OS TEMPOS QUE VIRÃO E OS VENTOS QUE SOPRARÃO

CHARGE DE RODRIGO CORTES

Não ouviremos mais a voz do ministro Celso de Mello nas sessões do STF, especialmente firme quando  ele exaltava o primado da Constituição e da democracia,  a sujeição de todos ao rigor da lei e  a  independência do Judiciário. Nesta quinta-feira ele despediu-se da corte onde passou 31 anos, com  o longo voto em defesa de sua determinação para que o presidente da República preste depoimento presdencial sobre o caso Moro.  

A sessão ainda transcorre quando escrevo mas o que quero destacar são as palavras graves que disse na quarta-feira, ao receber homenagem dos colegas em sessão virtual. Elas contêm uma profecia preocupante,  uma crítica que pode conter uma queixa sutil e uma grave advertência sobre o que estamos assistindo neste momento:  a falsa transfiguração de Jair Bolsonaro, de presidente inclinado ao golpe e à tirania,  em governante integrado ao jogo político e amistoso com os outros poderes – cujo fechamento mobilizou apoiadores em atos a que compareceu.

Disse Mello:

“Quero reafirmar uma vez mais minha inabalável fé na integridade e na independência do Supremo Tribunal Federal, por mais desafiadores, por mais difíceis e por mais nebulosos que possam ser os tempos que virão e os ventos que soprarão. “

Esta foi a profecia.  Um magistrado não é uma pitonisa mas Celso de Mello viveu o suficiente para levarmos em conta o que ele enxerga no horizonte: tempos dificeis, desafiadores e nebulosos, açoitados por ventos fortes. Mais adiante especularei sobre estes tempos que ainda virão. Sigamos com a fala de Mello, que disse ainda:

“Absolutamente convencido de que os magistrados deste alto tribunal, por suas qualidades e atributos, sempre estarão, como sempre estiveram, à altura das melhores e das mais dignas tradições históricas da Suprema Corte brasileira, especialmente em delicado momento de nossa vida institucional, no qual se ignoram os ritos do poder, e em que altas autoridades da República, por ignorarem que nenhum poder é ilimitado e absoluto, incidem em perigosos ensaios de cooptação de instituições republicanas cuja atuação só se pode ter por legitima quando preservado o grau de autonomia que a Constituição lhes assegura”.

Quando ele se refere ao triste presente  “no qual se ignoram os ritos do poder”, pode estar se referindo à vulgaridade com que o poder vem sendo exercido, não só por Bolsonaro, insuperável em sua torpeza e grosseria, mas também por outros atores. Posso estar errada, mas enxergo aí uma queixa muito sutil.  Os “ritos do poder” foram inteiramente desconsiderados no processo de sua subsituição no STF, por um presidente que não esperou a cadeira ficar livre para indicar o substituto. Mais ainda, para enviar ao Senado e fazer publicar no Diario Oficial uma indicação relativa a uma cadeira que ainda estava por vagar. Nunca se viu isso. Um ato de ofício de um governante deve operar com as realidades já criadas, não com aquelas que ainda vão acontecer. Bolsonaro foi mesquinho e grosseiro com o ministro que por mais tempo serviu à mais alta corte do país, emprestando-lhe seriedade, erudição e espírito público.  Pode não ter sido esta a intenção de Celso de Mello ao falar dos que ignoram os  “ritos do poder”  mas, de todo modo,  vale o registro da consideração mínima que lhe foi negada por Bolsonaro, por ressentimento puro.

Mas do denso parágrafo transcrito acima, a afirmação mais certeira, e que carrega advertência grave sobre o que está acontecendo sob nossos olhos, é a que se refere a altas autoridades da República que, acreditando ter poder absoluto,  “incidem em perigosos ensaios de cooptação de instituições republicanas “.

Quem está tentando cooptar as instituições é Bolsonaro. Ele já capturou o Ministério Público Federal  com a nomeação de Augusto Aras para procurador-geral da República. Está cooptando e neutralizando o Congresso (que, é justo dizer, até aqui ajudou a contê-lo) através da  aliança fisiológica com  o Centrão, apesar do discurso de  campanha anti-sistema e das juras de que implantaria uma “nova política”.  Está tentando capturar ou enfiar cunhas neutralizantes no Supremo,  que o conteve com mais energia  e decisão nos últimos tempos. Ele o faz com a indicação de um nome “totalmente alinhado” para o lugar de Celso,  com a atração de Dias Toffoli e Gilmar Mendes para a sagração do indicado, juntamente com o presidente do Senado, com a política de abraços e tapinhas nas costas, como vimos fazer com Toffoli no final de semana.

Bolsonaro começou a fingir-se de “convertido” a partir da prisão de Queiroz, o operador da família, e do avanço de inquéritos do STF sobre fake news, ameaças a ministros e atos antidemocráticos, que podem chegar a seus filhos. Em seguida,  passou a faturar o auxilio emergencial, que foi obra do Congresso e não sua. O auxílio fez subir sua popularidade e isso contribuiu para a sedução do Centrão, agora engajado em sua reeleição.

Iludem-se os que acreditam na autenticidade da convrersão de Bolsonaro ao jogo político e à observância das regras democráticas.  Os que acreditam ter ele arquivado os projetos autoritários para render-se ao presidencialismo de coalizão. Que trocará a disposição permanente para o confronto por uma postura de diálogo e boa convivência.

Não. Em essência ele continua mesmo. Está adiando as medidas fiscais impopulares para ” varrer o PT” do Nordeste. Continua tratando adversários como inimigos, e continuará a persegui-los.  Mantém a política ambiental tenebrosa que tanto mal vem causando ao Brasil, assim como a política externa subalterna aos Estados Unidos.  Mantém Guedes e sua política econômica errática, que espanta investidores, gera desemprego e pobreza.

Bolsonaro não rompeu com sua base mais radical. Contrariou-a sabendo que ela não tem alternativa, até porque a que existia, Moro, ele destruiu.  Continua mentindo descaradamente.  Continua negando as verdades mais elementares quando não quer se olhar no espelho,  para ver, por exemplo, o retrato desastroso dos efeitos da pandemia de Covid19 entre nós. Mas está forte como nunca esteve, aprendou a interpretar os signos do poder e está finalmente à vontade no papel de presidente. Entendeu que não precisa de dizer “acabou, porra” para ser temido.

Quando ele tiver dominado todas as instituições,  voltará com tudo para realizar seu projeto autoritário,especialmente se  for reeleito em 2022. Ou também se não for reeleito, pois como já disse em 2018, e vem dizendo agora Donald Trump, se o resultado for outro, é porque a eleição foi roubada.

Não nos iludamos. A democracia brasileira corre mais riscos com Bolsonaro representando o domesticado do que nos idos de abril e maio, quando seus seguidores diziam em faixas na frente do Planalto: “fecha tudo, presidente”. Eles nunca desistiram disso.

TEREZA CRUVINEL ” BLOG BRASIL 247″ ( BRASIL)

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