No dia 13 de maio, a americana Cat de Almeida publicou em sua página no Facebook um post no qual sugere que sofreu abuso sexual pelo produtor de cinema brasileiro e curador de festivais internacionais Gustavo Beck. Ela escreveu o nome de Beck no topo da longa postagem e disse que queria falar sobre a sua experiência de “agressão sexual, machismo e opressão” na indústria do cinema. Também digitou que “estupro é um crime violento onde o sexo é a arma”.
Dezenas de pessoas compartilharam o post (já apagado da rede). Uma delas foi a cineasta brasileira Flora Dias, que comentou brevemente a sua experiência profissional com Beck e escreveu: “Meu apoio e carinho às mulheres que decidiram trazer à tona relatos da prática abusiva sistemática desse sujeito”. Outro compartilhamento saiu da conta da cineasta Deborah Viegas, ex-namorada de Beck, que incluiu um relato pessoal e disse ao final: “se alguém quiser partilhar qualquer experiência em off, sintam se livres pra me mandar uma mensagem privada”. Por meio dos contatos feitos a partir dos posts, mulheres passaram a conversar entre si sobre suas experiências com Beck.
O Intercept entrou em contato com algumas dessas mulheres, e 18 delas dividiram conosco suas memórias. Além de Almeida, apenas outras duas aceitaram ter seus nomes revelados – as demais pediram para não ser identificadas por medo de represálias. Os relatos das mulheres divididas em seis países repetem histórias semelhantes de violência sexual, física ou psicológica por parte de Beck. Assim como no caso do produtor americano Harvey Weinstein, elas nos disseram que foi a influência de Beck no mundo do cinema que fez com que as vítimas evitassem denunciá-lo.
Em carta enviada ao Intercept, ele negou as acusações “incondicionalmente”.
Beck é considerado referência da América Latina em eventos internacionais de cinema.
Foto: Clemens Bilan/EPA-EFE/Pool/Getty Images
A maior parte dos festivais de cinema conta com conselheiros que atuam como “olheiros”, acompanhando a produção cinematográfica de determinadas regiões ou países e indicando filmes. É o caso de Beck, que também atua como curador e jurado em alguns festivais. Devido a sua influência nesses espaços, ele é considerado referência da América Latina em eventos internacionais de cinema.
Atualmente, ele mora em Portugal e até o ano passado trabalhava como programador convidado do Festival Internacional de Cinema de Rotterdam, na Holanda, e como curador nos festivais Viennale, na Áustria, e Bafici, na Argentina. Ele também fez parte do comitê de seleção deste ano do IndieLisboa, de Portugal, e é colaborador do Mubi, um serviço de streaming para o cinema independente.
O caso de Cat de Almeida, segundo ela nos detalhou por telefone, aconteceu em 2017, quando participava com o então namorado do Bafici em Buenos Aires. Beck fazia parte do comitê de seleção do Buenos Aires Lab, o BAL, laboratório do festival criado para incentivar o desenvolvimento de filmes latino-americanos. Na época, ela tinha 24 anos e ajudava na produção do filme do seu então companheiro, o cineasta mexicano Pablo Escoto. Dizendo estar interessado em conhecer mais o trabalho do casal, Beck teria convidado a dupla para um happy hour, mas, como o namorado de Almeida tinha um compromisso, ela acabou indo sozinha encontrá-lo.Fortaleça o jornalismo em que você acredita
Após algumas taças de vinho, conta, ele a convenceu a continuar o papo no apartamento. “Desde que entramos, o contato passou a ser insistentemente físico, e eu dizia ‘isso não vai acontecer’”, contou. “Até que ele agarrou meu cabelo e me deu uma mordida na parte de trás da cabeça. Eu fui para a porta, ele bloqueou a minha passagem e me empurrou. Então, abaixou as minhas calças e as dele”. Almeida disse que abriu a porta e fugiu.
Pablo Escoto, o então namorado, nos disse que a encontrou em casa tarde da noite, muito abalada. “Ela estava frágil e em estado de choque, estava claro que tinha vivido uma experiência traumática”. Ela então teria relatado o episódio e lhe mostrado a mordida na nuca. “Choramos, nos abraçamos e ficamos gratos por ela ter conseguido escapar. Ela parecia muito magoada e muito triste”, contou.
