Chegou às mãos de Augusto Aras, procurador-geral da República, uma representação que ilumina um debate em curso no país. Ela pede que o presidente Jair Bolsonaro seja processado por um crime muito grave. Em caso de condenação, pode render até 30 anos de cadeia. Somados aos outros, a pena passaria de 50. Explico.
Um grupo de ex-subprocuradores-gerais da República acusa Bolsonaro de ter incorrido no Artigo 267 do Código Penal. E o que ele diz mesmo? Reproduzo:
“Art. 267 – Causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos:
Pena – reclusão, de dez a quinze anos.
§ 1º – Se do fato resulta morte, a pena é aplicada em dobro.
§ 2º – No caso de culpa, a pena é de detenção, de um a dois anos, ou, se resulta morte, de dois a quatro anos.”
Assinam a petição os subprocuradores-gerais da República Deborah Duprat, Alvaro Augusto Ribeiro Costa, Claudio Lemos Fonteles, Manoel Lauro Volkmer de Castilho, Paulo de Tarso Braz Lucas e Wagner Gonçalves.
Será que Bolsonaro fez algo mais do que ser negligente e incompetente, na sua esfera de atuação, no combate à pandemia? A pergunta é, convenham, retórica. Qualquer pessoa medianamente informada lembra, sem muito esforço, de rompantes do presidente contra o distanciamento social, a máscara ou a vacina. Há no seu comportamento bem mais do que o “não fazer”. Sim, ele faz. Então é preciso que nos perguntemos: “Faz o quê?”. É necessário dar a resposta.
LEMBRANÇA
Antes que prossiga, relembro o caminho. Em caso de crime comum, se o procurador-geral encaminhar a denúncia ao Supremo — Aras pode simplesmente arquivar –, ela segue para a Câmara dos Deputados. Pelo menos 342 (dois terços) têm de autorizar o tribunal a examinar a procedência da denúncia. Se o STF determinar a abertura da investigação, com o voto de pelo menos seis ministros, o mandatário é afastado do cargo por 180 dias. Se condenado, é preso (nesse caso, ficaria em regime inicial fechado), perde o mandato e se torna inelegível, segundo o Artigo 15 da Constituição, enquanto durarem os efeitos da condenação. Adiante.
PETIÇÃO ESCLARECEDORA
Por que afirmo que a petição dos ex-subprocuradores-gerais ilumina o debate? Porque ela faz um percurso até chegar à conclusão de que é inescapável denunciar Bolsonaro por “causar epidemia”. Tenham o texto sempre ao alcance.
Os autores dessa representação lembram uma outra já protocolada na PGR, assinada por 354 pessoas — e com milhares de adesões virtuais –, que evidencia que Bolsonaro, com a sua conduta, já cometeu os seguintes crimes tipificados no Código Penal:
– Artigo 132: perigo para a vida ou saúde de outrem;
– Artigo 257: subtração, ocultação ou inutilização de material de salvamento;
– Artigo 268: infração de medida sanitária preventiva;
– Artigo 315: emprego irregular de verbas ou rendas públicas;
– Artigo 319: prevaricação
O presidente, segundo essa petição, incorreu nesses tipos penais ao adotar as seguintes condutas:
1: reiterados discursos contra a obrigatoriedade da vacinação e lançando dúvidas sobre a sua eficácia e efeitos colaterais;
2: ausência de adoção das providências necessárias para a adequada conformação logística da distribuição de imunizantes pelo país;
3: imposição de obstáculos à produção e aquisição de insumos, como ocorreu no caso de agulhas e seringas;
4: ausência de resposta do governo brasileiro à oferta da empresa Pfizer, em agosto de 2020, de aquisição de 70 milhões de doses de seu imunizante;
5: declarações públicas diversas, inclusive por meio de suas redes sociais, de que não adquiriria a vacina fabricada pelo Instituto Butantan (CoronaVac);
6: desrespeito à recomendação da Organização Mundial da Saúde, sobre necessidade de campanhas eficientes de esclarecimento da população a respeito da imperatividade da máxima cobertura vacinal para eficiência do controle da doença;
7: apologia do uso de medicamentos comprovadamente ineficazes e/ou prejudiciais aos pacientes portadores de COVID- 19;
8: má utilização de recursos públicos na produção em larga escala, pelo Exército brasileiro, de cloroquina e hidroxicloroquina, contraindicados em muitos casos clínicos por chances de complicações cardiovasculares, e aquisição de insumos com preços até três vezes superiores ao habitual;
9: veto a trecho da Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2021, que impedia o contingenciamento de despesas relacionadas “com ações vinculadas à produção e disponibilização de vacinas contra o coronavírus (Covid-19) e a imunização da população brasileira”;
10: prescrição, pelo governo brasileiro, do chamado “tratamento precoce” diante do alerta da escassez de oxigênio hospitalar na cidade de Manaus, cumulada com o aumento do imposto sobre importação de cilindros dias antes do colapso no estado do Amazonas.
O que vai acima, convenham, não é juízo de valor. Imagino a cara de Augusto Aras ao ler essa petição assinada por quase quatro centenas de pessoas e endossada por milhares de outras. Ele nem precisa acreditar no que a imprensa informa para saber que os peticionários estão apenas contando a verdade. Basta que se fie nas declarações do próprio presidente.
