BANDEIRA DO GRAN LIBAN
Bonaparte chegou ao poder com a Revolução Francesa, mas foi coroado Imperador na Catedral de Notre-Dame. Proclamou o filho, Napoleão II, Rei de Roma, e fez soberano dois de seus irmãos na Espanha e na Holanda. Também a Bélgica, por sua influência, se tornaria independente e, naturalmente, uma monarquia. Sua paixão pelo Cairo transformaria a História do país e de muitos libaneses – meus ancestrais.
Maior dos grandes personagens do século XIX, o corso Napoleão Bonaparte, embora ascendesse ao poder no fervor republicano da Revolução Francesa, de 1789, possuía, curiosamente, um apreço muito especial pelas cabeças coroadas. Ele mesmo se autoproclamaria Imperador da França, em 1804, na parisiense Catedral de Notre-Dame – como faziam as casas dinásticas gaulesas dos Bourbon e dos Orléans. Ao conquistar a Península Itálica, em 1805, criaria o Reino de Itália, no qual o seu filho, Napoleão II (1811 – 1832), viria a ser proclamado Rei de Roma.
Outro exemplo de seu monarquismo explícito ocorreu quando subjugou, em 1807, a Espanha. Ele não transformaria em república a nação ibérica. Muito pelo contrário. Despachou para Madri, no ano seguinte, seu irmão mais velho, Joseph Bonaparte (1768 – 1844), como Rei de Espanha e das Índias, ou seja, das Américas e dos territórios asiáticos, entre os quais, as Filipinas. Permaneceu Joseph no trono por cinco anos – até ser obrigado a abdicar devido a um levante popular.
Antes mesmo de se impor aos Bourbon madrilenhos, Napoleão havia aplastado, em 1806, a república holandesa, de inspiração calvinista, criando o Reino Católico dos Países Baixos, cujo primeiro monarca foi outro de seus irmãos, Luis Bonaparte I (1778 – 1846). O Reino da Holanda, implantado pelos Bonaparte, perdura até os nossos dias. E influenciou a independência belga, em 1830, com outra monarquia católica – ainda existente. A Bélgica era, até então, um território reivindicado, respectivamente, pela França e a Holanda. O litígio foi superado por determinação de Luis Felipe I de França (1773 – 1850), o Rei Cidadão, que subiu ao poder pelo restauração da Coroa da Casa de Orléans. O reino belga mantém até hoje, como idiomas oficiais, o francês e o holandês.
Emergem inúmeros personagens que participaram das campanhas épicas e da derrocada napoleônica. Um deles chama a atenção de muitos historiadores, o cristão Ortodoxo, Roustan Raza (1783 – 1845), o legendário Mameluk Roustan de Bonaparte, de pais naturais da Armênia, nascido em Tbilisi, capital da caucasiana Geórgia, chefe da guarda pessoal do Empereur francês – e meu tetravô. Teria sido o mítico Roustan, quem conseguiria, em 1812, retirar Napoleão da Rússia.
O georgiano, com sua indumentária oriental, e o comandante, disfarçado em trajes femininos. Fugiriam para a França, onde, pouco depois, o Imperador seria deposto. Roustan teve uma vida atribulada. Foi raptado, aos 13 anos, na Geórgia, por mercadores maometanos e vendido como escravo no Cairo – que vivia as últimas décadas do califado Fatímida dos Mamelucos.
Dois anos depois, em 1798, quando Napoleão conquistou o Egito, foi presenteado pelo sheik cairota com o jovem escravo de então 15 anos. Roustan permaneceria até 1814 à frente da guarda pessoal do destemido corso. Romperiam, posteriormente, porém, Roustan moraria até a morte na cidade francesa de Dourdan, a 40 quilômetros de Paris, casado com uma italiana que conhecera na campanha no Bel Paese. Foi enterrado no pequeno cemitério da cidade, que recebe, em todas as estações do ano, admiradores de diversas partes do planeta.
Eu mesmo lá estive, acompanhado de minha esposa, Dona Andrea Wolffenbüttel, numa chuvosa manhã de outono, em novembro de 2003. A expedição de Napoleão ao Cairo marcaria para sempre sua trajetória. Encantou-se, profundamente, pela cultura do Egito, com suas milenares pirâmides e esfinges. Enviaria ao Cairo artistas e pesquisadores e levaria, para a França, preciosas peças, especialmente, o obelisco que adorna a monumental Place de la Concorde. Napoleão jogaria nova luz sobre o Império dos Faraós. Inspiraria o surgimento do Orientalismo nas letras francesas e o despertar, no século XX, do Nacionalismo Árabe, formulado pelo intelectual sírio Michel Aflak (1910 – 1989), cristão Ortodoxo damasceno, e que teve seu auge no Egito nasserista das décadas de 1950 e 1960.
