O primeiro no Chile.
Acordamos, dia 11 de setembro de 1973, com os aviões voando baixo por nossa casa em direção ao palácio presidencial. Ligamos a Rádio Magallanes, que era a única que apoiava o governo, e ouvimos, às 9h10, as palavras de Allende: “Seguramente esta será la última oportunidad en que pueda dirigirme a ustedes. (…) La historia es nuestra y la hacen los pueblos (…) mucho más temprano que tarde, de nuevo se abrirán las grandes alamedas por donde pase el hombre libre”.Logo a rádio saiu do ar. Cerca de uma hora depois, Allende se sentaria na cadeira presidencial, com sua faixa de mandatário, e se suicidaria. Terminava assim uma das mais apaixonantes experiências políticas que vivi. Dias depois, fomos ver o Palácio de la Monedaincendiado e lembro as lágrimas de minha tia Maria Tereza, que nos acompanhava nesses dias no Chile.
Passaram-se muitos anos e, em 1990, o corpo de Allende voltou a Santiago e cruzou a Alameda Bernardo O’Higgins, onde o povo chileno o saudou em comovido silêncio. Depois da redemocratização, retornei ao Palácio de la Moneda restaurado, cruzei emocionado o pátio de los naranjos e lá almocei, convidado pelo secretário do novo presidente, Enrique Correa, que vivera alguns anos na clandestinidade.
Vieram-me à memória os versos do cantor cubano Pablo Milanés:
“Yo pisaré las calles nuevamente,
de lo que fue Santiago ensangrentada
y en uma hermosa plaza liberada
me detendré a llorar por los ausentes.”
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O segundo 11 de setembro em Nova Iorque.
Nesta manhã, 11 de setembro de 2001, na esquina da Oitava Avenida com a rua 45, vendo rolos de fumaça subirem do sul de Manhattan, lembrei da mesma data, 28 anos atrás, também 3ª feira, quando aviões passavam baixinho em minha casa de Santiago, para irem bombardear o Palácio de la Moneda, logo em chamas. Faz pouco, dois vôos de carreira foram jogados nos enormes edifícios, símbolos do poder econômico e do prestígio desta sociedade opulenta. Dois momentos semelhantes e diferentes nas expectativas e, logo depois, nas frustrações e nos medos. Ainda há pouco tempo, em janeiro de 1969, aqui em Nova York, na Universidade de Colúmbia, jovem militante latino-americano, no clima do pós-68, eu iniciava minha palestra dizendo: “Os piores impérios são os que não se reconhecem como tais”. O império seria implacável no Chile de 1973, como fora no Brasil em 1964. Mas agora, aparentemente sem alternativas à vista, ele se sentia só e poderoso, monitorando o mundo. E, de repente, era como um gigante com os pés de barro, desmoronando como as duas torres do World Trade Center.
Neste momento, o sistema dominante foi ferido profundamente em seus símbolos e em seu amor próprio. Os Estados Unidos, no endurecimento de sua política externa, expressavam uma atitude de auto-suficiência implacável. Veio uma resposta terrível, com uma preparação cuidadosa e um grau de eficiência inimagináveis para tantos norte-americanos, em culturas por eles consideradas atrasadas. E foi quando o estado mais poderoso, paradoxalmente, deixou a descoberto suas próprias ineficiências e suas fragilidades.
Caminhando sem rumo, por uma Nova York semivazia e atônita, sentia minhas convicções e apostas no futuro fraquejarem. Não corremos o sério risco de um curto prazo inseguro e violento, com a ameaça de uma “dark age”? Porém sabemos que, depois de um 1350 sombrio e enlutado pela peste [hoje vivemos outra terrível] veio, em 1440, o Renascimento. Praticamente um século depois. Teremos de esperar tanto, para uma era aquariana com que sonhavam os jovens em 1968? Dá a impressão de que entramos num túnel em que terrorismo e contra-terrorismo se confundem e se reforçam.
Nova York é uma cidade de luto, que ainda não começou a chorar seus mortos. Quantos são eles? Milhares estão ‘missing’. Lúcia e eu acabamos de passar uns minutos em oração, na porta cheia de velas de um corpo de bombeiros do Times Square, tantos deles estão sepultados nas toneladas de pedra e de pó do que foi a torre obelisco do ‘establishment’. E não serve de escusa lembrar de outros mortos, crianças inocentes, em Bagdá. Tudo isso é intolerável. O poeta John Donne escreveu, faz vários séculos: “Nenhum homem é uma ilha… qualquer morte me empequenece”.
Volta na minha memória outro texto de John Donne: “Por quem dobram os sinos? Dobram por ti”. Por todos nós. Quero, entretanto, guardar a esperança de que um outro mundo mais humano, justo e solidário, é possível. E por ele devemos trabalhar, olhando mais além dos pesadelos de hoje. Pelo bem de nossos filhos e dos filhos de nossos filhos.
LUIS ALBERTO GÓMEZ DE SOUZA ” BLOG BRASIL 247″ ( BRASIL)
Formado em Ciências Jurídicas e Sociais, pós-graduado em Ciência Política, doutor em Sociologia. Autor de mais de cem artigos em revistas brasileiras e internacionais e colaborador e organizador de vários livros