A partir de uma história de sua família, a autora comenta a morte de João Alberto Freitas numa loja do Carrefour, em Porto Alegre (RS). “Apenas mais um cabrito assassinado”, lamenta
Ao contrário dos Amarildos e das Marielles – que ninguém soube, ninguém viu – agora o Brasil inteiro pôde acompanhar (“ao vivo e a cores”) o assassinato de um negro.
E, de quebra, tem também a oportunidade de saber quem é o Presidente da República, legitimamente eleito em 2018 por brancos, pardos e negros: ele se declarou “daltônico”! Enquanto milhares iam às ruas e até um dos donos do Carrefour lamentava e pedia desculpas pelo ocorrido, Jair Bolsonaro mais uma vez lavou as mãos. Como tem lavado as mãos diante do número exponencial de mortos pela Covid-19…
A sorte (ou o azar) nosso é que a máscara caiu neste país de daltônicos, isto é, de gente que não consegue distinguir as cores e que por isso sufragou o Capitão, ele mesmo um bandido há muito vestido de político profissional. Os que nele votaram eram também “daltônicos” porque todos estavam cansados de saber o que o Mito fazia e o que prometida fazer se eleito fosse.
Foi.
Agora, só me resta, como dissidente que fui, bradar que tirem as mãos de meu avô negro, Artur Honorino de Meira, marido de minha avó branca feito talco, a filha de espanhóis, Cecília d’Avila Meira. Porque há muitas maneiras de praticar o racismo e, no Brasil, pratica-se o racismo de variada forma.
Foi assim com meu avô.
Reza a lenda materna, que apaixonada pelo farmacêutico negro que a cortejava, minha avó ousou fugir de casa e com ele se casar. Não sei maiores detalhes, exceto que os pais dela enrolaram as paredes da casa em que viviam com um pano preto, em sinal de luto. Não sei dizer se os dois foram mais ou menos felizes, mas sei que minha avó pariu 6 filhos até que Artur, também chefe local de uma facção política, teve um enfarte fulminante diante da notícia de que seu mais leal “cabo eleitoral” havia bandeado de lado e que seus correligionários seriam derrotados nas urnas.
Detalhes da morte e do que se passou em seguida, deixo para outra hora.
Quero apenas relembrar como se manifestava em relação a ele a família branca de minha avó materna.
Quando o pai morreu, mamãe, também Cecília, tinha apenas 2 anos de idade. Era a caçula e talvez por isso, certamente criança mimada pelos pais que tinham muitas posses: a melhor farmácia local (diziam), nos anos 20 do século passado, e o “Magnífico Hotel” de Caratinga. Quando minha avó, perdoada pelos pais ia à casa deles levando pela mão minha mãe pequena – meu avô ficava em casa. Não o recebiam os progenitores da Cecília, todos distintos portadores de sangue espanhol. Em casa deles, referiam-se a meu avô como “cabrito” e mamãe, até uns 7 anos de idade, supôs, por esta razão, que fosse filha de um animal. Isso a marcou pela vida afora… Humilde, sempre se deixou dominar por meu pai, bem ao estilo das mulheres brasileiras de muitas épocas.
Artur Honorino de Meira, por ser negro, era chamado de “cabrito” pela família de minha avó materna, por causa do cabelo pixaim.
João Alberto Silveira Freitas foi morto a socos e pancadas na quinta, 19, quando fazia compras com sua mulher num Carrefour de Porto Alegre. Apenas mais um cabrito assassinado.
E o Presidente do Brasil só comentou: “Sou daltônico”.
SANDRA STARLING ” BLOG OS DIVERGENTES” ( BRASIL)