Marcaria igualmente minha história familiar a épica passagem de Bonaparte pelo Egito. Um dos filhos do lendário Roustan de Bonaparte, François Roustan, trocaria Dourdan pelo Cairo e ali se casaria com uma libanesa, minha trisavó, da família Ackawi – católicos melquitas de Zahlè. Sua neta, Marie Ackawi Roustan, minha avó, desposaria, por sua vez, o zahliota Aziz Rabay, meu avô materno, em 1925, na Igreja de Santa Barbara, no tradicionalíssimo quartier do mesmo nome na região céntrica de nossa amada Zahlè.
Aziz era filho de Youssef Rabay, de origem húngara, e da libanesa Saada Dwailibi. Marie e Aziz passaram a viver entre Beit Rabay, mansão zahliota até hoje de nossa família, e o Brasil – onde os Rabay possuíam comércio em Recife e Salvador. Minha mãe, filha de Aziz e Marie, nasceria em Recife e ainda muito criança seria levada para Zahlè. Estudou no Collège Saint Joseph, dos lazaristas, em Antoura, ao Norte de Beirute, e, mais tarde, ao mudar-se ao Cairo, no Collège Sacré-Coeur, no bairro de Heliópolis, no qual viviam os Roustan.
Ambas são instituições católicas de ensino. Nasci em Salvador, onde minha mãe havia se casado, em 1948, com o joalheiro espanhol da região da Galícia, Albino Castro, de quem, orgulhosamente, herdei o nome. Cresci em meio ao universo cosmopolita de meus pais, marcadamente à mesa, na qual conviviam, em harmonia, todos os anos de minha infância e adolescência, o delicioso Cocido Madrileño, com muitos garbanzos (grãos-de-bico), e a Empanada Gallega, dos Castro, o Quibe zahliota, frito, assado, cru ou na coalhada, dos Rabay, a divina sauce de maionese dos Roustan, e, à Semana Santa, o baianíssimo e sincretista Vatapá – empapado de azeite de dendê. O que não era nada comum à época. Principalmente na capital baiana.
Fui educado sob a influência de um universalismo que me incentivaria a estudar História. Aprendi a amar todos os povos e continentes, mesmo à distância, desde pequeno, neste lado do Atlântico. Tornei-me, assim, estudioso dos Cristãos do Oriente e de seus protetores, a França, inspiradora do Petit Liban, do século XIX, e, há 100 anos, do amado Grand Liban. Seguiria para a Europa nos anos 1970, como correspondente de O Globo – pouco depois da explosão da última guerra civil libanesa (1975 – 1990). Fui enviado, inicialmente, para Madri e, depois, para Roma, onde me tornaria também ‘vaticanista’ e, em 1986, ingressaria na Telemontecarlo, iniciando minha trajetória na televisão.
Estive em 1982 por três meses em Beirute, capital do Líbano, de julho a setembro, durante o insuportável verão do Oriente Médio, cobrindo um dos momentos dramáticos do conflito. O Líbano, dos Rabay, Ackawi e Dwailibi, bem como de nossos primos Skaff, Hariz e Armani, tinha se tornado um microcosmo do quebra-cabeça geopolítico do planeta. Palco da intransigência religiosa e dos acertos de contas da Guerra Fria – que, embora não imaginássemos, começava a entrar, inexoravelmente, em declínio. Participavam do confronto diversas forças estrangeiras. Estavam ao lado dos muçulmanos cerca de 300 mil refugiados palestinos, sob as ordens do cairota Yasser Arafat (1929 – 2004), bem como guarnições ‘voluntárias’ provenientes do Iraque, Egito, Líbia e europeus vinculados, por exemplo, às organizações terroristas do grupo Baader-Meinhof, da outrora Alemanha Ocidental, e às Brigate Rosse (Brigadas Vermelhas), da Itália.
Também estavam nos campos de batalhas os exércitos de duas potências vizinhas – a Síria, espécie à época de ‘linha-auxiliar’ dos extremistas palestinos vinculados a Moscou, e Israel, que acabara de invadir o Líbano, numa ofensiva batizada, ironicamente, de ‘Paz na Galileia’. Os embates aconteciam em torno ao Bois de Beyrouth. Dentro da milenar metrópole libanesa, quase completamente destroçada, existiam apenas duas passagens, ao longo de sua Linha Verde, que ligavam, quando havia um eventual ‘cessar fogo’, a região islâmica, onde estava o quartel-general da OLP (Organização para a Libertação da Palestina), à Rue Fakani, na central Hamra, e o extenso bairro cristão de Achrafieh.
