Há uma onda cada vez maior contra a truculência, a irracionalidade, o anti-cientificismo. Se será suficiente para se contrapor às pautas morais do bolsonarismo, não se sabe. Mas, inegavelmente, se tornou o ponto de disputa entre as forças antibolsonaristas.
Após as eleições de 2020, abriu-se a temporada de conversas com vistas a 2022. São movimentos iniciais, ainda pouco conclusivos, mas que permitem identificar claramente os ensaios de estratégia de cada grupo.
Vamos tentar detalhar grupos e movimentos, com a ressalva de que, mais do que nunca, a política são nuvens que se movem a todo momento, impedindo conclusões taxativas.
Por isso mesmo, o Xadrez visa apenas organizar as ideias, os grupos e os movimentos, para que cada um tire suas conclusões ou dê seus palpites.
O ponto central da disputa é a liderança da frente antibolsonarista entre uma frente de esquerdas em torno do PT, e uma frente de centro-direita, tendo como ator principal o DEM.
Peça 1 – grupos em jogo
Grosso modo, há os seguintes grupos se movimentando:
Os protagonistas
Centro-direita – pela primeira vez, desde a redemocratização, a liderança é assumida pelo DEM, espanando o PSDB, que tinha assumido o protagonismo da direita com ascensão do trio Fernando Henrique Cardoso, José Serra e Aécio Neves. Tem a liderança em ACM Neto, Rodrigo Maia. O PSDB torna-se ator secundário nessa frente. O grande mentor é a liga MMS – Mercado, Mídia, Supremo Tribunal Federal.
Centro-esquerda – uma frente ainda difusa, liderada pelo PT, tendo em Lula a liderança agregadora e juntando partidos menores, como PCdoB.
Ultra-direita – partidos mal organizados, que surgem em 2018, no bojo do fenômeno Bolsonaro.
Os agentes secundários
São partidos ou grupos de partidos que se posicionam em relação aos protagonistas:
Centrão – o histórico Centrão, com a liderança sendo assumida pelo PSD de Gilberto Kassab, tendo o MDB como parte relevante.
PDT/PSB – por tal, entenda-se Ciro Gomes e a base do PSB em Pernambuco, constituindo um grupo independente, negociando espaço junto ao centro-direita.
Peça 2 – as novas ondas que se formam
A pandemia explodiu de vez realidades que estavam escondidas serão peças centrais na formação da frente anti-bolsonarismo, levantando algumas bandeiras civilizatórias.
Há uma onda cada vez maior contra a truculência, a irracionalidade, o anti-cientificismo. Se será suficiente para se contrapor às pautas morais do bolsonarismo, não se sabe. Mas, inegavelmente, se tornou o ponto de disputa entre as forças antibolsonaristas.
- Redução da miséria.
- Preocupação com meio ambiente.
- Combate a toda forma de preconceito.
- Saídas para a crise econômica.
- Bandeiras racionais, em oposição ao fundamentalismo.
Há um processo lentíssimo de revisão dos dogmas econômicos. Mas o enorme atraso da discussão econômica no país impede uma revisão mais rápida de princípios que, desde 2015, jogaram o país em uma recessão infindável.
Por trás das bandeiras, tem que haver políticas públicas que, muitas vezes, colidem com as propostas econômicas de cada grupo. A explicitação das propostas é que irá separar as políticas concretas do mero jogo de marketing.
Vamos identificar, primeiro, as vulnerabilidades de cada grupo.
Peça 3 – as vulnerabilidades dos dois grupos
Do lulismo
A frente da esquerda, até agora, é invertebrada. Tem Lula como referência, mas mostra uma enorme dificuldade em se reinventar. Até agora não mostrou clareza sobre o novo cenário econômico e político, não tem propostas para a renovação das práticas políticas, para maneiras de conseguir aliados na economia real e nas bases sociais, para ampliar o papel dos movimentos.
Sequer entendeu as razões que permitiram o golpe do impeachment. Este, aliás, é o ponto de partida para definir as futuras alianças.
O PT e o lulismo surgiram dentro da concepção do partido-ônibus, abrigando sindicalismo, egressos da luta armada, movimentos sociais, Igreja, movimentos temáticos, como saúde, educação, municipalismo.
