É tempo de traição. Para ser preciso, amanhã é o Dia D da traição na Hora H. Mantida a tradição da política brasileira, é que o que se espera nas duas eleições marcadas para esta 2ª feira para a escolha das mesas diretoras que irão comandar o Senado Federal e a Câmara dos Deputados nos próximos dois anos. Vale dizer, até o fim do atual mandato do presidente Jair Bolsonaro – salvo se algum fato novo não mudar o destino.
Há dois horários-chave para o Dia D: às 14 horas, a atual mesa diretora do Senado, comandada pelo presidente, David Alcolumbre, inicia a reunião preparatória para a escolha da nova composição. Como são 81 senadores, para haver quórum, pelo menos 41 precisam estar presentes. Na Câmara dos Deputados, o atual presidente Rodrigo Maia marcou o início da votação para às 19 horas. O quórum mínimo é de 257 deputados (metade mais 1 dos 513 mandatos). Como a votação será presencial, mas por meio eletrônico, em cinco ou dez minutos haverá tempo para o resultado ser anunciado nos principais telejornais do país. Se o cabeça de chapa conseguir maioria simples, a eleição é imediata. Do contrário, os dois primeiros colocados vão para um 2º turno.
Se não houver nova inscrição ou desistência, a presidência do Senado será disputada por cinco senadores: Jorge Kajuru (Cidadania-GO), Lasier Martins (Podemos-RS), Major Olimpio (PSL-SP), Rodrigo Pacheco (DEM-MG) e Simone Tebet (MDB-MS). Vítima de traições no MDB e da forte pressão do governo Bolsonaro em favor do seu candidato, Rodrigo Pacheco, Simone não deve sentar na cadeira que o pai, Ramez Tebet, ocupou de 2001 a 2003.
Na Câmara dos Deputados o jogo costuma ser mais bruto. Como vimos nos Estados Unidos, é na Câmara dos Representantes que se aprovam leis (embora lá a Suprema Corte tenha o poder de emendar a enxuta Constituição), são discutidos orçamentos e eventuais cortes, e analisados pedidos de impeachment. Os de Fernando Collor e de Dilma Roussef tiveram de ser aprovados pela Câmara para depois, em sessão conjunta das duas casas do Legislativo, sob a presidência do 3º Poder – o Judiciário, representado pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, ter a sentença final.
Collor renunciou em meio ao processo iniciado e perdeu seus direitos políticos por oito anos (mais ou menos o que pode acontecer com Donald Trump se alguns senadores republicanos votarem contra ele). No caso de Dilma, o então presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB), conseguiu uma chicana com o presidente do STF à época, Ricardo Lewandowski: o processo foi fatiado em dois e Dilma perdeu o mandato mas preservou os direitos políticos. Assim, concorreu e foi derrotada para uma das duas vagas ao mandato de Senador por Minas Gerais em 2018. Com 15,35% dos votos, a ex-presidente chegou em 4ª lugar. O mais votado, com 20,49% dos votos e quase 1 milhão de votos acima da ex-presidente, foi justamente Rodrigo Pacheco (DEM).
Bolsonaro prometeu na campanha que o combate à corrupção era sua maior bandeira, ao lado de renegar a velha política do toma lá, dá cá, exercida com muita voracidade por cargos e verbas públicas pelo conjunto de deputados do Centrão, em troca de votos e apoios a determinadas leis onde surgiam jabutis nas forquilhas, nas três últimas décadas. Tão logo vislumbrou o seu mandato sob risco, depois que a descoberta dos esquemas das rachadinhas do filho 01, o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) era deputado da Alerj, poderia abrir a caixa de pandora das pequenas e grandes corrupções da família, Bolsonaro se agarrou com unhas, dentes à distribuição de cargos e verbas ao Centrão. O nome denomina o aglomerado de partidos fisiológicos que mais cresce no país, na horizontal e na vertical, é bem familiar ao presidente. Em quase três décadas na Câmara, o então deputado e ex-capitão Jair Messias Bolsonaro sempre transitou por suas siglas, marcando ponto sobretudo no PP. Bolsonaro teve dezenas de pedidos de impeachment protocolados junto à Mesa da Câmara, mas a todos o atual presidente Rodrigo Maia (DEM-RJ) sentou em cima e não deu seguimento. Nem por isso, Bolsonaro foi grato. Mas isso é só mais um capítulo de traições ou ingratidões da vida pública.
