O mais apaixonante dos rios da Europa é, sem dúvida, o Danúbio, tão presente nas românticas valsas vienenses que nos transportam de volta aos séculos dos soberanos da iluminada dinastia austríaca dos Habsburgo – monarcas, na Idade Moderna (1453 – 1789), da Alemanha, Espanha, Portugal, França e Bélgica. O Danúbio nasce em Ulm, cidade alemã do Estado de Baden-Württemberg, e banha praticamente toda a Mitteleuropa, ou seja, a Europa Central, desaguando no Mar Negro, quase às margens de Tulcea, na Romênia, próxima à querida Constança e fronteiriça à Ucrânia.
A Península Ibérica possui também adoráveis rios. Um deles é o emblemático Tejo, de cujo delta partiram as caravelas que deram mundos ao mundo. Outro importantíssimo é o Douro, dividindo duas cidades: Porto, que dá nome ao País e ao vinho, e Vila Nova de Gaia, onde, aliás, estão as famosas vinícolas. Preciosos, igualmente, são o Mondego, margeando Coimbra, e o Guadalquivir, que atravessa duas fascinantes metrópoles da espanhola Andaluzia: Córdoba e Sevilha.
Há ainda um particularmente encantador, o Minho, ao qual, por raízes de família, sou profundamente ligado. Brota na Espanha, ao Norte de Lugo, uma das quatro províncias que formam a Região da Galícia – as demais são La Coruña, Orense e Pontevedra. O Minho demarca a fronteira com Portugal, entre Valença e Tuy. É encontrada justamente no Minho uma das mais antigas especialidades do Norte ibérico, a lampreia, com aparência de uma cobra, mas considerado um peixe anádromo, isto é, troca o mar pelos rios à época da desova.
O tempo para degustá-la é exatamente agora – de janeiro a abril. Só me arriscaria a provar pela primeira vez uma lampreia, no inverno de 1986, em plena Lisboa – apesar de minhas muitíssimas idas e vindas, nas décadas de 1970 a 1990, ao Minho e à Galícia. Fui apresentado à iguaria pelo meu caríssimo e saudoso amigo, o pernambucano Duda Guennes (1937 – 2011), que, exilado desde 1974 na capital portuguesa, era correspondente do irreverente semanário O Pasquim, do Rio de Janeiro, e colunista do diário alfacinha A Bola. “Andas por aqui há anos e ainda não comestes uma lampreia?” – perguntou-me, ao pé do Palácio Foz, no início da Avenida da Liberdade, na noite de 11 janeiro, data do aniversário de meu inesquecível pai, galego de Pontevedra, que, se vivo fosse, estaria a fazer, naquele dia, 75 anos.
Diante de meu desconcertado não, puxou-me pelo braço, cruzamos a ampla avenida e conduziu-me à Praça dos Restauradores, acima do Largo do Rossio, no Restaurante e Cervejaria Pinóquio – inaugurado quatro anos antes. Pedimos uma Lampreia à Cabidela, temperada, portanto, em seu próprio sangue – como a Galinha ao Molho Pardo. Veio servida misturada ao arroz. Quase um Risotto all’Italiana. Não gostei tanto e então o Duda Guennes prometeu-me levar, como, de fato, levou-me, ao tradicionalíssimo Solar dosPresuntos, à Rua das Portas de Santo Antão, paralela à Liberdade, para saborearmos, dessa feita, uma Lampreia à Bordalesa –apreciada, da mesma forma, na França e um dos pratos prediletos da Rainha Elisabeth II da Inglaterra. Estava deliciosa e, por fim, para alívio do Duda Guennes, aprovei sua sugestão e comprometi-me a escrever, um dia, um artigo dedicado àquelas incursões gastronômicas lisboetas – o que o faço aqui e agora.
Trinta e cinco anos depois. Quem nunca viu uma lampreia e a conhece antes de ser abatida, conforme registrou em sua coluna em Veja outro amigo, o requintado gourmand J. A. Dias Lopes, nem sempre tem coragem de experimentá-la.
Foi o meu caso. “É um peixe pré-histórico e esquisito, parecido com uma enguia, que para muitos lembra uma cobra”, descreveu Dias Lopes. “Tem o corpo longo e flexível, sem ossos, com o esqueleto inteiro de cartilagem”. Concluindo: “Os olhos ficam de um lado e há uma barbatana do outro”. Mas, digo eu, vale a ousadia. Provem! À Cabidela ou à Bordalesa.
ALBINO CASTRO ” PORTUGAL EM FOCO” ( BRASIL / PORTUGAL)