CHARGE DE BRUNO
Em dois flancos, o governo Bolsonaro manifestou um súbito interesse por novas imagens de satélite a fim de detectar ilícitos ambientais na Amazônia. Esse movimento inquieta especialistas, que vêem, ao mesmo tempo, o esvaziamento do orçamento e da influência do órgão especializado no assunto, o INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais).
Há um ano, contrariado com os dados levantados pelo INPE que apontavam o crescimento do desmatamento na região amazônica – o que foi comprovado ao final de 2019 -, o presidente Jair Bolsonaro e o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, pressionaram o então diretor do órgão, Ricardo Galvão, que por fim foi exonerado do cargo. Desde então, o INPE tem sido escanteado e seu orçamento, deteriorado.
No sentido contrário, nos últimos dez dias ficaram conhecidos os investimentos do MD (Ministério da Defesa) e do MJSP (Ministério da Justiça e Segurança Pública), por meio da PF (Polícia Federal), para o acesso e uso de novas imagens de satélites.
O MD publicou um empenho, ou seja, um compromisso de gasto, de R$ 145 milhões para aquisição de um satélite que capta imagens do tipo radar, isto é, possíveis mesmo em região com nuvens. O dinheiro sairá de recursos recuperados pela Operação Lava Jato.
Até o momento o MD não explicou detalhes do equipamento – no caso do satélite-radar, a sua banda, ou faixa de frequência, é determinante para a qualidade do serviço. Especialistas acreditam que o governo está buscando a banda X, a mais fraca, que consideram inadequada para a Amazônia. O novo satélite ficará a cargo de um braço do MD, o Censipam (Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia).
Os planos da PF são os mais concretos e avançados. O órgão assinou, no último dia 31, um contrato com a empresa Santiago & Cintra Consultoria, representante no Brasil da empresa norte-americana Planet, que promete fornecer milhares de imagens diárias e dados de satélite, incluindo alertas sobre temas específicos.
O contrato, fechado por inexigibilidade de licitação porque o serviço oferecido pela Planet, segundo a PF, é único no mercado, começará a valer no próximo dia 21 e prevê o pagamento de R$ 49,7 milhões pelos próximos 12 meses. Ao final desse período, a PF se compromete a reavaliar o trabalho e, se houver outro concorrente no mercado, abrir uma licitação. A reavaliação será anual, mas o contrato já tem um prazo máximo de 60 meses, o que projeta um gasto final de R$ 248,5 milhões até setembro de 2025.
A PF rejeita a hipótese de que o sistema possa “substituir” o trabalho do INPE de monitorar e fornecer os dados estatísticos de desmatamentos e queimadas. O órgão afirma que o trabalho da Planet será destinado a subsidiar o trabalho dos policiais, incluindo peritos criminais federais, delegados e agentes, na condução e na solução de inquéritos policiais.
Segundo a PF, o sistema poderá ser acessado tanto pelo INPE quanto pelo Ibama, universidades públicas federais e outros órgãos da administração federal, desde que esses órgãos manifestem interesse a partir da assinatura de um termo de adesão. O MJSP concentrará os dados, mas cada órgão poderá desenvolver um painel próprio com suas áreas de interesse e alertas.
De acordo com o diretor técnico-científico da PF, o perito Alan de Oliveira Lopes, o leque de interesses da PF, com o novo sistema, envolve a investigação de desmatamento “ilegal, queimadas, rompimento de barragens, mineração irregular, pistas clandestinas, fraude em projetos de manejo florestal, plantio de ilícitos, como maconha, fraudes em obras, entre outros”.
Promessa de alertas diários
O uso de satélites não é novidade para a PF, que pelo menos desde 2009 utiliza uma ferramenta chamada de Inteligeo, plataforma baseada em software livre desenvolvida pelos peritos para integração de dados espaciais que funciona na área de perícias de meio ambiente do INC (Instituto Nacional de Criminalística).
Desde 2019 a área tem sido vitaminada, agora com oito peritos em informática, engenharia florestal e geologia. Com o novo contrato, a PF batizou o projeto de M.A.I.S. (Meio Ambiente Integrado e Seguro).
A promessa da Planet é enorme. Ela afirma ser capaz de detectar pequenas mudanças na Amazônia, como uma estrada aberta dentro de uma terra indígena ou uma embarcação atracada num porto. Ela oferece imagens com resolução de três metros, enquanto as imagens disponibilizadas gratuitamente pelo INPE, por meio de satélites como o brasileiro CBERS4, o europeu Sentinel e o norte-americano Landsat, variam de dez metros a 55 metros, segundo a PF.
