Um policial da Agência de Álcool, Tabaco, Armas de Fogo e Explosivos (ATF) dos EUA limpa os destroços espalhados pelo chão da Rotunda do Capitólio nas primeiras horas da manhã após os manifestantes terem invadido o prédio em Washington, D.C., no dia 7 de janeiro de 2021. Foto: Andrew Harnik/AP
Apesar dos bilhões de dólares gastos em inteligência e vigilância, as forças de segurança dos EUA permitiram que uma multidão armada pró-Trump saqueasse o Capitólio.
POUCAS HORAS DEPOIS de se tornar o cenário de um cerco histórico, o cenário fora do Capitólio dos Estados Unidos era assustador, mas calmo. Não havia mais multidões e o gás lacrimogêneo já havia se dissipado. O único som nas ruas era de uma ocasional sirene ao longe. Desde as viaturas da polícia até as SUVs escuras, quase todos os veículos nas ruas pertenciam a alguma agência de policiamento. Algumas dezenas de âncoras de TV enviavam suas notícias do lado sudoeste do Capitólio. Atrás deles, funcionários de governo camuflados e de afiliação obscura andavam de um lado para outro, realocando seus escudos e outros equipamentos táticos. Mais perto do prédio, uma coluna de policiais de choque vestidos de preto se arrastava pelas sombras, visíveis apenas pelo brilho de seus capacetes.
A presença da polícia na quarta à noite, como a usada contra manifestantes na posse de Donald Trump em 2017 e nos protestos do Black Lives Matter em 2020, foi um lembrete de que a capital do país mais poderoso do mundo não carece de forças de segurança. Como um corpo coletivo, as agências são abundantes e bem armadas, e contam com um aparato de compartilhamento de inteligência de um bilhão de dólares. Não que o comício de quarta-feira fosse algum segredo, nem seu desfecho fosse imprevisível. A manifestação que precedeu a tomada do Capitólio foi exaltada por semanas, inclusive pelo próprio presidente, que nos últimos quatro anos teve uma relação direta com muitos atos de violência de extrema direita.
“É algo que definitivamente mostra a ineficácia da rede de inteligência que construímos desde o 11 de setembro — que a Polícia do Capitólio não estaria preparada para um ataque ao Capitólio que foi planejado em público”, disse ao Intercept Mike German, um membro do Brennan Center para a Justiça e ex-agente do FBI especializado em contraterrorismo. “Não era como se esta fosse uma reunião espontânea. Foi um evento planejado por semanas, e ficou muito claro na atividade das redes sociais e nas declarações públicas desses militantes o que pretendiam fazer”.
O ataque ocorreu quando o Congresso se reuniu para certificar os votos do Colégio Eleitoral para o presidente eleito Joe Biden. Em resposta, os apoiadores do presidente organizaram uma manifestação para “parar o roubo” que atraiu milhares de manifestantes ao centro de Washington, D.C. Era pouco antes das 13 horas quando a multidão, com o incentivo do presidente, começou a derrubar barricadas e abrir caminho em meio à Polícia do Capitólio. O deputado Chris Pappas, um democrata de New Hampshire, que estava entre os legisladores que foram retirados às pressas do prédio, descreveu a velocidade com que a multidão dominou a Polícia do Capitólio como sendo “de tirar o fôlego”.
Em um comunicado divulgado na quinta-feira, o chefe da polícia do Capitólio, Steven A. Sund, disse que seus oficiais “responderam corajosamente quando confrontados com milhares de indivíduos envolvidos em ações violentas e tumultuadas”, e observou que quase 20 agências estaduais, locais e federais, incluindo a Guarda Nacional, responderam aos eventos do dia. Mais de 50 policiais ficaram feridos, disse ele, acrescentando: “o ataque violento no Capitólio dos EUA foi diferente de qualquer outro que vivi em meus 30 anos trabalhando em Washington D.C.” De acordo com informações divulgadas ao longo da quinta-feira, o Departamento de Polícia Metropolitana “não tinha inteligência” sugerindo que “haveria uma violação do Capitólio dos EUA”.