Os atos acima listados são, obviamente, criminosos. E os tipos penais que eles implicam estão devidamente listados. Pergunto:
a) Aras tem como negar que o presidente protagonizou aquele decálogo?;
b) Aras tem como ignorar que aquelas ações são tipos penais?
MAS HÁ COISA MUITO MAIS GRAVE
Os ex-subprocuradores-gerais obviamente endossam essa petição coletiva. E avançam. Bolsonaro foi mais do que negligente ou incompetente. Não se limitou a contribuir para que o vírus se espalhasse ao deixar de adotar, tempestivamente, essa ou aquela medidas ou ao simplesmente insistir no erro. Os que assinam a representação evidenciam também, e estamos de volta ao Artigo 267 — que remete ao crime mais grave –, que o presidente se tornou um agente da pandemia.
Escrevem os subprocuradores-gerais:
Posteriormente a essa bem fundamentada representação, veio a público pesquisa promovida pelo CEPEDISA/FSP/USP e Conectas Direitos Humanos, que, analisando 3.049 normas relativas à Covid-19 no âmbito da União Federal, estabelece uma linha do tempo que “demonstra a relação direta entre esses atos normativos, a obstrução constante às respostas locais e a propaganda contra a saúde pública promovida pelo governo federal.
Segundo a pesquisa, “Os resultados afastam a persistente interpretação de que haveria incompetência e negligência de parte do governo federal na gestão da pandemia. Bem ao contrário, a sistematização de dados, ainda que incompletos em razão da falta de espaço para tantos eventos, revela o empenho e a eficiência da atuação da União em prol de ampla disseminação do vírus no território nacional, declaradamente com o objetivo de retomar a atividade econômica o mais rápido possível e a qualquer custo”.
Também ali se conclui que a ultrapassagem da cifra de 200 mil óbitos no país, em janeiro de 2021, é em parte resultado dessa opção, já que, em sua maioria, mortes seriam evitáveis se houvesse alguma estratégia de contenção da doença.
Vale dizer: o governo tomou decisões concretas, também na área normativa, que contribuíram para a expansão do vírus, para a multiplicação de doentes e, por consequência, de mortos.
“Ah, então Bolsonaro acordava todo dia pensando algo assim: ‘Hoje, vou espalhar o vírus’?”. O fundo das consciências pertence a Deus, ao diabo ou a ninguém, sabe-se lá. Não é preciso, nesse caso, entrar no inferno subjetivo de presidente. Basta saber que não havia como ele ignorar que, tomando aquelas decisões, assumia o risco de produzir um determinado efeito. E produziu. Ele não precisa dizer para si mesmo, no espelho, “vou ser um militante da pandemia”. Basta que assuma o risco. É o chamado dolo eventual — logo, a atuação do presidente não é meramente culposa.
E, como é sabido, para tanto foi advertido milhares de vezes por médicos, cientistas e especialistas em comportamento.
O DISCURSO DO LÍDER E O COMPORTAMENTO DE RISCO
A petição dos ex-subprocuradores-gerais cita um estudo que estabelece a devida relação entre o discurso do líder e o comportamento de risco. Escrevem:
Nicolás Ajzenman, Tiago Cavalcanti e Daniel da Mata, em estudo intitulado “More than Words: Leaders’ Speech and Risky Behavior During a Pandemic”, revelam o grande e robusto impacto dos discursos e das ações do Presidente da República, publicamente e enfaticamente diminuindo os riscos associados à COVID-19, advertindo contra o isolamento e desprezando as medidas de distanciamento social, no comportamento das pessoas em municipalidades pró-governo, especialmente aquelas com níveis relativamente elevados de penetração da mídia, com presença de contas ativas de Twitter e com maior proporção de paroquianos evangélicos, grupo chave em termos de suporte ao presidente. A pesquisa combina informações eleitorais, transações com cartões presenciais e dados de telefonia móvel de mais de 60 milhões de dispositivos em todo o país. O período de análise é de 1º de fevereiro a 14 de abril de 2020.
CAMINHANDO PARA A CONCLUSÃO
Não se trata, evidentemente, de indagar se Bolsonaro sabia e sabe que seu comportamento contribuiu com a doença, não com a prevenção. A pergunta, nesse caso, é outra: há alguma possibilidade remota de ele não saber? A resposta, obviamente, é “não”, dado que, para lá de centena de vezes no curso da pandemia, contestou abertamente o saber científico e técnico, tratando como adversários aqueles que recomendam as medidas de contenção e de redução de danos.
“Ah, será que Aras teria coragem de enviar isso ao Supremo? Há 342 deputados que concordariam com a abertura da investigação?” A resposta para a segunda pergunta é “não”. Mas a petição fica na história, e Bolsonaro não será presidente perpétuo. É muito pouco provável que o procurador-geral mande a denúncia para o tribunal.
A eficácia imediata de um ato dessa natureza, sob certo ponto de vista, não é o mais importante. Eis aí uma petição que evidencia, de forma irrespondível, que o presidente agiu conhecendo os riscos que decorriam dessa ação. E aquilo que fez é crime passível de até 30 anos de cadeia.
A batalha civilizatória que se trava no país tem esse marco. Que travem a luta política legitima os que podem e devem.
REINALDO AZEVEDO ” SITE DO UOL” ( BRASIL)