Sua influência histórica é incontestável. Jesus significa o ideal da humanidade, a esperança de que a morte não acaba na sepultura, que o homem foi criado para a felicidade e não para a dor
A cada Natal surge a questão de saber se Jesus existiu. Foi realmente um personagem histórico ou criado com restos das velhas mitologias? Nada que influencie a vida dos cristãos ou provoque fissuras em sua fé, mas tampouco é pura curiosidade.
Onde nascem as dúvidas sobre a figura histórica de Jesus, cuja doutrina é professada por um terço da humanidade e é maioria absoluta no Brasil entre católicos e evangélicos? Do fato de que nenhum documento histórico de seu tempo fala de sua existência. Por exemplo, o filósofo Fílon de Alexandria, que morreu depois de Jesus, em nenhum de seus 50 escritos conservados mencionou Jesus, embora tenha se interessado pela grande atividade das seitas dentro do judaísmo daquela época.
Daí a alegria da Igreja ao descobrir que o famoso historiador judeu do final do século I, Flávio Josefo, fez alusões a Jesus, mas com tantos elogios que parece impossível que tenha sido escrito por um judeu. Daí as dúvidas de que o texto tenha podido ser modificado posteriormente pelos cristãos. De fato, o teólogo espanhol Juan José Tamayo em sua obra Por Eso lo Mataron, escreve: “Parece ser um texto muito modificado, sobre cuja autenticidade paira uma longa série de dúvidas”. E de fato o texto parece falso em sua totalidade, visto que reflete muito mais a pregação cristã de Jesus em uma chave totalmente apologética na linha dos evangelhos do que a visão de um historiador judeu da época de Jesus. No entanto, muitos pensam que embora possa ter sido manipulado mais tarde, na realidade é a única alusão à existência de Jesus.
E se dos historiadores judeus daquela época não sabemos praticamente nada sobre a historicidade da existência de Jesus, o que parece impossível é que tenha sido apenas um mito, pois a influência que aquele profeta que foi crucificado pelo poder religioso e civil da época como subversivo acabou tendo na história foi tanta que parece impossível que não tenha existido.
E os evangelhos que a Igreja considerou inspirados? É outra questão muito controvertida, pois havia dezenas de evangelhos cuja autenticidade é difícil de provar. Inclusive dos quatro evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João, que a Igreja acabou considerando canônicos, o mais antigo é o de Marcos, escrito oitenta anos depois da morte de Jesus. Saber o que neles existe de realmente histórico e não de mitificação do personagem não é fácil.
Tanto é verdade que os especialistas em estudos bíblicos consideram que de tudo o que é atribuído nos evangelhos a Jesus apenas 12 frases seriam literais. O resto é difícil saber se eram dele ou dos evangelistas. Uma experiência feita por Robert Funk, do Westar Institute, fala muito claramente da dificuldade de poder fazer uma reconstrução das palavras pronunciadas literalmente por Jesus durante sua vida pública. Uma reunião internacional de especialistas católicos e protestantes foi convocada para tentar reconstruir as palavras realmente pronunciadas por Jesus. Os eruditos trabalharam em várias universidades durante cinco anos para separar as frases que consideravam pronunciadas literalmente por Jesus.
A tarefa desses especialistas foi desesperada, pois nem sequer eles conseguiram entrar em um acordo. O que fizeram então foi submeter a uma votação para que cada um com sua especialidade votasse nas frases que poderiam ser consideradas autênticas ou não. Votaram com bolas de quatro cores. A vermelha significava “Jesus disse isso”, a rosa que deveria ter dito “algo parecido”, a cinza “Jesus não disse isso, mas pertence à suas ideias”, e a preta “Jesus não disse isso de forma alguma” e foi fruto da catequese dos primeiros cristãos. Esse trabalho com as cores das bolas foi publicado em um grosso volume intitulado Five Gospels: What Did Jesus Really Say (Cinco Evangelhos: O Que Jesus Realmente Disse). Somente 12 frases foram votadas em vermelho, ou seja, foram consideradas autênticas. Entre elas a já famosa “Ninguém é profeta em sua terra”, a parábola do bom samaritano, pois é uma clara condenação dos fiéis. Quem realmente ajuda o homem ferido na rua é um ateu. O fiel passa ao largo. Outras duas consideradas autênticas são “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” e “É mais difícil um rico se salvar do que um camelo passar pelo fundo de uma agulha”. Também são consideradas autênticas as Bem-aventuranças devido à sua radicalidade.
Outro dos pontos mais delicados e controvertidos da história de Jesus era se ele era ou não Deus. Teólogos modernos, sejam católicos ou protestantes, hoje praticamente concordam que em nenhum momento Jesus se proclama Deus. Ao contrário, ele se chamava de “filho do homem”, que em seu dialeto aramaico significava simplesmente “homem”. Jamais se proclamava Deus. Além disso, no momento de sua morte, quando agonizava na cruz, se queixou a Deus por tê-lo abandonado.
Se tudo isso pode ser importante do ponto de vista puramente histórico, a verdade é que Jesus foi o personagem que mais influência teve na história. Sua revolução ética, sua defesa permanente dos últimos, seu senso de justiça, seus anátemas contra aqueles que desprezam e pisoteiam os mais desvalidos, sua visão sobre a vida e a morte, sua influência não só religiosa, mas secular na vida e na humanidade resistiram intactas nestes mais de dois mil anos.
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Nenhum outro movimento religioso e humanista, seguido hoje por um terço da humanidade, teve tanta influência não só no campo religioso, mas também na cultura e na arte, assim como nos costumes e na política. Afinal, Jesus significa o ideal da humanidade, a esperança de que a morte não acaba na sepultura, que o homem foi criado para a felicidade e não para a dor.
Em nome do cristianismo travaram-se guerras, inquisições e extermínios, mas também milhões de ações em defesa dos últimos e em favor dos direitos humanos.
O Natal afinal nos dá, todos os anos, com a bela lenda do nascimento de Jesus, sentimentos de fraternidade, desejos de afeto, amor pela vida e a esperança de que os sentimentos de vida superem os da morte.
Parece-lhes pouco?
JUAN ARIAS ” EL PAÍS” ( ESPANHA / BRASIL )
Juan Arias é jornalista e escritor, com obras traduzidas em mais de 15 idiomas. É autor de livros como ‘Madalena’, ‘Jesus esse Grande Desconhecido’, ‘José Saramago: o Amor Possível’, entre muitos outros. Trabalha no EL PAÍS desde 1976. Foi correspondente deste jornal no Vaticano e na Itália por quase duas décadas e, desde 1999, vive e escreve no Brasil. É colunista do EL PAÍS no Brasil desde 2013, quando a edição brasileira foi lançada, onde escreve semanalmente.