O Brasil tá matando o Brasil/ O Brasil, SOS ao Brasil[i]
Prepare seu coração pras coisas que eu vou contar/ Eu venho lá do sertão, eu velho lá do sertão, e posso não lhe agradar/ aprendi a dizer não/ ver a morte sem chorar/ e a morte, o destino, tudo/ a morte, o destino, tudo/ estava fora de lugar/ eu vivo pra consertar[ii]…
Trabaia, trabaia, negro/ trabaia, trabaia, negro/ o negro está molhado de suor/ as mãos do negro está que é calo só/ ai, meu Senhor/ negro tá velho e essa terra tão dura, tão seca, tão poeirenta[iii]…
Quando olhei a terra ardendo, qual fogueira de São João/ eu perguntei, ó Deus do céu/ por que tamanha judiação? Qual braseiro, que fornalha/ nem um pé de plantação…[iv]
Tanta gente se arvora a ser Deus/ e promete tanta coisa pro sertão/ Que vai dar um vestido pra Maria/ que vai dar um roçado pra João// Eu também tô do lado de Jesus/ Mas eu acho que ele se esqueceu/ de dizer que na terra a gente tem/ que arranjar um jeitinho pra viver…[v]
Acorda, amor: eu tive um pesadelo agora/ sonhei que tinha gente lá fora, batendo no portão/ era a dura, numa muito escura viatura/ minha nossa santa criatura: chame ladrão! Chame ladrão![vi]
A justa já vem/ e vocês digam que eu tô me aprontando/ enquanto eu vou e desguiando/ vocês vão a polícia/ e ao delerusca vão se desculpando[vii]…
Eu hoje estou pulando que nem sapo/ pra ver se escapo dessa praga de urubu/já estou coberto de farrapo/ eu vou acabar ficando nu/ meu paletó parece estopa/ e eu pergunto com que roupa que eu vou ao samba que você me convidou[viii]/
Sapato de pobre é tamanco/ a vida não tem solução/ morada de rico é palácio/ e casa de pobre é barracão[ix]…//
Os boias frias quando tomam umas biritas espantando a tristeza/ Sonham com bife a cavalo, batata frita, e a sobremesa/ é goiabada cascão, com muito queijo…[x]/
Quando o oficial de justiça chegou lá na favela/ e contra seu desejo, entregou pra seu Narciso/ um aviso, uma ordem de despejo// assinada Seu Doutor/ assim dizia a petição// dentro de dez dias eu quero a favela vazia/ e os barracos todos no chão// é uma ordem superior[xi]…
Nasci lá na Bahia de mucama com feitor/ meu pai dormia em cama, minha mãe no pisador/ o meu pai dizia assim: venha cá/ minha mãe dizia assim: sem falar[xii]…
Quando seu moço nasceu meu rebento/ainda não era hora dele rebentar/ veio chegando com cara de fome/ e eu não tinha nem nome pra lhe dar[xiii]…
Eu um dia cansado da fome, da fome que eu tinha/ que seca era aquela, que fome que eu tinha/ que seca danada no meu Ceará// eu juntei numa maleta velha as coisas que eu tinha/ duas calça velha e uma violinha/ e eu pau de arara toquei para cá (…)Virgem Santa, que a fome era tanta que até parecia/ que mesmo xaxando meu corpo subia/ igual se tivesse querendo avoá[xiv]…
“… foi ali, seu moço/ que eu, Mato Grosso e o Joca/ Construímos a nossa maloca/Mas um dia, eu nem quero me alembrá/ veio os homens com as ferramentas, o dono mandou derrubar//… que tristeza que nós sentia/ cada tábua que caia/ doía no coração[xv]…
“Noite chegou outra vez/ de novo na esquina a gente se vê/ todos se acham mortais/ dividem a lua, a noite, até solidão// Nesse clube, sozinha a gente se vê/ pela última vez/ a espera do dia/ naquela calçada fugindo de outro lugar[xvi]…”
“Existirmos, a que será que se destina?[xvii]”
Mas o dia vai chegar/ e o mundo vai saber/ não se vive sem se dar// quem trabalha é que tem/ direito de viver/ pois a terra é de ninguém[xviii].
Notas
[i] “Querelas do brasil”, Aldir Blanc e Maurício Tapajós
[ii]“Disparada”, Geraldo Vandré
[iii]“Trabalha, negro”, Sérgio Ricardo
[iv]“Asa Branca”, Luiz Gonzaga
[v]“Procissão”, Gilberto Gil
[vi]“Chame ladrão”, Chico Buarque
[vii] “Na subida do morro”, Geraldo Pereira cantada por Moreira da Silva
[viii]“Com que roupa”, Noel Rosa
[ix]“Sapato de pobre” J. Junior e Luís Antonio
[x] “Rancho da goiabada”, João Bosco e Aldir Blsnc
[xi]“Despejo na favela”, Adoniran Barbosa
[xii]“Maria moita”, Carlos Lira
[xiii]“Meu guri”, Chico Buarque
[xiv] “Comedor de gilete”, Carlos Lyra
[xv] “Saudosa Maloca”, Adoniram Barbosa
[xvi] “Clube da Esquina”, Milton Nascimento e Lô Borges
[xvii] “Cajuína”, Caetano Veloso
[xviii]“Terra de ninguém”, Paulo Sérgio Valle
MARIA RITA KEHL ” SITE A TERRA É REDONDA” ( BRASIL)
Psicanalista, é autora, entre outros, de Tortura e sintoma social (Boitempo, 2019)