Depois disso, Almeida conta que Beck ofereceu ajuda para o filme do seu namorado. O casal recusou. No fim daquele ano, ela compartilhou a história com uma crítica de cinema europeia. Nós conversamos com ela, que pediu para não ter o nome revelado. Ela confirmou que Cat de Almeida lhe fez o mesmo relato que publicou dois anos depois em seu Facebook. Segundo ela nos disse, na época, Almeida queria ajuda para localizar outras vítimas de Beck.
Atualmente, Almeida trabalha num projeto de cinema com crianças e adolescentes no México e diz que encoraja as meninas a batalharem por reconhecimento profissional sem a necessidade de suporte masculino – especialmente por ofertas como as que diz ter recebido de Beck.‘Ele pediu para eu não contar para ninguém e assim eu fiz’
Já a assistente de produção executiva Denise Fait conta que, em 2015, trabalhava no festival brasileiro Olhar de Cinema, em que Beck era o curador. Após tomar vários drinques em uma festa, ela não lembra como chegou no quarto dele no hotel. Fait diz que concordou em fazer sexo, mas algumas cenas não estão muito claras na sua cabeça. “Não foi forçado, mas eu estava bêbada”, contou. A assistente de produção relata que nunca esqueceu de como ficou assustada com a “selvageria desnecessária” dele. “Eu lembro que ele me mordia bastante, principalmente a bunda, e isso me machucava. Com certeza, se eu tivesse dito ‘não’ para ele, dentro daquele quarto, ele teria sido ainda mais violento”, disse. “Sabe quando você está diante do demônio e pensa em ficar amiga dele para não confrontá-lo?”.
Pela manhã, Fait disse que Beck a mandou sair logo do quarto, antes que alguém do festival visse. Nos dias seguintes, durante todo o evento, ela diz que ele passou a esnobá-la. “Ele pediu para eu não contar para ninguém e assim eu fiz. Fiquei com medo de comprometer ele como curador do festival. Hoje eu tenho entendimento claro de que eu fui levada para o quarto de hotel, e ele devia fazer isso com uma por dia”, conta.
Se a vítima está sob efeito de álcool ou de algum entorpecente quando é abusada e incapaz de demonstrar consentimento ou de se defender, o caso caracteriza estupro de vulnerável, afirma a promotora do Ministério Público de São Paulo Gabriela Manssur. Ela atuou no caso João de Deus, médium acusado por quase 400 mulheres de abuso sexual.
Mantendo sob sigilo o nome das vítimas e de Beck, assim como o local dos relatos, pedimos que a promotora analisasse os relatos de Almeida, Denise e das outras 16 mulheres que conversaram com o Intercept durante a apuração dessa história. Segundo Manssur, há sete casos que podem configurar estupro ou tentativa de estupro, quatro possíveis situações de assédio sexual, um caso de agressão física e dois de violência psicológica. Há, ainda, quatro casos que se enquadrariam como importunação sexual, crime que ocorre quando a vítima é forçada a beijar alguém ou quando tem seu corpo tocado sem permissão, por exemplo.
É o que relata a cineasta brasileira Thais Prado, que conta que precisou empurrá-lo e sair correndo de dentro de um espaço reservado durante uma festa de um filme que Beck estava produzindo, em Berlim, em 2016. Ela diz que ele a chamou até um local para lhe “mostrar algo” e ofereceu drogas, mas ela recusou. “Foi então que ele me empurrou contra a parede e começou a me beijar”. Prado diz que tentou se desvencilhar e que contou com a ajuda de uma mulher com quem Beck estava na festa, que apareceu naquele momento. “Se não fosse ela, provavelmente eu teria passado por uma situação muito difícil. E, se eu tivesse me drogado, também estaria mais suscetível”, acredita.
O cineasta Gustavo Jahn também estava no local quando Beck abordou Thais Prado. Ele conhece Beck e Prado e nos disse que não se deu conta naquele momento de que poderia se tratar de uma importunação sexual e que deixou o local assim que ele começou a beijá-la, mas que “o beijo repentino pareceu um bote, meio gratuito e mesmo violento”.
Ilustração: Elisa Pessoa para o Intercept Brasil
‘Cada vez com mais violência’
Diferente de Cat de Almeida, a belga Louise diz que não conseguiu evitar o estupro. O caso teria ocorrido quando ela trabalhava em um festival de cinema na Bélgica em que Beck era jurado, em 2015. “Nós estávamos bebendo, ele me convidou para ir ao quarto dele no hotel e eu fui”. Louise contou que aceitou o convite levando em consideração a promessa de “uma noite gostosa”.
