“Eles estão vindo voando por aqui, aquelas coisas que eu não sei o que são. O que será que são? Vêm e vão a toda hora. E dão a volta em cima de nós, bem pertinho. O que será que é isso? Para que eles fazem isso? E depois vão embora. Por que eles ficam passando aqui a toda hora em cima da nossa casa, por que estão querendo matar a gente? Vão jogar alguma coisa na gente como faziam antigamente, que jogavam cachorro na gente para que morrêssemos e pudessem tomar nosso território? Lá vem ele por ali de novo”, diz em sua língua, em um vídeo, o guajá Takwarixika ao observar com sua família um drone no céu da Terra Indígena Caru, no norte do Maranhão.
Os aparelhos, cujos operadores são desconhecidos, têm sobrevoado as aldeias da Caru, com cerca de 400 indígenas, gerando pavor nas crianças e assustando os idosos. Os guajás, também conhecidos como awás guajás ou awás, são uma etnia considerada de recente contato e pelo menos três grupos ainda vivem em isolamento voluntário na mata, um deles na Caru.
“Eles na Caru ficam assustados, [o drone] ele fica parado em cima, talvez está filmando. Fica parado uns dez minutos e depois segue o caminho. Os mais velhos pensam que tem alguém monitorando. Esse é o nosso maior medo. Acredito que o drone está filmando”, disse à coluna, por telefone, o cacique Takaju Awá Guajá, da aldeia Guajá, na vizinha terra indígena Alto Turiaçu.
Os drones são apenas uma das ameaças enfrentadas pelos guajás que vivem em três terras indígenas: Caru, Awá e Alto Turiaçu, além de haver um outro grupo isolado guajá na Arariboia, dos índios guajajaras.
A terra Awá – na qual uma grande operação foi realizada pelo governo federal em 2014 para retirar mais de 600 famílias de invasores não indígenas, após mais de 30 anos de ocupação ilegal – é alvo de uma nova onda de invasões. Segundo os índios, a pressão aumentou durante a pandemia do novo coronavírus.
Fazendeiros espalham gado dentro da terra indígena, segundo os caciques. Fotografias feitas pelos índios confirmam as denúncias. Na época da desintrusão, a Funai chegou a estimar em mais de 20 mil cabeças de gado sendo criadas ilegalmente dentro do território indígena. Agora, com o aumento das invasões crescem também os riscos de incêndios, que já estão acontecendo na região.
‘Um pedido de socorro’, dizem caciques
O cacique Tatuxa’a Awá Guajá disse à coluna, por telefone, que voltaram a ocorrer invasões em várias partes da terra Awá.
“Estamos pedindo socorro. É muito gado dentro do nosso território. Continuam as madeireiras, as serrarias funcionando dentro da terra. A gente está pedindo comunicar com a Funai para fazer uma operação grande, isso nós estamos querendo fazer. Quero deixar meu território para meus netos e meus filhos para viverem mais. É isso que nós queremos fazer.”
Em um áudio enviado a apoiadores, o cacique Karairana Ka’apor, da aldeia Xié de Alto Turiaçu, também fez “um pedido de socorro”.
“Estamos sendo ameaçados através de madeireiros, fazendeiros, plantadores de maconha. A terra Awá está passando por um momento muito triste, muita invasão e a gente não tem nenhuma resposta dos nossos governos. É por isso que a gente pede socorro para as autoridades, o que eles podem fazer mais rápido por nós. Há muitos madeireiros na Awá, serrarias no povoado chamado Conquista, e não tem nenhum órgão que toma alguma providência.”
‘Invasão vinda por cima’
Para os caciques, os drones, e também alguns sobrevoos de helicópteros, estão ligados às atividades ilegais dentro das terras indígenas: narcotraficantes que estão plantando maconha na terra indígena, madeireiros, criadores de gado e caçadores.
Segundo o cacique Takaju, os drones parece que têm como alvo os trabalhos de fiscalização que os indígenas estão fazendo por conta própria para coibir a invasão nos territórios. Eles formam o grupo conhecido como “Guardiões da Floresta” e têm sido uma forma de resistência indígena contra a destruição de várias terras no Maranhão e no Pará.
Para os caciques, os drones podem estar monitorando os “guardiões” com intenção de saber a movimentação das equipes de fiscalização. Em outras oportunidades, quando flagraram um crime dentro do território, os “guardiões” tomaram e queimaram equipamentos e veículos.
As consequências dos voos de drones são inúmeras. A começar pelas más lembranças que suscitam entre os mais idosos. Há poucas décadas, como contam os indígenas, os guajás eram caçados nas matas por fazendeiros, com ajuda de cães, baleados, mortos ou expulsos. Os primeiros contatos da etnia com agentes do governo federal só ocorreram no final da década de 70.
“Essa invasão vinda por cima está lembrando muito para eles os momentos da perseguição que eles sofriam dos fazendeiros da época pré-contato. Ainda tem muita gente viva daquela época. O relato é que viviam uma vida de fuga. Há gerações que vivem essa vida de fugitivos, de não poder fazer muito barulho, de a criança não falar alto por medo de eles serem encontrados por fazendeiros que colocavam cachorros para encontrá-los e matá-los”, disse a professora da UnB (Universidade de Brasília) Marina Magalhães, doutora em linguística e pesquisadora da língua guajá desde 2001 e pesquisadora visitante na Universidade do Texas, em Austin (EUA).