German, o ex-agente do FBI, disse: “é preciso haver uma investigação séria sobre as falhas de inteligência e as falhas táticas que permitiram que a própria capital fosse violada, especialmente por pessoas com armas”. Adam Isacson, o diretor do programa de supervisão de defesa do Washington Office para a América Latina, sediado na capital dos EUA, vinculou os eventos a uma politização mais ampla da polícia sob Trump, uma reminiscência dos movimentos antidemocráticos que os EUA patrocinam historicamente ao redor do mundo. “Você não consegue pilhar o Capitólio por horas, e depois ir embora calmamente, a menos que a polícia e seu comando compartilhem de suas opiniões”, escreveu. “O que vimos ontem foi a aprovação tácita dos desordeiros. Ponto final”.
Para aqueles que acompanharam a violência de extrema direita durante a presidência de Trump, a coisa mais chocante sobre os eventos de 6 de janeiro de 2021 talvez seja o quão previsível tudo era. Em um discurso antes do início da violência, o presidente, que há muito havia deixado claro que não tinha interesse em admitir a derrota, lembrou seus apoiadores que eles foram injustiçados por malfeitores e que cabia a eles lutar pelo destino do país. Ele os ungiu as estrelas de seu próprio filme de ação, com a cena culminante do final agora ao alcance. “Se você não lutar como o diabo”, Trump avisou, “você não vai mais ter um país”. Ele disse aos seus seguidores que, juntos, eles marchariam sobre o Capitólio para fazer suas vozes serem ouvidas. É claro, ele pessoalmente não fez isso — Trump subiu em um veículo blindado e saiu de cena — mas seus apoiadores fizeram exatamente o que lhes foi dito para fazer.
A multidão insurrecional encontrou alguma resistências enquanto desciam ao Capitólio — alguma, mas não muita. A polícia usou agentes químicos contra eles, mas em geral a resposta teve pouca semelhança com o punho de ferro testemunhado contra os manifestantes de justiça racial em Washington, D.C., e em cidades de todo o país poucos meses atrás. Os rebeldes gritaram com a polícia, chamando-os de traidores, e deram socos nos policiais sem que isso tivesse consequência. Os apoiadores de Trump, com seus bonés vermelhos, então quebraram as janelas e portas do Capitólio para invadir o prédio. Alguns agitaram a bandeira confederada; muitos mais carregavam faixas com o nome do presidente. Embora alguns policiais do Capitólio tenham brandido seus cassetetes contra os insurgentes que avançavam, ao menos um deles os satisfez posando para uma selfie.
Esquerda/em cima: Manifestantes violam uma porta do Capitólio dos EUA durante uma sessão conjunta do Congresso para contar os votos dos delegados eleitorais na eleição presidencial de 2020. Direita/abaixo: manifestantes entram em confronto com a polícia dentro do Capitólio dos EUA, em Washington, D.C., em 6 de janeiro de 2021.Fotos: Erin Scott/Bloomberg/Getty Images; Chris Kleponis/Sipa USA/AP
Gás lacrimogêneo foi utilizado dentro do edifício. Legisladores colocaram máscaras antigás sobre suas cabeças e se abrigaram sob bancos e escrivaninhas antes de serem evacuados para locais seguros. “Quando o povo teme o governo, há tirania… Quando o governo teme o povo… Há liberdade”, publicou na plataforma Parler Enrique Tarrio, líder dos Proud Boys, um grupo paramilitar de direita leal ao presidente, anexando uma foto de pessoas escondidas na Câmara. Tarrio, que foi preso esta semana por porte de arma, disse ao Wall Street Journal que espera que a insurreição continue nos próximos dias.
Ao menos uma mulher foi baleada e morta pela polícia durante o ataque de quarta-feira. Outros três morreram de emergências médicas, informou a Associated Press. Quando terminaram, as forças irregulares de Trump saíram do prédio triunfante e desmascaradas, sorrindo enquanto um policial segurava a porta para eles. “Nós amamos vocês. Vocês são muito especiais”, disse o presidente a seus apoiadores em uma mensagem de vídeo, dizendo que agora poderiam ir para casa. A polícia relatou ter encontrado bombas no lado de fora dos Comitês Nacionais do Partido Democrata e Republicano, bem como uma arma longa e um coquetel molotov.
