Nesta terça-feira a Segunda Turma do STF abriu o caminho para
a declaração da suspeição do ex-juiz Sergio Moro e a consequente
anulação da condenação do ex-presidente Lula, ao validar as provas
obtidas por sua defesa junto ao acervo da Operação Spoofing. A
operação investigou o raqueamento das mensagens trocadas entre Moro e procuradores por jovens de Araraquara, a quem devemos tão precioso
conhecimento sobre as entranhas da Lava Jato.
Como sabido, o pontapé foi dado pelo ministro Lewandowski, ao
autorizar o compartilhamento, com a defesa de Lula, dos dados já
obtidos pela PF e o STF. Vale dizer, pelo Estado. Moro e a PGR
entraram com recurso para impedir o compartilhamento e foram
derrotados por 4 votos a 1. Foi do ministro Gilmar Mendes o voto mais
contundente, certeiro e demolidor contra a Lava Jato. Ele esmiuçou as
mensagens mais reveladoras do conluio entre o juiz e os procuradores
para condenar Lula, das muitas violações do devido processo legal e
até de práticas próprias de regimes totalitários (como a obtenção de
delações através de chantagens e até de ameaças de tortura,
vazamentos seletivos com claros propósitos políticos, gravações e
quebras ilegais de sigilos e outras tantas).
Ao final, Gilmar apresentou uma escolha: “Ou estamos diante
de uma obra ficcional das mais notáveis, e estes hackers de Araraquara
são um novo Gabriel Garcia Márquez, ou estamos diante de fatos de tal
gravidade, cuja avaliação me abstenho de fazer agora”. Sabe ele,
sabemos nós, que a verdade está na segunda hipótese. Fatos gravíssimos estão sendo revelados, e são graves não apenas porque resultaram na condenação injusta de Lula. Eles atentaram contra a democracia e o Estado de Direito, desacreditaram a Justiça e o Ministério Público e levaram à eleição do presidente mais nefasto que o Brasil já teve.
Mais cedo, em entrevista ao site Jota, Gilmar confessou-se
chocado com o teor das mensagens e formulou perguntas metafísicas na primeira pessoa do plural, sabedor ele de que muitos contribuíram para a gênese de Sergio Moro, para o empoderamento dos “bad boys” do
Ministério Público, o surgimento e a mistificação da Lava Jato, para
dela tirarem proveito político e econômico. No voto, Gilmar apontaria
mais de uma vez a mídia como uma das artífices da farsa que se
converteu “no maior escândalo judicial da história”, como disse ontem
em artigo no NYT o politólogo Gaspard Estrada, por ele citado (e
republicado pelo 247).
Perguntava Gilmar: “Como pudemos chegar a permitir que isso se
estruturasse? Pois quanto mais a gente se aprofunda na leitura… São
informações desorientadoras. É uma avalanche. A pergunta que me ocorre é: o que nós fizemos de errado para que, institucionalmente, nós
produzíssemos isso? Um setor que se desliga por completo, não está
acoplado a nenhum sistema jurídico funcional, que cria sua própria
Constituição e que passa a operar segundo seus sentimentos de justiça.
Eles sabiam que estavam fazendo algo errado mas o fizeram com o
sentimento de que tudo ficaria encoberto”.
Para mitigar sua angústia tardia, e compreender parte do que
tantos fizeram “dee errado” para que a Lava Jato pudesse ter ido tão
longe, Gilmar deveria assistir ao documentário “Sergio Moro: a
Construção de um Juiz acima da Lei”, realizado pelos jornalistas Luís
Nassif, Marcelo Auler, Cintia Alves e Nacho Lemus. Produzido com
financiamento coletivo obtido no ano passado através da Internet, o
documentário de 72 minutos foi lançado na noite de segunda-feira, 8, e
pode ser visto no Youtube, no endereço
https://www.youtube.com/watch?v=tBc6AnRZfjo&t=1584s .
No seu voto eloquente, Gilmar apontou mais de uma vez o dedo
para a mídia, com sua cobertura engajada da Lava Jato, que produziu
uma das páginas mais deploráveis do jornalismo brasileiro. Ressalvou
não estar isentando de responsabilidade o STF, o Judiciário e outras
instâncias do sistema de Justiça (a PGR e o CNJ, entre elas,
certamente). O documentário demonstra, entretanto, que houve
complacência demais para com os métodos de Moro, que muito antes da
criação da Lava Jato já atuava como um “juiz investigador”, como o
definiu certa vez o ex-ministro Celso de Mello. Quem julga não
investiga mas Moro, revelam as conversas, era o verdadeiro chefe da
Lava Jato.