Como governo, recorreu a uma estratégia centralizadora, que ampliou radicalmente o isolamento a partir de 2010.
- A centralização foi pensada inicialmente para permitir a consolidação de poder de alguns grupos dentro do próprio PT. Mas como o uso do cachimbo entorta a boca, estendeu-se para todas as práticas de governo. O PT não apenas perdeu a capacidade de dialogar com novos setores sociais, com grupos empresariais e, especialmente, com as instituições, após o fim do segundo governo Lula. Manteve a aliança com os movimentos através de políticas sociais meritórias, mas retirando deles qualquer possibilidade de protagonismo político. Houve um pequeno ensaio com as conferências nacionais, mas que foram abandonadas a partir de 2010.
- O sindicalismo, como peça central de articulação com a economia real.
- Promoção dos campeões nacionais, como instrumento de alianças com as forças econômicas e de financiamento de campanha. Trocaram os fóruns de participação – como o Conselhão e a natimorta Associação Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI) – pelos acordos de gabinete, ampliando o isolamento do governo.
Assisti a última sessão do Conselhão – convocado por Dilma Rousseff depois de muita pressão dos aliados. Na saída, havia um certo alívio dos empresários, achando que o governo deixaria de ser tão hermético. Não houve continuidade. Mesmo em São Paulo, alguns bancos comerciais – que não são tão ideológicos quanto o chamado mercado – buscaram interlocutores visando convencer Lula a assumir a candidatura em 2014, mostrando que o antilulismo não havia penetrado em todos os setores empresariais.
Havia um ódio contra Dilma, estimulado pela mídia. Mas outros ódios, mais viscerais, de autoridades, empresários, desembargadores humilhados pela soberba do governo.
Esse isolamento facilitou enormemente a conspiração articulada pelo MMS e empreendida pelo Centrão com o impeachment e o governo Michel Temer – preparando as bases para a destruição institucional do país.
Ficou fácil, através de dois movimentos apenas.
O primeiro, a estratégia da Lava Jato de destruir a base de apoio econômica do PT, os tais campeões nacionais, poupando o mercado financeiro.
O segundo, do lado de Temer, uma ofensiva ideológica nítida contra os sindicatos, com a aprovação de um conjunto de leis que, na prática, quebrou as pernas do sindicalismo brasileiro.
Quando sobreveio o impeachment e a destruição das políticas sociais, nem os beneficiários saíram às ruas em defesa dos projetos desmontados.
O grande desafio do PT será colar os pedaços desse vaso quebrado. Hoje em dia, há enorme dificuldade em refazer alianças com o empresariado industrial e dificuldade em dialogar com os movimentos sociais.
É para impedir essa reaproximação que o MMS articula as falsas comparações entre lulismo e bolsonarismo, ou o discurso malicioso de que Lula estaria acabado para a política.
Da centro-direita
Há uma tentativa de bom-mocismo, em declarações politicamente corretas em defesa da igualdade, do combate à miséria, do estímulo à educação, da diversidade. Mas esbarra nos interesses objetivos do grupo, de desmonte do Estado, de privatização de todos os serviços públicos, e da consolidação do primado do eficientismo sobre o direito. Aliás, um eficientismo duvidoso de centrar todas as medidas econômicas nos ganhos individuais das corporações, abandonando qualquer veleidade de um projeto sistêmico de desenvolvimento.
Além disso, não tem posição clara em relação a um dos pontos centrais da crise dos direitos humanos: a violência policial. O mundo civilizado discute formas de mudar o modelo de segurança e conter a violência policial, mas a centro-direita não ousa movimentos nessa direção.
Peça 4 – os candidatáveis
Todos esses movimentos têm como forças centrífugas candidatos com potencial eletivo. Nesse campo, apresentam-se os seguintes personagens:
Esquerda
Lula – não necessariamente como candidato, mas como o grande polarizador da frente de esquerda e mentor da candidatura que surgir nesse campo.
Direita
Bolsonaro – candidato à reeleição, líder único da ultradireita.
Centro-direita
A disputa se dá entre Luciano Huck e João Dória Jr. Dória é uma variação da ultradireita bolsonarista. Tem a mesma agressividade em relação às críticas, falta de empatia em relação à miséria e à diversidade, e a mesma deslealdade em relação aos aliados políticos. Suas possibilidades de liderar o bloco são mínimas. O que deixa o espaço aberto para Luciano Huck, um livro em branco, mas disponível para ser escrito pelo mercado.
