A devastação não foi total porque a rodovia, que praticamente parou, em estradas sem asfaltamento em Altamira (PA), foi um fracasso, não maior que o plano de colonização. Mas ambos foram o estopim para a conquista predatória da Amazônia por caboclos que foram criados em sertões semiáridos, sem qualquer instrução de como lidar com a floresta. Abandonados, sem a prometida assistência técnica, muitos dos que se aventuraram na região acorreram no fim da década para os garimpos de ouro de Serra Pelada. Quando o Eldorado mostrou sua face ilusória, os que não morreram de malária e outras pragas locais (Cacá Diegues retratou parcialmente a região no seu genial “Bye-Bye Brasil”, também com trilha sonora de Chico Buarque), os aventureiros já estavam contaminados pela febre do garimpo e foram espalhar destruição pela Amazônia adentro, destruindo a fauna e a flora e as etnias indígenas com as quais tiveram contato levando toda “sorte” de vírus.
De certa forma, o choque que produziram, então, é semelhante ao estrago que as variantes do novo coronavírus está gerando agora na região. O epicentro pode ser Manaus. Praticamente a única cidade do Amazonas com um mínimo de assistência médica, a capital da floresta, reflete toda a precariedade com que o Estado brasileiro, no governo Bolsonaro, enfrenta o maior desafio da saúde pública no mundo desde a gripe espanhola de 1917-19, com descaso para com os mais pobres e os vulneráveis povos indígenas. A prioridade de Bolsonaro é outra. Dar facilidades (a começar por impor obstáculos às fiscalizações dos órgãos ambientais e da Polícia Federal) aos que exploram garimpos predatórios, sem qualquer preocupação com a integridade dos territórios indígenas, franqueados à devastação. Os seis estados da região Norte têm uma população estimada pelo IBGE em quase 19 milhões de habitantes. E acumulam o altíssimo número de 24.576 óbitos até 6ª feira. O Sudeste, com 90 milhões de habitantes, registra 110 mil mortos. No Nordeste, até o dia 12 de fevereiro, eram 53,4 mil óbitos para 58 milhões. No país de 212,4 milhões de habitantes, a média diária de mais de 1 mil óbitos projeta mais de 252 mil mortes até o fim de fevereiro e mais de 265 mil até 15 de março.
Alheio à aflição nacional por vacinas, em vez de mobilizar o governo na reunião ministerial da semana passada para acelerar as providências para diversificar o leque de vacinas autorizadas no país (por ora restrito à CoronaVac, manipulada aqui pelo Butantan e mais remotamente a da AztraZeneca, processada pela Fiocruz, que ainda não está com produção própria) ou acelerar a compra de novos Ingredientes Farmacêuticos Ativos (IFAs) onde estejam disponíveis (Índia, China, Rússia, Europa ou Estados Unidos), o presidente da República foi passar o feriadão do Carnaval pescando em São Francisco do Sul, em no Norte de Santa Catarina, onde fez a passagem de ano, descumprindo regras de isolamento e aglomerações.
Provavelmente vai curar o estresse que foi a manipulação de verbas e cargos (incluindo ministérios) para assegurar as eleições de aliados na Câmara e no Senado que barrem qualquer possibilidade matemática de “impeachment” e garantam o caminho para sua candidatura à reeleição em 2022. Antes, para ficar prevenido e seguindo o exemplo de seu ídolo Donald Trump, enviou proposta para que cada brasileiro possa elevar de 4 para seis a sua cota de armas particulares. No mesmo projeto, Bolsonaro estende a permissão para que atiradores adquiram até 60 armas e caçadores, 30! Só quando ambos excederem essas cotas será exigida autorização do Exército. Trata-se de uma espécie do “ovo da serpente”, a gravíssima criação de uma “brigada armada” para sustentar sua candidatura em 2022.