Após entrar no quarto, ela e Beck começaram a fazer sexo consensual, mas ela diz que a noite se transformou num pesadelo. Louise tentou desistir, após se incomodar com a brutalidade com que ele a tratava. Quando disse que iria embora, conta, Beck a agarrou pela cintura e a jogou de volta na cama, não a deixando sair. Com medo de “apanhar na cara ou de forma pior”, Louise ficou. “Parecia uma eternidade, cada vez com mais violência e brutalidade. Os tapas não foram leves como as palmadas que alguns casais curtem, eles doeram terrivelmente e queimaram. As mordidas foram profundas. Os movimentos dele me deixaram machucada, foi muito violento”, descreveu.
Segundo a promotora de Justiça e coordenadora do núcleo de gênero do Ministério Público de São Paulo, Valéria Scarance, a violência sexual começa no exato momento em que a mulher pede para parar e não é ouvida. Pela legislação brasileira, é estupro constranger alguém, por meio de violência ou ameaça, a fazer sexo ou a praticar qualquer ato libidinoso. Pela legislação belga também.
Depois daquela noite, Louise diz que Beck ainda tentou contato com ela pelo Facebook. Ao vê-la em outros festivais algum tempo depois, reforçou o convite para que se encontrassem novamente, mas ela recusou. Levou dois anos até ela se convencer de que havia sido vítima de uma violência sexual. Ela diz que foram as denúncias contra Weinstein, que vieram à tona com o movimento Me Too, que a ajudaram. “Foi cerca de dois anos depois que aconteceu que percebi que foi estupro”, disse.‘Tinha uma coisa fria da parte dele, uma forma de manipular a situação pra que só ele sentisse prazer’
Três dias após Almeida publicar seu relato no Facebook, Louise conta que tomou coragem e resolveu procurar o cineasta brasileiro Gustavo Vinagre, que havia participado do festival em 2015 e com quem ela tinha tido contato como parte da equipe de produção do evento. Nós tivemos acesso a essa troca de mensagens e falamos com Vinagre, que confirmou a conversa e os detalhes relatados por Louise. Ela também lhe enviou uma carta escrita em 2017 relembrando a noite em que diz ter sido violentada, escrita, segundo ela, como forma de encerrar o episódio na sua mente.
Já a cineasta Ana conheceu Beck em 2011, na festa de um cineclube no Rio de Janeiro. A convite dele, saíram do evento para um apartamento. Como no caso de Louise, a noite começou com sexo consensual, mas, segundo o relato de Ana, teria se transformado em estupro. “Depois que chegamos lá, ele sinalizou que queria sexo anal, e eu disse que não. Ele insistiu mais duas vezes, e continuei dizendo não. Na terceira, ele nem perguntou. Foi muito rápido”, contou. Depois que conseguiu se desvencilhar e sair correndo, aos prantos, Ana ainda diz que teve que lidar por muitos anos com a dúvida sobre a gravidade da violência que havia sofrido. Assim como agiu com Cat de Almeida, Beck, segundo ela, a procurou depois, querendo reencontrá-la.
Na época, Ana confidenciou o caso para uma amiga, com quem conversamos. Ela também pediu que seu nome não fosse divulgado. “[Ana] me contou se sentindo muito mal. Estava confusa e não sabia interpretar muito bem o que tinha acontecido. Eu fiquei com uma sensação de que foi algo muito ruim. Ele forçou tanto a barra por sexo anal, que ela precisou sair praticamente fugida”, lembra a amiga. Ana nos disse que demorou para entender a gravidade da situação. “No momento eu me senti mal, mas só depois me dei conta da gravidade do que tinha acontecido. Demorei anos para entender, isso me deixava muito confusa, porque começou como um sexo consensual, mas depois não foi mais isso. Comecei a me dar conta da gravidade quando contei para uma amiga, por causa da reação dela. Na época não tinha tanta conscientização”, relatou. Foi somente após ouvir os relatos das outras mulheres, diz, que ela se convenceu de que foi sexualmente abusada.
‘Doer não é bom?’