Em entrevistas com advogados, procuradores, jornalistas e
também com investigados e/ou condenados, o documentário recua aos
primeiros anos da atuação de Moro, identificando decisões anteriores
à Lava Jato em que ele já violava os ritos e procedimentos legais da
magistratura. Por exemplo, grampeando por mais de dois anos os irmãos
Rozemblum nos anos 1980.
Nos anos 1990, Moro projetou-se à frente do Caso Banestado, e
ali já se notabilizou como um juiz que investigava ou ajudava na
produção de provas, algo absolutamente escabroso no ordenamento
jurídico. Sua polêmica atuação naquele caso foi amplamente divulgada,
conhecida e contestada, mas nada fizeram os órgãos de controle, como o
CNJ e o STF. Em agosto do ano passado, a segunda turma do Supremo
anulou uma sentença exarada por ele no caso Banestado contra o doleiro
Paulo Roberto Krug, por entender que houve violação da imparcialidade:
na fase de assinatura do acordo de delação premiada, Moro participou
diretamente da produção de provas contra o doleiro. Logo, o que tanto
fez na Lava Jato para “pegar” Lula já era prática antiga. E isso
chegou aos ouvidos do Supremo, há muito tempo.
No documentário, vai se mostrando que, de tanto pairar acima
da lei, de tanto acreditar que era intocável e que estava blindado
pela mística marqueteira que criou em torno de si, Moro foi avançando
com suas práticas delinquentes até ser transformado (principalmente
pela mídia antipetista) em santo guerreiro contra a corrupção. Foi
dando nós na própria Justiça que ele conseguiu levar para Curitiba
processos que deveriam ficar na Justiça de São Paulo, como o do
triplex do Guarujá e o do sítio de Atibaia. Lula, afinal, era seu alvo
claro e brilhante.
De 2014 para cá, não faltaram episódios indicadores de que
algo de podre havia no reino da Lava Jato. E boa parte dos podres é
revisitada pelo documentário. Um grampo foi encontrado e nunca
explicado na cela do doleiro Alberto Youssef. Ainda em 2014, Moro
começou a produzir vazamentos seletivos, como os da delação do diretor
corrupto da Petrobrás, Paulo Roberto Costa, na véspera do segundo
turno da eleição presidencial. Acordos de delação foram arrancados
dos investigados à custa de chantagens ou tortura psicológica. “Só
faltou agulha sob a unha”, disse Gilmar ontem em seu voto. Os
advogados de Lula foram não apenas grampeados mas por longo tempo
monitorados. Isso também foi denunciado, mas nenhuma providência foi
tomada.
Por fim, o TRF-4, a segunda instância para a vara de
Curitiba, tornou-se, como já disse Lula, uma sucursal da Lava Jato.
Ou como disse Deltan Dallagnol, os desembargadores ali faziam o que
Moro queria. Homologando em prazo recorde a condenação de Lula, eles o tornaram inelegível, enquadrado na lei da ficha limpa.
De todos os crimes de Moro e dos procuradores da Lava Jato,
nenhum talvez tenha tido alcance tão grande e efeito tão danoso para o
país como aquele vazamento da conversa Lula-Dilma em 2016, grampeadamilegalmente (porque ela tinha foro especial como presidente), e captada após o tempo de gravação autorizado. A imediata divulgação da conversa pela TV Globo, sugerindo que Dilma estava nomeando Lula como ministro apenas para protegê-lo da Lava Jato, para dar-lhe o foro do STF, determinou o êxito do golpe contra Dilma. Só Lula teria conseguido, com sua habilidade política, reverter a maré do
impeachment ilegal que tomara conta do Congresso. E com isso tivemos
por dois anos o governo do usurpador Temer, do qual passamos ao
governo genocida de Bolsonaro.
Mas o tempo tem sido mesmo senhor da razão para Lula. O
lançamento do documentário na segunda-feira, a reportagem de Joaquim
de Carvalho no Brasil 247, mostrando como Moro, ainda juiz, ajudou
advogados a faturar com a Lava Jato, e a decisão da Segunda Turma
nesta terça-feira, são peças que se encaixam, e se juntam com outras,
para tornar inevitável a declaração de suspeição de Moro e anulação de
sua sentença contra Lula no caso triplex.
Depois, teremos o acerto de contas de Moro e dos procuradores
com a Justiça. Como isso se dará, não está claro. No Senado, avança a
coleta de assinaturas para a instalação da CPI da Lava Jato. Na Câmara
corre outra coleta. Pode ser que se juntem. Será divertido ver Moro e
Dallagnol prestando depoimento na Casa que demonizaram com a Lava
Jato, apresentando todos os políticos e partidos, mas especialmente os
do PT, como corruptos inescrupulosos. E com isso nos levaram a
Bolsonaro, que é o verdadeiro legado da Lava Jato
TEREZA CRUVINEL ” BLOG BRASIL 247″ ( BRASIL)