Vale lembrar que há muito, desde os tempos em que era deputado federal, Jair Messias Bolsonaro conquistou eleitorado cativo entre as tropas das forças armadas, das polícias militares e das milícias. Alguns integrantes desta “tropa de choque” foram alvo de elogios em Plenário. Outros eram seus vizinhos no “Condomínio Vivendas da Barra”, presos e acusados pelo assassinato, ainda não julgado, da vereadora Marielle Franco (Psol-RJ) e do motorista Anderson Gomes. Na presidência, não perde a oportunidade de adular PMs e bombeiros militares, comparecendo a formaturas e datas comemorativas em diversos estados do país. A título de registro, as forças armadas têm efetivo de pouco mais de 300 mil soldados e oficiais. Essa brigada armada é três vezes maior, passando de 1,1 milhão. Com tantas armas em excesso, pode saltar a 2 milhões. Quase uma Farc de ultra direita.
Para não estragar os dias de recolhimento que o feriadão de Carnaval – espero que os foliões tenham um mínimo de responsabilidade social e empatia com o próximo, evitando aglomerações que só vão dar mais força às novas cepas, antes que a vacina nos salve e respeitem o distanciamento e usem máscaras –reproduzo aqui uma criativa fusão de algumas das mais famosas marchinhas de Carnaval criadas pelo publicitário Cássio Zanatta, que participou das maiores agências de publicidade do país nas últimas décadas.
No tempo de Chico Buarque e Cacá Diegues, o Carnaval era sinônimo da espera da volta da Democracia. Hoje, o Carnaval aguarda a liberdade, que só a vacinação em massa pode devolver, com segurança para todos.
Alalaô (Cássio Zanatta)
“Mas que calor. Meu coração amanheceu pegando fogo. O sol estava quente e queimou a nossa cara. É agora que eu jogo a roupa fora. Tomara que chova três dias sem parar. É Clara guerreira, lá vem trovoada. Eu quero banho de cheiro. As águas vão rolar, e quando a chuva começa, eu acabo de perder a cabeça. Só você é um chuá.
Deixa-me encantar com tudo teu e revelar. Eu conheci uma espanhola natural da Catalunha, fico louco com o teu olhar. Lá no céu a própria lua não é mais formosa. Morena da cor de Madalena, tu não és desse planeta. Um lobby, um hobby, um love com você, me dê a mão, vamos passear no Minhocão. Vou beijar-te agora, não me leve a mal.
Ei, você aí, me dá um dinheiro aí. Rasguei a minha fantasia, meu cortinado é um vasto céu de anil, com que roupa eu vou? Todo mundo leva a vida no arame. Se me ajudasse nosso Senhor. Sou na vida um mendigo, na folia eu sou rei. Mete o cotovelo e vai abrindo caminho.
Por que bebes tanto assim, rapaz? Chega, já é demais. Tem nego bebo aí. Se você pensa que cachaça é água. Boêmio sabe beber. Me segura senão eu caio. Todo mundo bebe, mas ninguém dorme no ponto. Pierrô cacete, vai somar sorvete com o Arlequim.
Ô, jardineira, por que estás tão triste? Está fazendo um ano, foi no Carnaval que passou. O nosso amor foi uma chama, morreu a 21 de abril. Como fui feliz naquele fevereiro. Saudade, dor que dói demais. Ai, meu bem, não faz assim comigo, não. Não se perca de mim, não se esqueça de mim. Madame antes do nome você teria agora. Foi pra mim a maior emoção da minha vida. Confete, pedacinho colorido de saudade.
Tristeza, por favor vá embora. O samba trazendo a alvorada, meu coração conquistou. De uma barrica se fez uma cuíca. Me dá chupeta. Ó lua, querem te passar pra trás. Índio viu presente mais bonito. Na alta madrugada, o coro entoava. Será que ele é bossa nova? Hoje eu não quero saber de ouvir dizer que não vai dar. O teu amor é canibal. De dia é Maria, de noite é João. E a canção bonita é como a flor. É hoje só, vai acabar.
Vou morar no infinito e virar constelação.
Acabooou, a-ca-bou. Adeus, adeus, minha gente, que já cantamos bastante. Foi um rio que passou em minha vida. O dia já vem raiando, meu bem, e a polícia já está de pé.
E, no entanto, é preciso cantar. Mais que nunca, é preciso cantar”.
E ter responsabilidade, digo eu.
GILBERTO DE MENEZES CÔRTES ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)