A BOATE DO MESSIAS

O vexaminoso discurso de Bolsonaro na Cúpula dos Brics; chegou a ser engraçada sua rápida identificação com Putin

No começo dos anos 60, quando a TV Tupi ainda era a maior rede de televisão do país (a rede Globo só entrou no ar em 1965 e a partir daí foi incensada pelo regime militar, que apoiou fervorosamente até meados dos anos 70), havia um programa humorístico chamado “A Boate do Ali Babá”, no qual os personagens da política eram satirizados. Carlos Lacerda, representado pelo falecido ator baiano Mário Tupinambá (depois conhecido como o esquentado “Dr. Camarão é a mãe”), era frequentador assíduo da ‘boate’. Tinha lá meus 11 anos e não esqueço da cena, tudo em preto e branco, como era na época:
O político entra na “boate” cercado por ‘jornalistas’ que começam a fazer perguntas. “Como o senhor explica a falta de água”? E o ‘Lacerda’, eloquente:
-Se falta água, de quem é a culpa? E emenda: “É DO GOVEERRNO!”.

Mais uma pergunta, desta vez pela falta de vagas nas escolas municipais/estaduais (com a mudança da capital para Brasília, o Rio de Janeiro virou a cidade/estado da Guanabara). E a resposta: A culpa é do GOVEERRNO!. Na terceira pergunta, quando o Lacerda vai soltar mais uma vez o refrão, um dos assessores cochicha baixinho ao seu ouvido , “mas agora o senhor é o governador”. E aí ele explode: Oh diabo, chega de oposição!”.

Lacerda fazia oposição a Getúlio Vargas desde 1931, primeiro quando era vinculado ao Partido Comunista Brasileiro, com o qual rompeu em 1939, e numa quinada de 180 graus ingressou, como deputado federal, na direitista e conservadora UDN, que passou a ser sua fortaleza para disparar contra Getúlio de sua eleição em 1950 até o suicídio em 24 de agosto de 1954. Seguiu fazendo oposição a JK, a Jânio Quadros (embora este tenha sido eleito pela UDN) e ao vice, João Goulart, líder populista de centro esquerda, que assumira o governo parlamentarista, solução para o impasse gerado pela resistência militar à posse de Jango após a renúncia de JQ. Fora eleito o 1º governador da Guanabara em 1960, um ano depois de Fidel Castro tomar o poder de Fulgêncio Batista, em Cuba. Apoiado pelos Estados Unidos como a principal liderança política de direita do Brasil (os EUA estavam no auge da “Guerra Fria” com a União Soviética, que culminou com a crise dos mísseis em Cuba), foi um dos líderes políticos do golpe militar de 1964.

Governou o Rio de 5 de dezembro de 1960 a 11 de outubro de 1965. Já incompatibilizado com os militares, que adiaram as eleições presidenciais de 1965, nas quais pretendia concorrer contra JK (e canceladas pelo regime militar que prorrogou o mandato tampão do marechal Castelo Branco, que expiraria em 31 de janeiro de 1966 até 15 de março de 1967), deixou o cargo faltando pouco mais de dois meses de mandato para fazer oposição ao regime militar. Em outro giro de 180 graus, após se reconciliar com JK pela volta da democracia, os dois se uniram a João Goulart (então no exílio, no Uruguai), na Frente Ampla pela redemocratização e a volta das eleições diretas. JK e Lacerda foram cassados pelo regime militar.

Acredito, caro leitor, que você já entendeu que estou tentando fazer uma analogia com o presidente Jair Bolsonaro. Embora tenha sido eleito presidente da República, com 57,797 milhões de votos, Jair Bolsonaro nunca teve a estatura política de Carlos Frederico Werneck de Lacerda. A única comparação cabível entre os dois seria o fato de ambos serem “metamorfoses ambulantes”. Jair Messias Bolsonaro foi um militar punido por indisciplina no Exército, em 1986, no governo Sarney, após escrever artigo na revista “Veja” criticando os “baixos soldos” dos militares. O fato lhe deu popularidade quando passou à reserva com a patente de capitão e foi eleito deputado federal pelo Rio de Janeiro, em 1989, ano de nova radicalização do país com a eleição de Fernando Collor contra Lula. Sempre na oposição, defendia os excessos do regime militar, como a tortura e execução de presos políticos. A extensão do aumento dos soldos para policiais militares e bombeiros (base das milícias) passou a ser sua base eleitoral nas campanhas para a Câmara dos Deputados.

Jair Messias Bolsonaro virou presidente sem estar preparado para o cargo (como já confessou, no ano passado, repetindo a autocrítica de Collor sobre sua eleição em 1989 e a de Lula (já presidente), sobre a sua falta de experiência política para assumir o posto presidencial na primeira eleição direta do país na redemocratização, em 1989). De 1989 a 2018 muita coisa mudou no mundo.

O muro de Berlim caiu em 9 de novembro de 1989 e deu início à redemocratização dos satélites soviéticos na Europa Oriental (menos de uma semana depois houve o 1º turno, do qual saíram vencedores Collor, do PRN, e Lula, do PT, por diferença de 454 mil votos sobre Leonel Brizola, do PDT, com o tema sendo ignorado também no 2º turno, em 17 de dezembro de 1989). No mesmo ano, em janeiro, acabava o 2º governo do republicano Ronald Reagan (sucedido na presidência dos Estados Unidos por George H. W Bush, seu ex-vice e ex-diretor da CIA), que fizera uma forte dobradinha liberal com Margaret Tatcher no Reino Unido (1975-1990). Ambos fustigaram a União Soviética com o desafio de uma nova corrida armamentista. As finanças soviéticas já estavam em frangalhos e a qualidade de vida piorava quando Mikhail Gorbachev tentou abrir o regime com a “glasnost” e a economia com a “perestroika”. Saiu o tratado EUA-URSS para redução das armas nucleares.

