Estes 70 anos da TV no Brasil possuem marcas inesquecíveis para a geração que amadureceu nesse período. Mas nos artigos, nas retrospectivas, o que se mostra como da maior importância é o mais recente. E assim se esquece e se perde a qualidade artística anterior, como se o mais novo fosse um estágio superior, porque mais “moderno”. No entanto, em arte o mais novo não é o melhor e mais complexo, diferente do que ocorre na ciência. Desse modo terminam por esquecer que na televisão brasileira, em um dos seus pontos mais altos, esteve A Família Trapo. E nela, brilhava a estrela máxima de Ronald Golias. Quanta coincidência nas datas, ainda que fora do ar e do programado.
Nesse domingo 27 de setembro, faz 15 anos que o grande humorista Ronald Golias não se encontra mais com a gente. Os mais jovens não sabem, o ensino nas escolas desconhece a história, naquele sentido mais básico de fazer uma continuidade humana através do tempo. Então os mais jovens perdem a graça do que foi um comediante, um ator magnífico, nascido e criado no Brasil. Daí que bem merece a recuperação do que publiquei quando Golias nos disse “vou ali” e não voltou mais, há 15 anos.
Permitam o que pode parecer um exagero: Ronald Golias foi o maior ator cômico do Brasil. Digamos de outra maneira: se o ator cômico é uma categoria mais alta que o ator dramático, digamos então esta consequência singela: Ronald Golias foi o maior ator do Brasil.
A prova, se prova há em terreno inseguro, a prova documental do que afirmamos seria o programa A Família Trapo, de 1967 a 1971. Para desgraça nossa, no entanto, toda a série, com exceção de raros minutos, sumiu no fogo e no incêndio da TV Record. Poderíamos tentar ainda assim ligar algumas pistas documentais, alguns indícios do que afirmamos, porque ele continuou a representar na televisão, no cinema até 2005. Mas melhor não. Melhor evitar esse caminho, porque seria injusto para com a verve desse criador lembrá-lo nas últimas representações. O medíocre desses últimos papéis o coração da gente deve esquecer.
Melhor vê-lo então sem documento físico, com a força do que ficou em nossa memória.
A Família Trapo era um programa que procurava exibir uma família classe média, uma família que sem Ronald Golias no papel de Bronco seria a coisa mais tediosa que pode haver num aglomerado que chamam família. A sinopse do programa informa: “As confusões aprontadas pelo malandro Carlos Bronco Dinossauro, cunhado de Pepino Trapo, o patriarca da família. Além de infernizar o cunhado, Bronco infernizava também a vida dos sobrinhos, da irmã e do insólito mordomo Gordon, vivido por Jô Soares”.
Esse é o resumo. É menos que a sombra de um fantasma. Imaginem agora um indivíduo que não parava em cena, que ao ouvir falas é impaciente, pisca sempre os olhos, que torce a boca, que se requebra, dá voltas no palco do teatro. Imaginaram? Imaginaram pouco. Imaginem um homem que modula a voz, que fala num sotaque caipira do interior de São Paulo, que distorce e cria palavras, corta sílabas, para melhor enfatizar a ignorância do personagem, que não recua diante de nada, de nada mesmo, nem diante do mais elementar, do escatológico, ao dar a entender que vai expulsar fezes. E tudo sem perder a elegância, se assim podemos nos referir a um indivíduo que se vestia à semelhança de Cantinflas.
Imaginaram? Imaginem agora um ator que em plena representação, em plena fala, sai do palco, some, com as mãos sobre o ventre, numa insinuação de vontade de defecar e avisa: ‘Vou ali’. E deixa o pobre do coadjuvante sozinho diante da plateia, de um coadjuvante que era também um grande ator, e que por isso comentava com as mãos no nariz, para todo o público: ‘Ninguém suporta a peste’. Imaginem mais e acompanhem um pouco.
Um dos núcleos de comicidade no roteiro era o desprezo que o personagem Bronco dava ao trabalho, da fuga que mantinha a qualquer tentativa de fazê-lo ganhar o pão com o suor do próprio rosto. Isso estava no roteiro. Mas era de uma imprevisão simples o que Ronald Golias fazia diante disso.
Por exemplo, quando o seu personagem estava absolutamente cercado em sua vadiagem, quando não possuía argumentos bons, convincentes, para deixar de viver à custa da beleza da irmã, o que fazia? Ele, de súbito, tinha febre! Dizia, a seu modo, com estremecimentos, e a levantar o paletó sujo até o pescoço: “Quê frio, que frio, quê friiiio’. E então, para que não morresse o bom homem, que caía moribundo e abria os olhos para o público, a família aceitava que o maldito ocioso voltasse a seu normal, que era: viver na eterna dependência, com ares de alta classe média ao receber visitantes na casa, e com uma hipersensibilidade, com melindres finos a qualquer leve insinuação de que não passava de um vadio.
Claro, nem por isso o conflito primário de que vivia sob o dinheiro do cunhado era resolvido. E por isso brigavam os dois, o italiano que enriquecera no Brasil e o cunhado, que era um peso, uma despesa não prevista no casamento do italiano.