O abuso está diretamente relacionado ao poder, segundo a socióloga e diretora executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Samira Bueno, especialmente quando a vítima tem alguma ligação com o agressor. Bueno alerta que o abusador costuma ser envolvente, educado e sedutor, o que deixa as vítimas confusas. “Certamente, várias delas se perguntam se, em algum momento, deram a entender que queriam [aquele tipo de violência]”.
Muitas mulheres, diz Bueno, não denunciam a violência à polícia porque não se encaixam na expectativa social de “vítima exemplar”, vista pelo imaginário popular como a mulher “comportada, que não bebe, não se relaciona com muitos homens”, mas mesmo assim é estuprada. As circunstâncias do episódio, como a embriaguez, a proximidade com o abusador e o fato da mulher querer a relação sexual, como muitos dos relatos que ouvimos, são exemplos de situações que levam as mulheres a demorar para compreender o significado do abuso e mesmo ter a coragem de dizerem que foram violentadas. “Se ela não se encaixa nesse estereótipo, parece que mereceu o que vivenciou. Não é ele que tem que perceber que ela não queria, é sempre ela que deveria ter sido mais explícita. A sociedade está sempre julgando e questionando a mulher, nunca o homem”, disse Bueno.
Várias mulheres com quem conversamos relataram terem se sentido coagidas a aceitar as agressões de Beck por medo de que a violência se tornasse ainda maior. Os casos de “selvageria” se repetem nas descrições.‘[Ele] Tentou me agarrar, mordeu minhas costas e abriu a calça.’
Priscila relata que teria sido atacada por Beck em um banheiro público em 2005. Ela conta que estava com amigos em comum em um bar do Rio de Janeiro quando começou a passar mal. No momento em que correu para o banheiro, Beck teria ido atrás dela. Priscila desconfia da possibilidade de que ele tenha colocado algo em sua bebida. “[Ele] Tentou me agarrar, mordeu minhas costas e abriu a calça. Eu o empurrei e consegui sair. Eu estava muito assustada e a única coisa que consegui pensar foi pegar um táxi e chegar bem em casa”, disse. Em um print de uma conversa de maio deste ano a que tivemos acesso, um amigo de Priscila com quem ela tinha conversado sobre o caso no passado a alerta sobre o relato publicado por Almeida no Facebook e compartilhado por outro cineasta e define Beck como “o cara que você desconfia que te drogou e depois te atacou”.
A cineasta Elza diz que saiu com Beck cinco vezes há 10 anos. Ela conta que quando reclamava das mordidas que a deixavam machucada, por exemplo, ele perguntava se “doer não é bom” e ela respondia que não, mas sem ouvir uma resposta em retorno. “Tinha uma coisa fria da parte dele, uma forma de manipular a situação pra que só ele sentisse prazer”. Elza disse que chegou a ser alertada sobre isso quando contou que estava saindo com Beck para a artista visual Ana Hupe, com quem conversamos. Hupe diz que sabia que ele costumava “machucar as mulheres, principalmente mordendo” e alertou a amiga. “Quando falei isso, ela reconheceu que realmente havia algo de violento nele”, disse.
Nem todo crime sexual deixa marca física e alguns vestígios desaparecem rapidamente, lembra a promotora Scarance. Por isso, o depoimento da vítima já é o suficiente para iniciar uma investigação, desde que o crime não tenha prescrito. Nos casos de acusações como as que são feitas contra Beck, o prazo de prescrição varia entre 12 e 16 anos. A promotora orienta que as vítimas brasileiras ou que são estrangeiras, mas moram no Brasil, podem denunciar à justiça brasileira. Já as vítimas que são de origem estrangeira e não moram no Brasil podem procurar informações sobre as possibilidades de denúncia no país onde residem.
Ilustração: Elisa Pessoa para o Intercept Brasil
Tolerar ou se prejudicar
Quem trabalha com cinema sabe que é nas conversas informais e fora do horário de expediente que se conseguem boas oportunidades de inserir filmes em festivais importantes. Para Elza, que reencontrou Beck em um festival no ano passado, “esse sistema de festival nos coloca em uma situação de subalternidade”. Segundo ela, o poder que ele tem de escolher filmes brasileiros que vão entrar nesses espaços deixa as mulheres mais vulneráveis a situações de abuso.
Cinco anos após a noite que passou com Beck em um quarto de hotel, Denise Fait, por exemplo, conta que não participa de festivais em que ele seja um dos curadores. Ela diz que, no meio do cinema, é comum essa “sedução por cargos”, o que leva mulheres a ficarem mais vulneráveis. “Eu gostaria mesmo que as denúncias que a gente faz não sejam banalizadas”.