Como agente do FBI nos anos 1990, German se infiltrou em grupos de extrema direita durante um período de intenso derramamento de sangue e violência, incluindo o atentado a bomba em Oklahoma City. Nas duas décadas desde os ataques de 11 de setembro, a ameaça de supremacistas brancos e militantes de extrema direita cometendo atos de violência perdeu a prioridade, explicou German, mesmo quando a eleição do primeiro presidente negro levou a uma explosão de atividades entre aqueles grupos. Desde o início da presidência de Trump e do infame motim do poder branco em Charlottesville, na Virginia, as consequências mortais do desinteresse da aplicação da lei em confrontar a extrema direita foram visíveis, repetidas vezes em cidades de todo o país, incluindo o Capitólio.“A falha em reagir à ameaça em Charlottesville é exatamente a mesma que aconteceu hoje.”
“A falha em reagir à ameaça em Charlottesville é exatamente a mesma que aconteceu hoje”, disse German.
“A violência que foi planejada e organizada à vista de todos foi ignorada pela rede de inteligência, e essa rede inclui as Forças-Tarefa Conjuntas de Terrorismo nos centros de fusão estaduais e locais”.
Quando os protestos pela morte de George Floyd eclodiram no verão, o sistema pós-11 de setembro para distribuir informações sobre ameaças se encheu de relatórios de inteligência. Como o Intercept noticiou em julho, documentos internos das agências de policiamento mostravam relatórios detalhados sobre ameaças emergentes da extrema direita, que nasceram no aparente assassinado direcionado de um oficial de segurança de um tribunal federal e um delegado do xerife na Califórnia por um extremista de direita com treinamento militar, bem como um suposto plano de atacar com bomba um protesto do Black Lives Matter. Embora a evidência de tais ameaças tenha sido compartilhada com a Casa Branca e as principais agências federais de aplicação da lei no país, ela estava competindo com um fluxo muito maior de informações que circulavam pela rede notoriamente não confiável e muitas vezes politizada dos centros de fusão de segurança interna.
Como resultado, diz German, as agências policiais de todo o país acabaram “muito mais focadas nos sonhos febris da câmara de ressonância da mídia de extrema direita, olhando para pilhas de tijolos em canteiros de obras e imaginando que seriam áreas de preparação para super-soldados antifa financiados com bitcoin”, do que em um movimento com uma longa e sangrenta história de violência terrorista nos Estados Unidos. O então procurador-geral William Barr, o principal responsável pela aplicação da lei no país, apoiou a linha do presidente de que haveria uma ameaça existencial vinda da esquerda, convocando as Forças-Tarefa Conjuntas de Terrorismo do FBI para caçar “agitadores” em uma campanha agressiva que varreu manifestantes contra a brutalidade policial em todo o país.
Até a manhã de quinta-feira, a polícia em Washington, D.C., prendeu 68 pessoas por crimes relacionados ao ataque ao Capitólio. O FBI estava pedindo ajuda da população para identificar outros. “Uma grande parte do problema, e o que encorajou os elementos mais violentos desses movimentos, é que eles tinham cobertura superior”, disse German. “O presidente dos Estados Unidos os estava encorajando a agir, e quando as autoridades locais, estaduais e federais não responderam aos seus atos públicos de violência, isso os condicionou a acreditar que eles não só eram autorizados, mas desejados pelas autoridades — que eles estavam cometendo uma violência sancionada pelo Estado”.
Esse tipo de condicionamento não desaparece da noite para o dia, diz German, mesmo com uma mudança na Casa Branca. “Isso não acabou”, disse ele. “Isso não é coisa de um dia para as pessoas que estão convencidas de que o presidente Trump ganhou a eleição e está tendo o cargo ilegitimamente negado. Agora que sua afeição fingida pela aplicação da lei se mostra um estratagema, acho que será muito perigoso para os agentes de aplicação da lei e, obviamente, para as pessoas em geral e outros funcionários eleitos”.
RYAN DEVERREAUX ” “THE INTERCEPT” ( EUA / BRASIL)
Tradução: Maíra Santos