Uma das formas de dividir o poder no mundo comunista fora o reatamento das relações diplomáticas dos EUA com a China no governo Nixon, em 1971 (o ponto de partida para a abertura do país a investimentos estrangeiros, sobretudo de empresas americanas, japonesas, coreanas e europeias). A União Soviética ruiu em 26 de dezembro de 1991, e Vladimir Putin, um ex-quadro da famigerada KGB soviética e que comandou as forças de segurança russas nos anos 90, assumiu o poder em 1999 e não largou mais. Tornou-se o virtual czar (ditador) da Rússia, alternando as funções de presidente com a de primeiro-ministro (está presidente pela 3ª vez num mandato de sete anos, após exercer pela 2ª vez o cargo de primeiro-ministro).

Só o chanceler Ernesto Araújo e os filhos de Bolsonaro, influenciados, sobretudo pelo filho 03, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), aquele que sonhava ser embaixador do Brasil nos Estados Unidos para bater continência a Donald Trump, para quem já fazia campanha em 2019 ostentando um boné da campanha de reeleição em 2020, com as credenciais de falar inglês e saber “fritar” (sic) hambúrgueres, parecem não terem se dado conta. Filiado à CPAC, sigla em inglês para Conferência da Ação Política Conservadora, da qual se arvora um dos líderes no Brasil, o 03 ganhou como prêmio de consolação o cargo de líder da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados.

De lá, Eduardo Bolsonaro, em estreita articulação com Ernesto Araújo e ao arrepio dos grandes quadros do Itamaraty, exibe argumentos disparatados, cabíveis no radicalismo e na ignorância do mundo bipolar dos tempos da “Guerra Fria”, agora tendo como inimiga a China, alvo de Donald Trump, pela ameaça da perda de hegemonia econômica americana. Ergue trincheiras em defesa da reeleição de Trump. Ecoa as afirmações de fraudes eleitorais, desacreditadas no próprio território americano. E dispara bobagens sobre a Amazônia.

Macaque in the trees
Eduardo Bolsonaro tentando provar o crime de receptação de madeira ilegal por outros países (Foto: Twitter/Reprodução)

A última das quais foi um vídeo, repetido pelo pai e tema do vexaminoso discurso de Bolsonaro na Cúpula dos Brics, perante os mandatários da China, Xi Jinping, da Rússia, Vladimir Putin, da Índia, Norendra Modi, e da África do Sul, Cyril Ramaphosa, ameaçando divulgar “a lista dos países que compram madeira ilegal da Amazônia”. Diante do vexame de ter, posteriormente, ficado claro o óbvio – que países não compram nada, mas apenas empresas privadas (ou estatais, no caso da China) compram madeiras e, se são ilegais, a exportação ocorre por falhas brasileiras, sendo que o maior consumidor das madeiras da Amazônia é o próprio Brasil, especialmente São Paulo, que supera em duas vezes a fatia de 20% exportada – Bolsonaro desistiu de divulgar a lista. Menos mal. O crime de receptação não exime o crime original da mercadoria roubada. Mas o 03 devia corrigir o vídeo onde United Kingdom (ou Reino Unido, vale dizer, Inglaterra), está dividido em dois por uma vírgula criando dois países: o United e o Kingdom. Assim, aumentaria a lista dos compradores…

Chegou a ser engraçada a rápida identificação de Bolsonaro com Putin. Teria sido estimulado por Donald Trump (Putin e Bolsonaro ainda não cumprimentaram o candidato do Partido Democrata, Joe Biden, pela vitória por 306 a 232 no Colégio Eleitoral e 6 milhões de votos de diferença)? Estaria buscando pólvora com Putin para ‘enfrentar’ as tropas de Biden?

Enquanto o mundo se une pela retomada das conversações sobre as mudanças climáticas, com a volta dos Estados Unidos de Joe Biden ao Acordo de Paris, e pelo combate ao novo coronavírus (as pesquisas por vacinas eficazes contra a covid-19 mobilizaram milhares de cientistas de farmacêuticas privadas e de centros de pesquisa de dezenas de nações), Bolsonaro lança o Brasil na situação de pária ambiental.

Com o país registrando 6 milhões de casos de contágios, com quase 170 mil mortes, e ávido pelo avanço das vacinas, o governo federal, em vez de coordenar, fica perdendo tempo com picuinhas políticas e decisões ‘burrocráticas’ estúpidas que não duram 24 horas. Ainda assim, na cúpula, o presidente brasileiro não se furtou a dar uma estocada em Xi Jinping (líder do país que embora tenha sido a origem do vírus, tem baixos índices oficiais de contagem, produz os insumos das novas vacinas e é o maior comprador dos produtos brasileiros). Haveria tempo de voltar atrás e não ampliar o vexame no Acordo de Paris e na gestão da pandemia. Mas Bolsonaro, com a assessoria de Ernesto Araújo, parece mesmo um caso perdido. Voltou a disparar sandices, sábado, na reunião virtual do G-20, quando disse que o seu governo agiu certo na pandemia. Vergonha alheia…

O resultado das eleições municipais no 1º turno, quando o cacife eleitoral de 2018 se desidratou, assim como o do PT, mostrou que o delírio do clã Bolsonaro e de seus seguidores não bate com as necessidades do cidadão-eleitor-contribuinte. Que tal descer das nuvens conspiratórias e cair na real?

GILBERTO DE MENEZES CÔRTES ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)

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