Brigavam, feio. Então começavam, num crescendo, os insultos.
– Pernachia. Parasita! – gritava-lhe o italiano.
Ao que voltava Ronald Golias, contra o passado heroico, antifascista do bom italiano:
– Mussolini! Mussulini! –, e, insatisfeito, punha-se a cantar em falsete um hino fascista. Irresistível.
Mas então Pepino Trapo, o italiano, se acercava mais do ator à beira da histeria, ambos. E vinha o absoluto, que na memória é o ponto alto da imprevisibilidade do artista. O clímax, um orgasmo de apoteose: Ronald Golias caía num ataque apoplético, a debater-se, a babar-se, rolando no chão em convulsões. Ele batia com a cabeça no palco e passava a se bater no peito com os punhos, como se fosse possuído de uma raiva irreprimível no chão.
Aliás, “liás”, como dizia o personagem ao cruzar as pernas na sala, quando recebia visitas, aliás, o seu improviso era um capítulo que torna pálida qualquer tese. Sei que todo grande ator utiliza o que no teatro chamam de “caco”: palavra ou frase improvisada fora do script ou do roteiro. Lembro que Oscarito, Dercy Gonçalves, Grande Otelo, Robin Williams, entre outros, faziam muito isso. A diferença de Ronald Golias é que ele era todo “caco”. A sua interpretação era um conjunto magnífico de cacos. Os seus melhores momentos faziam o espectador esquecer o “enredo”, a narrativa dos acontecimentos nas cenas. A nossa televisão, num absurdo brasileiro, não possui um arquivo de imagens digno do nome, pois ficamos sem registro das crises de “convulsão” frenética de Ronald Golias. Os cacos eram o esplendor de Golias.
Era ver, era sentir, era gozar o elementar da criação. Numa tosca frase, deveria ser dito que os seus improvisos eram mais que uma coautoria, como de resto é todo ato de interpretar. Os seus improvisos eram a própria criação.
Isso quer dizer, por um lado, que ele tornava cômico o que no roteiro apenas era risível. Por outro, que ele superava a dificuldade com uma descoberta, com um ser novo. Ora, em nenhum roteiro seria previsto que o ator tivesse disenteria no ar, em plena cena: “já volto”.
Em nenhum texto seria possível o que ele fez com Pelé. O roteiro, é certo, dispunha que ele ignorasse o nome e o talento do jogador. Mas ele faz um achado, vejam: Golias se curva, não para saudar o rei, mas para bater com a cabeça no chão diante da ignorância do Rei, que nada saberia de futebol. Golias se dobra, homem sábio que é da arte de jogar, porque não suporta mais a estupidez de Pelé diante do futebol. O idiota que faz papel de gênio, o ignorante que se julga sábio, que não aguenta a grande ignorância em torno de si, e por isto se curva, “irônico”, isso é simplesmente irresistível.
Há uma tendência na crítica, naquela que se julga mui genial e culta, a realizar sem que disso saiba o papel do Bronco de Ronald Golias, há uma corrente crítica que vê em Golias um tipo de humor ingênuo. Um quase primitivo. E isso, amigos, é apenas mais uma vitória da arte de representar, a própria reencarnação daquela frase latina que ensina: “a melhor arte esconde a sua arte”.
Idiotas, sim, eram os seus últimos papéis. Mas ainda aqui, ainda assim, o velho artista, aos 76 anos, não se curvava, não se nivelava à precariedade burra, apesar dos vincos no rosto e da perda ágil dos movimentos. Caía, mas como dizê-lo?, caía no talento, mas sem um ataque apoplético. E que homem, qual artista, é o mesmo quando as energias enfraquecem, quando a luz do seu gênio entra em fade out?
Agora tentem, respeitáveis críticos, tentem ao menos em sonho algo como o Bronco em 1967, 1968, da Família Trapo. Tentem e verão de que natureza é feito esse humor ingênuo. Um gênio em papel de idiota, um dono do palco, dos atos, do improviso, um mestre da representação. Sem trombetas, a não ser as que mandava soar o idiota Bronco, daquelas que soam nas horas mais impróprias pelo ânus durante uma conversação, de péssimo e imprevisível cheiro para as vítimas em cena.
A lembrança que nos vem de Golias, no dia em que partiu, dos santos Cosme e Damião, mistura-se com a nossa própria vida quando se anunciava o ano de 1968. Todos adolescentes amigos também vivíamos uma comédia, que para nós à época mais se assemelhava a uma tragédia. Talvez por isso todos fôssemos possuídos pelo desejo imenso de rir, de sorrir, de gargalhar. Todos os sábados, na televisão, tínhamos direito a uma hora de felicidade.
URARIANO MOTA ” BLOG BRASIL 247″ ( BRASIL)
Autor de “Soledad no Recife”, recriação dos últimos dias de Soledad Barrett, mulher do Cabo Anselmo, entregue pelo traidor à ditadura. Escreveu ainda “O filho renegado de Deus”, Prêmio Guavira de Literatura 2014, e “A mais longa duração da juventude”, romance da geração rebelde do Brasil