Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se eu deliro… ou se é verdade
Tanto horror perante os céus?!… (…)
Existe um povo que a bandeira empresta
P’ra cobrir tanta infâmia e cobardia!…
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!… (…)
Poema Navio Negreiro – Castro Alves, publicado em 1869.
Não estamos em 1869. Não estamos mais vivendo a escravatura. Mas este é um passado que não passa, que nos marcou e se impregnou na alma brasileira ditando comportamentos brancos, discriminatórios. O apartheid é a nossa marca.
Por que tanto horror? Por mais que saibamos do racismo estrutural, por mais que o nosso cotidiano seja povoado de histórias de discriminação, por mais que tenhamos consciência da opressão branca que atravessa séculos a nos envergonhar e a alargar o fosso das diferenças sociais, não é possível mais aceitar cenas como a da morte de João Alberto Silveira Freitas, de 40 anos, brutalmente espancado até a morte por dois seguranças na saída de um supermercado da rede Carrefour, no bairro Passo D’Areia, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. O caso ocorrido na noite desta quinta-feira (19) deve e precisa ser o limite entre o antes e o depois da barbárie.
Que seja João Alberto o nosso George Floyd, símbolo da luta americana pelo fim do racismo. Hoje, todos nós repetimos as suas últimas palavras: “não consigo respirar”. Estamos sem ar, diante de tamanha brutalidade. Estamos sufocados de horror com as cenas dantescas, assistidas na véspera de um dia de significado vital para a sociedade brasileira, o Dia da Consciência Negra. A data, que deveria marcar discussão sobre a forma como estamos matando a nossa população jovem, negra, produtiva, talentosa e sem oportunidades, precisa entrar para o calendário como o último dia da violência extrema contra os pretos desse país. Que os gritos de dor de João Alberto assombrem de vez as nossas vidas.
Há anos agimos pelos mantras: aos negros, a senzala. Aos negros, “o seu lugar”. Hoje, em 2020, precisamos fazer valer que o lugar dos negros é na universidade, nos parlamentos, nas cátedras, no seu lugar de homens e mulheres donos dos seus destinos. Ao nosso lado, na luta por direitos e para tirar o Brasil desse retrocesso, em que um estado inteiro, às escuras, aguarda pelo descaso de autoridades. O Amapá somos todos nós, mergulhados nas trevas da escuridão da alma desse dirigente insano, obtuso, tosco, ignorante. Ele ignora, por exemplo, que no Brasil os negros são as vítimas em 75% dos casos de morte em ações policiais, quando nos Estados Unidos, sinônimo de país racista, esse percentual é de 23%. E se não ignora, pouco se importa, ou talvez aprove. Os pretos são 56% da nossa população. Pretos somos todos nós. Estamos de luto. Não pode haver alegria em um país que mata os pais dos seus filhos. Não pode haver paz em um Brasil que mata o seu futuro.
(Gravura de Debret) – A convite da Coroa Portuguesa, o francês Jean-Baptiste Debret pintou “Aplicação do Castigo do Açoite” no século 19, obra que representa sessões de tortura aplicadas aos negros durante a escravidão no Brasil.
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