Thais Prado, que contou ter fugido do ataque de Beck em uma festa, diz que já perdeu muitas oportunidades por não aceitar o assédio de produtores ou diretores. “É muito ruim esse jogo de interesse porque eu só queria trabalhar, mas fico sempre me perguntando se vou ter que flertar”.
Para Ilda Santiago, diretora executiva de programação do Festival do Rio – Rio de Janeiro International Film Festival, é difícil garantir que a escolha de filmes para um evento não passe por interesses subjetivos, “como qualquer processo de seleção artística”. Mas ela defende que os festivais criem parâmetros éticos e mantenham o compromisso de verificar seus processos internos constantemente, garantindo diversidade de programadores, curadores e conselheiros. “Vários pontos são passíveis, sim, de serem cobrados, principalmente porque a maioria dos festivais recebe financiamento público”, nos disse Santiago.
Depois que a primeira denúncia contra Beck veio à tona, em maio, o produtor de cinema André Mielnik anunciou, pelo Facebook, o fim da sociedade que tinha com ele na produtora If You Hold a Stone. Os relatos das mulheres “bateram fundo em mim e em toda comunidade cinematográfica”, escreveu Mielnik citando as postagens de Cat de Almeida e das cineastas Flora Dias e Deborah Viegas.‘Quem ocupa espaços de poder não pode se sentir autorizado a assediar mulheres’
Enviamos 12 perguntas a Beck sobre os casos relatados nesta reportagem. O curador respondeu com uma carta na qual acusa a ex-namorada, a cineasta Deborah Viegas, de atuar “de maneira coerciva para que outras pessoas tomassem posição” contra ele e diz que perdeu trabalhos por conta da suposta orquestração de Viegas. Também disse que a ex-namorada estaria elaborando um dossiê sobre ele. “Além disso, sou informado que minha ex-namorada, Deborah Viegas, contactou por email ou telefone pessoas próximas a mim e em especial, também meus empregadores, tendo inventado falsos relatos sobre a minha pessoa sem qualquer fundamento – acusações criminais, inclusive – trazendo insegurança e gerando danos irreversíveis na minha vida pessoal e profissional. Fui afastado de alguns de meus trabalhos onde sempre tive atuação exemplar, por essa ação direta de Deborah Viegas”, escreveu.
“Nego incondicionalmente todas as acusações e das únicas duas situações que são descritas com autoras nomeadas, posso dizer que me assusta e me entristece como as pessoas podem reavaliar livremente as suas subjetividades, empregando a estas acusações criminais anos mais tarde”, finalizou (a resposta completa de Beck pode ser lida na íntegra aqui).
Questionamos Viegas por e-mail sobre as acusações de Beck. Ela negou fazer parte de qualquer campanha de difamação e frisou que seu post foi um entre dezenas compartilhando a história de Cat. “Eu não posso ser responsabilizada por uma campanha de difamação; foi uma reação espontânea das pessoas”, escreveu. Segundo ela, após a postagem ela passou a ser procurada por outras mulheres que relataram ter tido más experiências com Beck, mas em nenhum momento cobrou posicionamentos contra o ex-namorado nem lhe fez acusação criminal. “Em momento algum fabriquei relatos falsos; nem meus, nem de terceiros”, escreveu.
“Não é nem razoável que acusações de um grupo extenso de mulheres possam ser atribuídas a uma única pessoa e distorcidas como um ataque pessoal. Na tentativa de fabricar culpados, redirecionar ódio e criar uma narrativa que desvie atenção dos relatos de várias mulheres, meu nome está sendo citado sistematicamente”, afirmou (leia a resposta de Viegas na íntegra aqui).
Beck também cita em sua resposta um email e um perfil de Facebook com o nome Catherine Vermont que, segundo ele, teria sido criado para atacar os festivais de cinema com os quais colabora “os pressionando-os a tomar uma posição urgente contra meu trabalho com eles”. Questionamos Viegas e as mulheres com quem conversamos sobre o perfil. Todas negaram qualquer relação com Vermont. Como o post foi apagado quando Cat de Almeida decidiu deletar seu perfil do Facebook, não é possível verificar os comentários feitos na mensagem original.