A Planet diz ter atualmente 149 satélites em órbita, lançados pela própria empresa. São aparelhos pequenos, chamados de “caixa de sapato”, com vida curta, mas constantemente substituídos com novos lançamentos.
Projeto piloto no Amazonas
O perito criminal federal Fabio Salvador, que foi o diretor técnico-científico da PF de janeiro de 2019 a maio de 2020, disse que a iniciativa do contrato com a Planet ganhou corpo depois de bons resultados obtidos em um primeiro contrato piloto realizado pela Superintendência da PF de Manaus (AM) em 2018.
Os dados enviados pela Planet ainda no ano passado já abasteceram a operação GLO (Garantia da Lei e da Ordem) desencadeada pelas Forças Armadas a partir das pressões internacionais sobre a explosão de desmatamentos e queimadas.
“No ano passado, na primeira GLO, a Operação Verde Brasil, essa ferramenta se mostrou importantíssima. Nós podíamos ver ‘opa, abriram uma pista de pouso aqui, abriram uma clareira ali’. E começamos a enviar informes para a GLO. Eles [GLO] conseguiam chegar muitas vezes quando a queimada ainda estava começando. Outros sistemas de satélite não conseguem ter essa precisão, no nosso entendimento. A gente pede [à empresa] que nos avisem quando um garimpo aumenta, e eles informam. Esses alertas são o diferencial. Pedimos que eles ampliassem para o Brasil inteiro”, disse Salvador.
Segundo Alan Lopes, no primeiro momento o contrato em Manaus cobriu 1% da Amazônia Legal, ou cerca de 57 mil km². Em 2019, um projeto piloto nacional avançou para 3,5% da Amazônia. O contrato agora fechado atingirá todo o território nacional e mais um pedaço do mar territorial, cerca de 8,6 milhões de km², segundo o compromisso da Planet.
Um dos diferenciais do contrato, diz a PF, é a promessa da Planet de emitir alertas diários. A partir daí, reconhece a PF, caberá ao corpo técnico interpretar e melhor usar os dados.
“Podemos ter uma Ferrari, mas ela precisa ser bem usada. Alguém pode chamar o serviço de caro se apenas a gente [PF] usar. Mas chamaremos de barato se todas as instituições puderem usar. Os peritos estão sendo incentivados a desenvolver essa ferramenta. Por exemplo, criar um ponto focal para começar a conversar, fazer rede nos Estados de possíveis usuários. A ferramenta em si é simples, tem que saber o que fazer e extrair todo potencial disso”, disse Salvador.
Especialistas alertam para esvaziamento do INPE
O cientista Gilberto Câmara, diretor do INPE de 2005 a 2012 e atual diretor do GEO (em português, Grupo de Observação da Terra), uma parceria intergovernamental entre mais de cem países-membros, a Comissão Europeia e 115 organismos internacionais, pondera que é preciso fazer uma distinção entre os projetos do MD e da PF.
“A Polícia Federal não está interessada em substituir o INPE. Mas não haveria necessidade de a PF comprar imagem da Planet para monitorar ilícitos, no meu entendimento. É desnecessária a compra. Mas o que o Censipam está fazendo é muito pior. Além de jogar o dinheiro público fora, é negar o dinheiro da Lava Jato que poderia ser muito bem utilizado para fortalecer as entidades de fiscalização. E isso está vindo acompanhado de uma retórica destrutiva”, disse Câmara.
O especialista menciona uma entrevista concedida na sexta-feira (4) ao jornal “O Estado de S. Paulo” pelo vice-presidente Hamilton Mourão. Numa crítica ao INPE, o militar disse que o órgão não trabalha “com inteligência artificial”.
“Essa fala é um absurdo. Por trás disso está o descredenciamento do INPE. Não tem inteligência nenhuma [capaz de fazer o que Mourão propõe]. Alguém assoprou isso para Mourão e ele repetiu. Ele fala de uma coisa que não tem a menor ideia. Os algoritmos disponíveis hoje não substituem o papel do ser humano, da análise e da interpretação. É preciso responsabilidade na divulgação desses dados, eles têm que ser preciso. É isso que o INPE sabe fazer e já faz há muito tempo.”
RUBENS VALENTE ” SITE DO UOL” ( BRASIL)