A vida partidária brasileira foi interrompida pelo golpe militar de 1964, que cassou legendas e políticos, sobretudo de esquerda, e impôs o bipartidarismo com a Arena e o MDB. No governo do general Figueiredo, a Arena virou PDS e era o sustentáculo do regime, com maioria no Colégio Eleitoral (formado por deputados, senadores e prefeitos de grandes capitais), que elegia o presidente indiretamente. Em 1982, foram eleitos, por voto direto, os primeiros governadores desde 1964. A eleição do sucessor de Figueiredo, já na redemocratização, iniciada em 1979, com a anistia e a volta de milhares de exilados políticos, ainda seria pelo voto indireto.
Calculista e ambicioso, Paulo Maluf que tinha sido eleito governador de São Paulo por voto indireto, se candidatou e foi eleito deputado federal em 1982, pelo PDS-SP, já de olho na conquista de votos para obtenção de maioria do Colégio Eleitoral. Sua conta era simples: havia apenas dois partidos, PDS e MDB, e o princípio da fidelidade partidária; era só aliciar votos dos colegas na Câmara e no Senado, além de prefeitos das grandes capitais. Quando governava São Paulo, Maluf iniciara a “catequese”, com dois instrumentos poderosos do Estado paulista: o Banco do Estado de SP (Banespa) e a Vasp.
O Banespa abriu uma agência no Congresso e aprovou largos limites de cheque especial para deputados e senadores. Já a Vasp passou a voar para as mais importantes capitais brasileiras, sempre aliviando o trajeto dos futuros eleitores do colégio eleitoral. Prefeituras ganhavam ambulância do governo de SP. A prática da benemerência com dinheiro alheio (o nosso, do contribuinte) já tinha sido usada quando Maluf era prefeito indireto de São Paulo (cargo que ganhou ao se aproximar do ex-marechal Costa e Silva em mesas de pôquer): o prefeito deu um fusca a cada um dos 22 tricampeões do mundo de 1970. Demorou décadas, mas foi condenado. Já o Banespa e a Vasp (a privatização não a salvou) quebraram por essas e outras diabruras em futuras gestões.
Como lembrei na semana passada, Tancredo Neves, que venceu Maluf, tinha como uma de suas máximas – “Não se anuncia acordo antes de ele estar assinado por todos”. Maluf foi atropelado pela cisão do PDS, onde disputava a indicação com o então ministro do Interior, coronel Mário Andreazza. Presidido por José Sarney, o PDS tinha uma forte ala política contra os métodos de Maluf. Assim, Sarney, Antônio Carlos Magalhães e outros caciques deixaram o PDS e criaram o PFL (o atual DEM). Tancredo foi efeito de goleada, mas morreu sem assumir a presidência, ocupada por seu vice, José Sarney.
Veio o tempo da redemocratização e o grande parto foi a disputa política por aprovação de pontos de vista na Constituinte (1986-88). Vários blocos surgiram. Liderada pelo PMDB e sua primeira grande dissidência, o PSDB, e mais o PT, o PDT, o PSB e demais partidos de esquerda formavam um bloco mais progressista. Remanescentes do PDS, criaram o PP e outras forças mais conservadoras, à direita, formaram o PL, o PTB (nada a ver com o trabalhismo de Vargas e Alberto Pasqualini). O PFL, mais à centro direita, ficou em cima do muro. As teses conservadoras e os interesses empresariais (que correram à solta na Constituinte, do sistema financeiro às empreiteiras que queriam e conseguiram reservas de mercado) acabaram tendo eco junto a essa turma batizada de “baixo clero”, que foi amealhada pelo Centrão.