Outsiders
Ciro Gomes, buscando montar uma frente de centro-esquerda alternativa, visando ganhar espaço junto ao centro-direita. E Sérgio Moro, recolocado em sua posição original: um mero boneco comandado por uma esposa ambiciosa e provinciana, mais preocupada com as benesses imediatas, incapaz de entender as grandes formulações políticas.
Peça 5 – a estratégia do centro-direita com Ciro
A estratégia de cada grupos está bem definida.
Há duas lideranças comprovadas – Lula e Bolsonaro. E duas forças contrárias relevantes – o antibolsonarismo e o antilulismo.
A estratégia do grupo MMS (mercado-mídia-Supremo) consiste em, fundamentalmente, enfraquecer Lula, para se apresentar como o único representante do antibolsonarismo.
Nessa tarefa, recorre a três frentes.
- A primeira, a tentativa de colocar Lula e Bolsonaro nos dois extremos, uma tática que afronta qualquer compromisso com fatos, mostrando a enorme dificuldade da mídia tupiniquim de recuperar os valores jornalísticos.
- A segunda, do lado do STF, o prolongamento das condenações de Lula, através do expediente de postergar o julgamento sobre a isenção de Moro.
- A terceira, a instrumentalização de Ciro Gomes, como uma espécie de cavalo de Tróia das esquerdas.
Ciro tenta entrar na frente trazendo o trunfo da aliança PDT-PSB, com forte penetração no Nordeste. Sem conseguir espaço na frente de centro-esquerda, devido à liderança de Lula, tenta se candidatar a representante do centro-direita com a missão de implodir a centro-esquerda e, por tabela, candidatáveis melhor situados na frente, como Fernando Haddad e Flávio Dino.
Nem se imagine Ciro como desleal, traidor. Ele é apenas o touro bravo na arena. Basta estender uma capa vermelha da promessa vaga de uma candidatura, que ele sai chifrando.
Por inúmeras razões, não há a menor possibilidade de Ciro se tornar o candidato dessa frente:
- Pelas suas virtudes, propostas claras e coerentes, um dos melhores diagnósticos sobre o quadro atual da economia brasileira, mas que colide frontalmente com o cimento ideológico da frente MMS, no qual os dois princípios básicos são a financeirização/globalização absolutas e o fim de qualquer forma de defesa dos direitos do trabalho.
- Pelo temperamento de Ciro, e por sua visão política, acurada e penetrante como a de Mr. Magoo dos desenhos. Ele é incapaz de aceitar qualquer cargo que não seja a de candidato a presidente da República. E, por seu temperamento, nessa frente nenhum presidenciável aceitaria um vice com seu temperamento. Ciro considera que a política é um concurso de meritocracia onde só entram matérias econômicas, não as políticas. De certo modo, sua acuidade econômico-racional é a expressão mais acabada da anti-política, uma versão déspota esclarecido contra o despotismo imbecil de Bolsonaro.
Peça 6 – os caminhos não explorados
Apenas um novo fortalecimento de Bolsonaro poderia quebrar as barreiras, permitindo um pacto efetivo pela redemocratização.
Hoje em dia, há uma discussão internacional passando pelas principais instituições de pesquisa, ONGs, fóruns, instituições multilaterais, sobre os novos caminhos da democracia.
Todos eles passam pelo reconhecimento do papel do Estado, em contraposição à globalização desenfreada dos últimos anos. Mas, dentro do Estado, um aprofundamento da democracia, através da ampliação das formas de participação e de descentralização. Ou seja, a definição de políticas públicas com a participação protagonista dos beneficiados, movimentos sociais, grupos empresariais, associações municipais. Será o caminho para impor a lógica da razão sobre o fundamentalismo moral que ameaça sufocar o Ocidente, tornando a defesa da democracia um valor essencial.
É um longo trabalho de construção social que o Brasil começou a trilhar e que foi interrompida quando um grupo de mistificadores, levantando falsas bandeiras civilizatórias, resolveu “acelerar o processo”, jogando o país nos braços do bolsonarismo.
LUIS NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)