O principal cruzamento era a Passage du Musée, grafado assim em francês, exatamente junto ao esplêndido Museu Sursock, de Arte Contemporânea, criado pela notável família Cristã Ortodoxa de mesmo sobrenome, e a pouquíssimos metros do monumental Museu Nacional, de Arte Antiga, que reúne a própria História da nação. A outra travessia era a da Gallerie Semaan – próxima à estrada de Beirute a Damasco, capital da Síria. Chamava-me especialmente atenção, sempre que transpunha a Linha Verde, há 38 anos, ver o Sursock intacto em meio ao cenário desolador da guerra. Voltei a Beirute duas vezes, durante o conflito, e, já em dezembro de 1990, com o final dos embates, pude constatar que os museus Sursock e Nacional continuavam preservados e eram motivo de orgulho para todos os contendores.
E, justamente por isso, fiquei ainda mais chocado com as devastadoras explosões em Beirute na tarde de quatro de agosto último – destruindo bairros inteiros que haviam sido parcialmente preservados nos dramáticos 15 anos de guerra civil. Atingindo, inclusive, o Sursock. Comoção que despertou novamente a solidariedade da França, demonstrada com a visita do Presidente Emmanuel Macron, dois dias depois, ao local da tragédia. A pequena pátria dos belíssimos cedros, no Mediterrâneo Oriental, espremida entre Síria e Israel, com pouco menos de sete milhões de habitantes, foi a nação a enviar ao Brasil, proporcionalmente, população mais numerosa do que Itália, Espanha, Alemanha, Japão e, quiçá, o próprio colonizador Portugal.
Seus imigrantes, habilidosos comerciantes, percorreram, como mascates, todos os estados brasileiros, em lombo de burro, vendendo bugigangas de porta em porta, criando, na prática, o nosso mercado interno. Estão nas 27 unidades federativas e, na maioria delas, um de seus descendentes, quase sempre maronitas, já foi eleito Governador. Sendo que o paulista Michel Temer, alcançou a Presidência da República. Muitos acreditam que, dezenas de séculos atrás, os fenícios, ancestrais dos libaneses, teriam descoberto o Novo Mundo, atravessando o Atlântico com seus velozes barcos à vela, deixando, no alto da Pedra da Gávea, no Rio de Janeiro, inscrições em sua língua semítica. Mas, quanto a isto, não há constatação científica.
Existe, sim, comprovação que o Paço de São Cristóvão, onde viveu a Família Imperial portuguesa, quando, em 1808, transferiu-se para o Brasil, foi presente de um próspero comerciante libanês no Rio de Janeiro, Antún Elias Dibb, ao então Príncipe Regente Dom João VI (1767 – 1826) – segundo relata em diversos ensaios o mais erudito dos intelectuais libaneses no Brasil do século passado, o escritor Mansur Challita (1919 – 2013), de família católica maronita, ex-Embaixador da Liga Árabe em Brasília e tradutor do islâmico Alcorão para o idioma de Luis de Camões (1524 – 1580).
Nasceriam no Solar de São Cristóvão, presenteado por Dibb, a futura Rainha de Portugal, Dona Maria II (1819 – 1853), A Educadora, e o Imperador do Brasil, Dom Pedro II (1825 – 1891), O Magnânimo – ambos filhos do Imperador Dom Pedro I (1798 – 1834) e da Imperatriz Dona Leopoldina (1797 – 1826), pertencente à dinastia vienense dos Habsburgo. Monarca generoso, conforme seu epíteto, Dom Pedro II (1825 – 1891) abriria os portos brasileiros à imigração de milhares de cristãos do martirizado País dos Cedros, no final do século XIX, após sua memorável visita à Terra Santa, em 1876, quando conheceu Beirute e o bíblico Monte Líbano, comovendo-se, sobretudo, com o calvário dos maronitas – seguidores do monge católico do século IV, São Maron, que tinham resistido ao cerco dos exércitos islamitas por quase 800 anos, sem renegar a fé, entrincheirados nas soberbas montanhas nevadas. Base do histórico Petit Liban e alicerce do Grand Liban – atual Líbano. Uma criação dos homens livres libaneses sob inspiração da França. Síntese de minha própria trajetória familiar.
ALBINO CASTRO RABAY ” PORTUGAL EM FOCO” ( BRASIL / PORTUGAL)
Albino Castro Rabay é jornalista e historiador