A especialidade maior sempre foi o jogo do toma lá dá cá. No presidencialismo brasileiro que teve o figurino desenhado na Constituinte para ser parlamentarista, mas foi derrotado no plebiscito de 1993, sem maioria no parlamento, os governos tinham de fazer alianças para aprovar projetos. FHC fez aliança com o FPL e não precisou usar muito essa turma. Lula, eleito pelo PT e as esquerdas, criou o antagonismo ao PSDB (o “nós contra eles”), teve de fazer alianças pontuais com o PMDB e raramente com o PFL. Seus parceiros no primeiro mandato, como foi revelado no “mensalão”, foram o PL, o PP e o PTB, com apoios negociados à base do troca-troca de cargos por apoios.
Dilma Roussef, reeleita em 2014, apesar de a economia já estar fazendo água e mostrar os primeiros sinais da big recessão de 2015 e 2016, tentou fugir de uma composição na Câmara e se deu mal. Ao tentar impor a candidatura do candidato do PT, o deputado paulista Arlindo Chinaglia dividiu os votos governistas (e das forças de centro-esquerda) e permitiu a eleição, surpreendente, em 1º turno, do deputado Eduardo Cunha (PMDB-R). A Globonews, como a maioria dos órgãos de imprensa do país, acreditou que haveria um 2º turno entre Cunha e Chinaglia e escalou o apresentador Dony De Nuccio, especializado em economia, para comandar o jornal. Inexperiente no ramo, enquanto as imagens já mostravam as efusivas comemorações em torno de Eduardo Cunha, De Nuccio chamava o repórter no plenário para contar como seria “o 2º turno”. Cunha, com um trabalho junto ao “baixo clero evangélico”, segmento que cresce com a agenda conservadora, venceu com 267 votos, contra apenas 136 de Chinaglia e 100 votos de Júlio Delgado (PSB-MG). Surpresa maior mesmo que a eleição de um legítimo representante do baixo clero, em 2005, quando o deputado do PP Severino Cavalcanti, da pequena João Alfredo, do interior de Pernambuco, venceu o candidato do PT, Luiz Eduardo Greenhalgh. Antes que pudesse nomear um apadrinhado para a diretoria da Petrobras que “fura poço”, como insinuou ao presidente Lula, Severino, que tomou posse em 14 de fevereiro de 2005, foi apanhado numa pequena corrupção (propina de R$ 10 mil do concessionário do restaurante da Câmara) e renunciou ao cargo e ao mandato em setembro.
O governo Bolsonaro moveu céus e terras para eleger seu candidato, Arthur Lira (PP-AL) contra o candidato do MDB-SP, Baleia Rossi. Sete deputados embolam o jogo. Como a pandemia deve reduzir o comparecimento, os acordos podem facilitar a eleição no 1º turno. Além de apoiar Bolsonaro, Arthur Lira quer sepultar a lava-jato, para o que tem o apoio quase escancarado do PT. Uma absolvição de Lula pode devolvê-lo ao jogo político em 2022. E o que mais interessa a Bolsonaro é a volta do “nós contra eles”, que o elegeu em 2018. O slogan de seu filho 02, o vereador reeleito em 2020, Carlos Bolsonaro, sintetiza as intenções: “vamos fazer avançar a agenda conservadora”. Para isso, basta que as promessas sejam cumpridas. No passado, os coronéis do Nordeste davam um pé de sapato à véspera da eleição; o outro só seria dado depois que fosse eleito. Semana passada, enquanto o país passava de 220 mil mortes pela Covid-19, e sem garantia de vacinas importadas, uma ponte foi inaugurada pelo presidente, entre Sergipe e Alagoas, com farta comitiva que incluía o ministro das Relações Exteriores (?), Ernesto Araújo.
Amanhã, veremos qual será o tamanho das traições e suas sequelas, com o país.
GILBERTO DE MENEZES CÔRTES ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)