Por e-mail, a assessoria de imprensa do Festival de Rotterdam não comentou as acusações contra Beck e se limitou a afirmar que o evento se propõe a “criar um ambiente onde todos se sintam livres para se expressar sem medo de assédio, intimidação, discriminação, sexismo ou outras formas de comportamento desrespeitoso”.
Para a brasileira Janaína Oliveira, conselheira do festival de Locarno, na Suíça, os festivais devem fazer um trabalho preventivo para proteger as mulheres cineastas de abusos sexuais, evitando contratar quem já foi acusado por isso ou demitindo logo que receba denúncias. “Quem ocupa espaços de poder não pode se sentir autorizado a assediar mulheres”.
Ilustração: Elisa Pessoa para o Intercept Brasil
Conflito de interesses
Além das acusações de abuso sexual, Gustavo Beck também coleciona denúncias de conflito de interesse, de acordo com cinco fontes ouvidas pelo Intercept. Aos 38 anos, ele tem pelo menos 20 filmes no currículo: 16 como produtor ou co-produtor e quatro como diretor. Segundo dois cineastas brasileiros, um produtor português e dois ex-chefes brasileiros ouvidos para essa reportagem, essa carreira prolífica foi conquistada fazendo um jogo duplo. As fontes dizem que ele se aproveitava da sua posição em festivais importantes para ganhar crédito como produtor de filmes depois que estavam quase prontos. Em troca, de acordo com os depoimentos, prometia facilitar a seleção desses mesmos filmes nos festivais em que trabalha, como mostram e-mails aos quais tivemos acesso.
Ter filmes selecionados em festivais, dizem os profissionais, é muito importante para cineastas novatos que estão em busca de destaque no meio cinematográfico porque esses eventos funcionam como vitrines. Para costurar as parcerias, ele usava a sua produtora, a If You Hold a Stone.
Um dos casos mais evidentes de conflito de interesse se deu no BAL, o laboratório do festival de cinema Bafici que premia, com apoio em serviços e consultoria, filmes que estão na etapa de finalização. Dezenas de cineastas da América Latina se inscrevem anualmente, mas somente 14 produções foram escolhidas no ano passado.
O catálogo do festival de 2019 diz que o BAL foca em “dar espaço a produtores e diretores emergentes da América Latina, procurando uma plataforma para lançá-los no mercado internacional, com uma perspectiva que combina atividades de treinamento e rede e um esquema de premiação que lhes permitem atingir estágios de produção e conclusão”. Neste mesmo ano, os filmes “A vida são dois dias” e “Esqui”, nos quais Beck aparece como produtor, foram selecionados. O problema: Beck é um dos três membros do comitê de seleção do laboratório.
Beck ao fundo, do lado direito, na cerimônia de entrega de prêmios do BAL em 2016. Ele é um dos três membros do comitê de seleção do laboratório do festival de cinema Bafici.
Foto: Divulgação/Buenos Aires Lab
Em nota, assessoria de imprensa do BAL afirmou que “no momento de ser convocado para a comissão de seleção [do laboratório], ele não tinha vínculo com os filmes”. Embora o seu nome e da sua produtora só tenham sido relacionados aos filmes publicamente após o festival, uma troca de e-mails a que tivemos acesso comprova que ele já estava envolvido ao menos na produção de “A vida são dois dias” cerca de um ano antes da participação do projeto no BAL. Como parte da comissão, Beck não deveria, por questões éticas, participar da seleção do próprio filme para concorrer ao projeto que resulta em investimento na finalização da obra cinematográfica.
Tal situação é um claro conflito de interesses, afirma o advogado Conrado Almeida Gontijo, doutor em direito penal e especialista em corrupção no setor privado. “Ele perde objetividade quando analisa os filmes dos quais participa, porque vai privilegiar a si em detrimento de outro que tenha a mesma qualidade. Seus critérios de avaliação ficam distorcidos”.
Profissionais do cinema ouvidos pelo Intercept dizem que esse tipo de relacionamento ambíguo é tolerado – ainda que antiético. Identificamos ao menos sete filmes em que Beck se envolveu na produção e que foram selecionados para os festivais em que ele também atuou como curador ou conselheiro.
