DEPOIS DE ANOS NA RUA, ANA ENCONTROU TRABALHO, AMOR E CASA

CHARGE DE GAZO

Há um antes e um depois da Plataforma + Emprego na vida de Ana Alves. Antes da P+E, dias devotados às drogas e noites mal dormidas em vãos de escada, entradas de prédios, prédios devolutos, pensões de fim de linha. Depois da P+E vieram os dias de trabalho árduo, primeiro precário, agora estável, e noites de descanso na pequena casa que partilha com o companheiro.

“Perdi muitos anos da minha vida”, diz a mulher, de 46 anos, toda vestida de branco, encolhendo-se num cadeirão azul. Entre os 18 e os 40 anos, uma intermitência de drogas, desintoxicações, recaídas, sem que a mãe desistisse dela, lhe trancasse a porta. “Se fosse hoje em dia, não fazia nada, nada, nada do que fiz. Fazia tudo, tudo, tudo como faço agora.”

O que Ana faz agora é trabalhar na associação mutualista Benéfica e Previdente. Estreou-se na lavandaria, passou para a cozinha, na retaguarda do serviço de apoio domiciliário e outras valências. “Adoro estar aqui. Além de gostar de cozinhar, gosto de aprender.” Todos os anos, ali mesmo, horas de formação. “Aprendi a fazer bolo de chocolate, bolo de laranja, formigos, tanta coisa!”

Competências para a integração

Tudo começou na primeira Estratégia Nacional para a Integração da Pessoa Sem Abrigo (2009-2015). Na rede interinstitucional que então se montou no Porto, surgiu a ideia de seleccionar pessoas com perfil de empregabilidade e identificar empresas ou instituições que lhes pudessem dar trabalho.

A P+E envolvia várias entidades do Núcleo de Planeamento e Intervenção em Sem-Abrigo (NPISA) do Porto e era coordenada por Jorge Mayer, voluntário e gestor da EDP, Alfredo Figueiredo Costa, então coordenador da Welcome Home, e Olga Rocha, técnica da Segurança Social. A adesão do Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP) permitiu ir além da agência de emprego, desenvolver um projecto-piloto de formação adaptada.

“Houve grande abertura do IEFP, que assumiu o desafio de, connosco, fazer pela primeira vez uma formação dedicada aos sem-abrigo”, recorda Mayer. Atendendo à motivação frágil, ao medo de assumir compromissos de longo prazo, à dificuldade em cumprir horários e regras, idealizaram um percurso curto, a que chamaram “Competências para a integração”. Combinaram essa formação, centrada na expressão corporal e teatral, com formação em jardinagem. “Havia muita flexibilidade. Os horários eram combinados com as pessoas. Elas não perdiam o apoio se faltassem.”

A primeira edição, de que Ana fez parte, decorreu em 2014/2015. Naquela altura, já não dormia onde calhava. Com a ajuda da Arrimo – Organização Cooperativa para Desenvolvimento Social e Comunitário, trocara a heroína pela metadona e passara a dormir numa pensão, que pagava com o Rendimento Social de Inserção (RSI) e a acção social. Não consumia cocaína havia dois meses. E, desta vez, não haveria de voltar atrás. Estava cansada daquela servidão.

O luxo de ter uma casa

Eram 20 pessoas com fraca escolaridade e pouca experiência de trabalho. “Era para a gente ter a responsabilidade de se levantar, de aparecer a horas.” E Ana “até gostava de ir, de ter horários, de ter aquelas pessoas a apoiar”. Dava por ela a pensar: “Eu não tenho nada, mas se começar a construir alguma coisinha devagarinho…”

Só 15 chegaram ao fim. Ana e outros três assinaram um Contrato Emprego Inserção +, um programa de trabalho socialmente necessário destinado a beneficiários de RSI. Dois seguiram para trabalho temporário, dois para o Centro de Reabilitação Profissional, um para um curso de educação e formação, três para comunidades terapêuticas.

FILIPE RIBEIRO

Durante um ano, Ana arrancou ervas daninhas e fez pequenas podas em troca de uma bolsa. Naquelas tarefas conheceu o companheiro, que também integrava um CEI+  na Câmara do Porto. Ele nunca consumiu drogas e isso encorajou-a. “Pedi ao enfermeiro para me reduzir a metadona. Quando cheguei às duas gotas, deixei. Graças a Deus, até hoje.”

Arrendaram um pequeno apartamento. “Nunca tinha tido uma casa!” Um luxo meter a chave na porta e entrar quando quer. Não têm muitas horas para namorar. Ela trabalha das 7h às 15h ou das 8h30 às 16h. Ele vai trabalhar antes das 20h e volta depois das 4h. “Tanto anda com a carrinha a apanhar lixo como anda a varrer.” Aproveita as horas que têm. Nunca tinha tido uma relação assim, em que pudesse ser ela e pudesse ser parte de uma união, partilhar a vida, imaginar um futuro, construí-lo. “Eu hoje sou uma pessoa feliz.”

Não a largaram. Findo o CEI+, os membros da P+E desdobravam-se em contactos para a recolocar e aos colegas. Ela ainda cumpriu um contrato temporário na Agência de Desenvolvimento Integrado de Lordelo do Ouro, regressou ao RSI e assinou um CEI+ com a Benéfica antes de ficar efectiva.

O seu grupo não foi o único. Seguiram-se outras três edições da formação destinada a pessoas sem-abrigo – com mais horas, estágio integrado, menos sucesso. Em 2018, uma candidatura a fundos europeus foi preparada pelos parceiros e encabeçada pela Santa Casa da Misericórdia do Porto. A P+E passou a ter dois técnicos a tempo inteiro.

IEFP “tem estado ausente”

Ao que diz Jorge Mayer, na primeira fase, 42 pessoas assinaram contratos de trabalho. Nesta segunda, 30. E correu bem. “Em 72 pessoas, tivemos problemas com duas. Uma ficou a trabalhar na mesma entidade, mas mudou de sector. Outra teve uma série de faltas injustificadas.”

Em 2018, quando a câmara assumiu a coordenação do NPISA, o eixo do emprego passou para a alçada do IEFP. Mayer aplaude a acção da autarquia, não do IEFP. “O IEFP tem estado ausente”, lamenta. “Há um ano que não há reunião. Deixaram de responder a emails e a telefonemas.” E isto “tem impacto na missão comum”. Um projecto com resultados perde eficácia por motivos que lhe são alheios. “Continuamos a tentar inserir pessoas no mercado de trabalho, mas queríamos fazer formação e não estamos a fazer. Esta formação precisa do IEFP”, esclarece.

Ninguém, ali, quer deixar de ajudar a realizar histórias como a de Ana. “Nós podemos ser úteis para a sociedade”, enfatiza ela. “Falo por mim. Eu sou um exemplo. A gente tem de acreditar em nós, mas tem de haver alguém que também acredite… É preciso dar oportunidade”, diz ainda. “Há pessoas que são ajudadas, vão pedir trabalho aqui e acolá e, pelo anterior delas, não lhes dão trabalho. Deixam outra vez de acreditar em tudo.”

O programa Incorpora, da Fundação “la Caixa”, em colaboração com o BPI e o IEFP, tem como objectivo fomentar o emprego para pessoas em situação de vulnerabilidade social. Nesta série de seis reportagens, o PÚBLICO apresenta um conjunto de retratos representativos dos diversos grupos-alvo da iniciativa. As reportagens são guiadas por critérios editoriais, sem qualquer relação directa com os apoios atribuídos pelo programa.

ANA CRISTINA PEREIRA ” PÚBLICO” ( PORTUGAL)

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