“O fato de os invasores agora estarem aparecendo por cima tem assustado muito. As crianças não sabem o que fazer. Os mais velhos acham que é o mesmo tipo de ameaça [do passado]. Esse é impacto psicológico muito forte na vida deles, que trazem relatos muito vivos ainda na memória deles.”
O antropólogo Uirá Felippe Garcia, professor da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), faz pesquisas com os guajás desde 2006, é autor de “Awá Guajá: crônicas de caça e criação” (ed. Hedra, 2018) e foi pesquisador visitante na Universidade da Califórnia. Para ele, o barulho dos drones e dos helicópteros associado ao de uma estrada de ferro próxima cria uma “devastação sonora”.
Os guajás são considerados exímios caçadores, atividade que tem relação direta com os sons da floresta. “É muito mais do que uma poluição sonora porque muda o regime de dispersão dos animais e o tipo de atenção que as pessoas costumam dar para floresta, porque exige uma atenção que é baseada no silêncio e nos sons da floresta.”
“Os awás são um povo de floresta que vive exclusivamente dessas múltiplas relações que eles têm com a floresta, sejam cosmológicas, sejam ecológicas, da dieta, ritualística, do crescimento dos filhos, o aprendizado das crianças é na trilha, no mato, no caminho. Por conta dessa relação muito particular que eles têm com o ambiente, que está totalmente ameaçado, eles têm elaborado uma crítica muito interessante às várias poluições que aparecem no ambiente deles. Uma delas é uma espécie de devastação sonora.”
Os dois pesquisadores – que traduziram a fala do indígena Takwarixika no começo deste texto – disseram ter ouvido dos indígenas que “as crianças têm tanto medo” dos drones “que por vezes já saíram correndo, desesperadas, sem rumo, e seus pais temem que elas acabem se perdendo na floresta durante a fuga”.
Proteção do território
Para Garcia, os órgãos públicos necessitam agir em duas frentes ao mesmo tempo: de um lado a proteção do território, com a montagem de barreiras sanitárias e ações de fiscalização, e de outro a adoção de um plano de recuperação das áreas degradadas. A destruição da cobertura florestal é resultado da longa ocupação ilegal dos territórios guajás, só encerrada a partir da operação de desintrusão da área.
A Funai (Fundação Nacional do Índio) tem uma frente de proteção etnoambiental na região, mas enfrenta problemas. Para Garcia, “a frente conta hoje com excelentes técnicos, pessoas comprometidas”, mas há falhas estruturais para o trabalho, como déficit de pessoal.
Sobre a recuperação das áreas degradadas, Garcia disse que os próprios indígenas já têm projetos prontos para serem colocados em prática, mas isso só seria possível a partir de um amplo diálogo com o governo.
Marina concorda que, para colocar em prática o plano de fiscalização dos territórios, a frente da Funai tem servidores capacitados mas o principal problema hoje “é a ausência de recursos humanos em número suficiente”. “[A Funai] precisaria de muito mais gente para que essas ações [de fiscalização e recuperação] sejam mais contínuas e permanentes.”
Plano de recuperação da floresta
O indigenista Carlos Travassos, ex-coordenador do setor de índios isolados da Funai em Brasília e que desenvolve um trabalho junto aos guajajaras do Maranhão, disse que o governo federal precisa colocar em prática um plano de regeneração da terra indígena Awá, estabelecido ainda em 2016, que prevê proteção contra incêndios e maior fiscalização.
“Após a desintrusão da terra Awá, vimos que a perda da cobertura florestal tinha sido de 73%. De lá para cá o trabalho tem sido evitar a entrada das pessoas, que levam também o problema do fogo. Mas os ramais [pequenas estradas da madeireiros] voltaram a ser ativados e as pessoas começam a botar fogo nas pastagens. Isso está impedindo que essa região se regenere. A terra Awá tem um plano de recuperação ambiental que foi desenhado após a desintrusão. Esse plano tem que ser cumprido.”
Sem resposta da Funai
A coluna procurou a Funai, em Brasília, no dia 7 de setembro, para saber que medidas estão sendo tomadas sobre os problemas de invasão e os drones nas terras indígenas guajás. Depois, voltou a procurá-la no dia 8. Mas não houve nenhuma resposta até o fechamento deste texto.
A coluna apurou que em meados de agosto a Funai começou a implementar planos de barreiras sanitárias na região, após o Ministério Público Federal ter acolhido informações dos especialistas e recomendado à União que adotasse medidas efetivas de proteção dos territórios. A Funai do Maranhão se comprometeu a montar duas barreiras sanitárias, a fim de conter a disseminação da pandemia do novo coronavírus, na terra Arariboia, uma na Caru, outra na Awá e outra na Alto Turiaçu. Elas teriam a participação de servidores da Funai e de policiais do Batalhão de Polícia Ambiental da Polícia Militar do Maranhão.
RUBENS VALENTE ” SITE DO UOL” ( BRASIL)