“O cineasta consegue prestígio porque foi selecionado por um dos produtores do projeto que, por sua vez, também irá ganhar fama, prestígio e dinheiro se por acaso o filme for financiado e concluído”, nos disse o produtor português Pedro Fernandes Duarte, que foi procurado para produzir o filme “A vida são dois dias”, co-produzido por Beck. Ele diz que a produtora If You Hold a Stone coloca o nome de Beck no máximo de filmes possíveis “para construir um currículo e uma pontuação que lhes permitisse, no futuro, captar financiamentos em montantes maiores”. À época, Duarte considerou injusta a negociação feita com a empresa de Beck que, segundo ele, privilegiaria a sua produtora em detrimento da empresa brasileira que atuava no filme antes e decidiu sair do projeto em novembro de 2018. Em abril de 2019, o filme despontou como um dos selecionados no BAL e foi premiado.
Outro cineasta que compartilhou uma experiência profissional ruim com Beck foi Gustavo Jahn. O brasileiro, que vive em Berlim, classificou a parceria no filme “Muito Romântico” como “uma das relações profissionais mais abusivas” que já vivenciou. Ele conta que Beck o estimulou a fazerem o filme juntos, mas sua participação foi irrisória e, sempre que o chamavam para tratar de algum detalhe do filme, ele dava a entender que o estavam fazendo perder seu tempo, mas era o primeiro a solicitar os materiais de divulgação. “O trabalho do Beck mesmo, ficou claro a partir de certo momento, foi o de colocar o nome dele no crédito do filme”, diz Jahn.‘O trabalho do Gustavo mesmo, ficou claro a partir de certo momento, foi o de colocar o nome dele no crédito do filme’
Encontramos outros cinco casos de possível conflito de interesse no Festival Internacional de Cinema de Rotterdam. Por três anos seguidos, filmes em que ele aparece como produtor participaram de mostras competitivas, em que as obras concorrem a prêmios em dinheiro. Beck atuava até o início deste ano como conselheiro, ou seja, estava entre os responsáveis por indicar filmes da América Latina para participar do festival. Até a edição 2020, realizada entre o fim de janeiro e o início de fevereiro, seu nome aparecia no site, mas desapareceu após as denúncias de violência sexual feitas por Cat de Almeida em seu Facebook em maio. A assessoria de imprensa do festival não comentou as acusações, afirmando apenas que “a equipe do programa sempre protege o processo de seleção para garantir que os conflitos de interesse sejam resolvidos”.
Questionado, Beck não respondeu às nossas perguntas sobre as situações de aparente conflito de interesse.
A relevância de Beck enquanto representante do Festival de Rotterdam pode ser vista pela forma como era tratado pela Ancine. Em 2017, por exemplo, a Agência Brasileira de Cinema anunciou que Beck veria com exclusividade os filmes selecionados pelo programa Encontros com o Cinema Brasileiro. Nesse evento, os trabalhos de cineastas iniciantes eram apresentados a ele e, caso o agradassem, poderiam ser levados aos curadores do festival holandês, a quem cabe a decisão final sobre quais filmes serão selecionados.
“Sempre pairou a dúvida sobre em que medida dizer um ‘não’ à proposta dele influenciaria no resultado final da seleção, ou na relação com outros festivais nos quais ele trabalha ou tem uma rede de contatos”, diz uma cineasta que recusou uma “assessoria em festivais” oferecida por Beck na época em que ela estava finalizando seu primeiro filme e concorria à seleção de um festival do qual Beck era conselheiro. Ela pediu anonimato por medo de represálias. E-mails trocados entre eles aos quais tivemos acesso mostram que o brasileiro misturava as funções de representante do festival – que precisa “saber se o filme ficaria pronto a tempo” – e de produtor – que “talvez tenha algumas facilidades em mãos”, conforme Beck escreveu em uma das mensagens.
O organizador de um festival no qual Beck foi curador (que também pediu anonimato) diz que, com frequência, ele queria empurrar filmes de seu interesse pessoal em mostras competitivas, o que causava desconforto entre a equipe. A ex-chefe de Beck no mesmo festival, que também prefere não revelar seu nome para evitar retaliações, diz que “todo mundo sabe que ele faz esse tipo de coisa, de inserir filmes que produz em festivais que trabalha, mas ninguém teve coragem de tornar isso uma discussão pública”.
Até agora.
Correção: 28 de agosto, 18h
Gustavo Beck participou da elaboração da programação do IndieLisboa deste ano, mas não faz mais parte da equipe do festival desde junho.
NAYARA FELIZARDO E SCHIRLEI ALVES ” THE INTERCEPT” ( ESPANHA / BRASIL)